Sempre atrás de briga, republicano Newt Gingrich liderou revolução do ódio

Em novo livro, professor de Princeton analisa papel de ex-congressista na onda atual de radicalização política

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Newt Gingrich, com o braço esquerdo levantado, está ao lado de Donald Trump, que acena com um sinal de joia

Newt Gingrich ao lado de Donald Trump durante evento da campanha presidencial de 2016 em Cincinnati, Ohio John Sommers II - 6.jul.16/Getty Images/AFP

Andre Pagliarini

Professor de história no Hampden-Sydney College, na Virgínia (EUA)

[RESUMO] Professor equipara escalada belicosa do discurso extremista no Brasil, que resultou na vitória de Bolsonaro, ao processo de radicalização do Partido Republicano dos EUA, liderado pelo ex-congressista Newt Gingrich, no qual a agenda moralista e anticorrupção foi usada para transformar o debate político em uma incessante batalha entre o bem e o mal.

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O sucesso político de Jair Bolsonaro não teria se concretizado sem uma guinada conservadora aguda na sociedade brasileira. Longe de ser um feito individual, sua vitória foi fruto de uma conjuntura que se desenhava desde pelo menos os protestos de 2013.

Depois da derrota nas eleições de 2014, a direita brasileira abraçou um discurso apocalíptico, pregando que a esquerda visava transformar radicalmente o país e abandonar supostos valores fundamentais do cidadão médio —o pânico moral com o suposto kit gay, por exemplo, não surgiu em 2018, tampouco a preocupação com as atividades do Foro de São Paulo. O PT deixou de ser apenas um adversário a ser derrotado. Virou uma ameaça que deveria ser extirpada.

Essa escalada belicosa do discurso reacionário é alarmante, mas não sem precedentes internacionais. Como mostra Julian E. Zelizer, professor de história da Universidade de Princeton, o Partido Republicano dos Estados Unidos passou por um processo de radicalização similar, se bem que mais gradual, ao longo das últimas quatro décadas.

Donald Trump em comício de sua campanha presidencial em Old Forge, Pensilvânia - Michael M. Santiago - 20.ago.20/Getty Images/AFP

Em “Burning Down the House: Newt Gingrich, the Fall of a Speaker, and the Rise of the New Republican Party” (Incendiando a Câmara: Newt Gingrich, a queda de um presidente da Câmara e a ascensão do novo Partido Republicano), livro publicado em julho, Zelizer atribui o estado lamentável do debate político dos EUA hoje a um congressista conservador profundamente insolente da Geórgia: Newton Leroy Gingrich, mais conhecido como Newt.

Gingrich, eleito aos 35 anos, em 1979, pelo Partido Republicano, chegou a Washington com um plano de ataque bem definido. O Partido Democrata mantinha uma vantagem expressiva no Congresso —mais de cem deputados a mais que os republicanos— e controlava a Câmara desde 1955.

Lideranças republicanas participavam mansamente do jogo político, negociando com seus pares do outro partido, que ainda estava ancorado no legado social-democrata do New Deal rooseveltiano.

Gingrich, no entanto, apostava no conflito para substituir os métodos tradicionais, em sua visão excessivamente cordiais. Um ano antes de ser eleito, explicou em uma conferência de jovens republicanos que, enquanto seu partido encorajava “você a ser limpo, obediente e leal e fiel e todas aquelas palavras de escoteiro”, os democratas tinham entendido que “o canibalismo é a natureza desse negócio”.

Seu objetivo era semear “caos constante” para chacoalhar de vez o status quo. Por meio de escândalos, tanto reais quanto imaginários, ele tachava os adversários de doentes, patéticos e traidores. Para Gingrich, democratas queriam o mal para o país e, portanto, não eram atores legítimos da disputa política.

Depois do Watergate, escândalo que levou à renúncia do presidente Richard Nixon em 1974, democratas progressistas implementaram uma reforma política visando maior transparência. Muitas práticas até então corriqueiras na política tradicional passaram a ser proibidas, dada a vontade de virar a página da sujeira de Nixon.

Gingrich reconheceu que uma agenda chamativa e altamente moralista poderia ser instrumentalizada para atacar qualquer um no poder —membros do dito establishment—, mesmo que o acusador fosse desonesto em sua vida pessoal, como era o caso dele.

“O fato número um sobre a mídia”, observou Gingrich, “é que eles adoram brigas”. Sempre disposto a arrumar uma confusão para os novos canais de notícias 24 horas, como a CNN, que foi ao ar em 1980, Gingrich fez da mídia cúmplice na sua cruzada contra os democratas, sustenta Zelizer.

Mobilizando a imprensa nacional depois de um escândalo envolvendo congressistas e xeiques árabes, ele afirmou: “Muitas pessoas neste país estão dizendo agora que isso é apenas política, e a política é suja. Discordo. A política não precisa ser corrupta. De fato, em uma sociedade livre, não pode ser permitido que seja corrupta”.

Gingrich também usou a C-Span, canal aberto criado em 1979 para dar ao eleitor médio acesso aos debates no Congresso, como arma propagandística. Fazendo da tribuna um palco, lançava ataques graves contra oponentes, sem filtro, no horário nobre. Mal sabia o telespectador que, enquanto Gingrich esbravejava contra o Partido Democrata, a Câmara normalmente estava vazia. O espetáculo era para os apoiadores que o viam de casa, não para os outros deputados.

Gingrich, obviamente, não foi o primeiro a alimentar hostilidades partidárias no Congresso. Deputados partiram para a violência nos anos que antecederam a Guerra Civil (1861-1865) —a historiadora Joanne B. Freeman escreveu um livro inteiro sobre isso, “The Field of Blood” (o campo do sangue)— e o macarthismo criou um clima paranoico de desconfiança total.

No entanto, diferentemente desses momentos tensos, Gingrich descartou unilateralmente as regras formais e informais de convivência. Nenhuma liderança, nenhum cargo e nenhuma instituição mereciam seu respeito. O episódio central do livro de Zelizer é a destruição política do poderoso democrata texano Jim Wright, que se tornou o presidente da Câmara em 1987.

Newt Gingrich durante convenção do Partido Republicano em Cleveland, Ohio, em 2016 - Jeff Swensen - 18.jul.2016/Getty Images/AFP

Aproveitando o momento de transição na liderança do partido adversário, Gingrich partiu para a guerra: divulgou boatos sem fundamento de que Wright teria assediado uma adolescente e tentou vinculá-lo a práticas de lobby estrangeiro. Uma denúncia colou: Wright teria escondido US$ 60 mil (R$ 328 mil) em royalties de um livro de sua autoria para furar os limites que políticos podiam receber acima do salário oficial (outra mudança pós-Watergate). Essa pedalada de ganhos pessoais de Wright virou um escândalo midiático e forçou sua renúncia.

Gingrich derrubou um gigante. Prevaleceu sua tática agressiva contra o establishment, contra a presunção da boa-fé e contra as normas estabelecidas ao longo do tempo —e o uso tático do que hoje chamamos de fake news.

O congressista acertou ao reconhecer a potência do discurso anticorrupção. Zelizer não aborda esse período em seu livro, mas, em 1995, Gingrich alcançou a presidência da Câmara e se tornou o segundo na linha de sucessão presidencial. Seu estilo de política passou a influenciar o Partido Republicano como um todo.

O ex-presidente democrata Bill Clinton, por exemplo, passaria seu governo inteiro se defendendo de acusações veementemente moralistas, culminando na abertura de seu processo de impeachment na Câmara após o caso com a estagiária Monica Lewinsky —o presidente foi absolvido pelo Senado.

A estratégia de Gingrich quase derrubou o presidente, mas Clinton emergiu da saga do impeachment com a popularidade em alta. Em um segmento expressivo da população, no entanto, a degeneração moral que Gingrich atribuiu a Clinton se aplicava ao Partido Democrata como um todo.

Um ecossistema inteiro de comunicação ultraconservador, tanto na rádio —liderado pelo apresentador Rush Limbaugh— quanto na televisão —hoje a Fox News é o principal canal de notícias da TV paga—, nasceu a partir da revolução emotiva da política gingrichiana.

“Com muita frequência”, argumenta Zelizer, “tratamos a polarização partidária como uma força inexorável”, algo que há de acontecer naturalmente. Porém, como deixa claro seu livro, isso ignora a responsabilidade de políticos como Gingrich, que, com premeditação e malícia, levaram o Congresso a “um abismo mais profundo”.

O discurso anticorrupção também surtiu efeito para a direita brasileira no caminho para o abismo atual. Afinal, quem mais se beneficiou da maior investigação já realizada no Brasil a respeito de desvio e lavagem de dinheiro público foi Bolsonaro, um extremista ideológico que incrivelmente conseguiu se eleger sob a bandeira da ética.

No entanto, mesmo antes da vitória do capitão reformado, a oposição brasileira passava por um processo acelerado de gingrichização, uma degeneração avassaladora de alarmismo e moralismo que “legitimava práticas implacáveis e destrutivas antes relegadas às margens”, como coloca Zelizer.

Embora não exista no Brasil apenas um partido conservador, o exemplo do PSDB é ilustrativo. Uma aglomeração respeitável de orientação social-democrata se transformou na fiadora de um impeachment espúrio contra uma presidente eleita de centro-esquerda.

De fato, o governador de São Paulo, João Doria, hoje o principal nome tucano, tem qualidades nitidamente gingrichianas. Ao se apossar de vez do partido de Covas, FHC, Alckmin e Serra, Doria busca completar o projeto sustentado pela candidatura de Aécio Neves em 2014: assentar um partido antes programático em um difuso descontentamento alheio.

O deslocamento do PSDB para a direita abriu a porta para forças extremistas naquele campo. Ao questionar o resultado das eleições, Aécio alimentou uma tendência incipiente de questionamento da ordem democrática que desaguou na eleição de Bolsonaro.

Análises futuras examinarão em que medida o eleitorado, tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos, mudou a natureza das lideranças conservadoras —ou se as lideranças que se colocavam no pleito conseguiram direcionar a ira do povo.

De qualquer forma, Zelizer vê uma linha direta entre o deputado extremista e Trump: “Gingrich promoveu um estilo de combate esmagador com o objetivo de deslegitimar seus oponentes de qualquer maneira possível. A política, a seu ver, era guerra. Ele decidiu que a única maneira de vencer uma batalha era soltar todo seu poder de fogo sobre o inimigo. Agora [na campanha de 2016], Trump estava usando a mesma abordagem em seu caminho para a Presidência”.

Ao disseminar um estilo de fazer política grosseiro e simplista, em que complexidade se iguala a tergiversação, Gingrich asfaltou a estrada sobre a qual hoje passa a retroescavadeira Trump.

Os paralelos com o bolsonarismo não são difíceis de enxergar. Em livro recém-lançado, “A Máquina do Ódio” (Companhia das Letras), a repórter especial da Folha Patrícia Campos Mello descreve como a extrema direita se utiliza de “exércitos de trolls e bots para construir narrativas que a favoreçam” e conclui que “é este o novo mundo em que vivemos: fatos são moldáveis”.

O ex-deputado da Geórgia não inventou a antipolítica como forma de fazer política, mas sua capacidade de usar novos meios de comunicação em um momento de mudança da liderança do partido adversário foi diabolicamente inovador. O bolsonarismo certamente agradaria o jovem Gingrich amotinado de quatro décadas atrás.

A transformação das esquerdas —na verdade, oponentes de qualquer estirpe— em um monstro de sete cabeças a ser repetidamente decapitado, não só derrotado nas urnas, é um aspecto central da gingrichização da política brasileira. Resta ver se o bolsonarismo se dissipará após a saída do presidente do Planalto ou se seu efeito será mais duradouro e danoso, como Zelizer sustenta no caso da revolução de Gingrich.

Vale notar que, diferentemente do dito mito, Gingrich nunca teve a seu favor a adulação total de milhões de cidadãos. Deixou a presidência da Câmara no início de 1999, depois de os republicanos perderem terreno no Congresso na eleição de 1998 e da descoberta, pela imprensa, de que ele havia acobertado um caso extraconjugal com uma mulher 23 anos mais nova. Nas primárias de 2012, não chegou perto da indicação do partido para a Presidência.

Sempre atrás de uma briga, Gingrich transformou o debate político em uma incessante batalha entre o bem e o mal. Para Zelizer, a campanha de Trump em 2016 só vingou porque Gingrich havia previamente estabelecido que o ódio ao inimigo progressista não precisava necessariamente de fundamento factual. Bastava tachar o outro de subversivo, pedófilo, marxista, corrupto, bandido ou algo do tipo. Essa forma de fazer política funciona por um tempo. Mas a que custo?

Burning Down the House: Newt Gingrich, the Fall of a Speaker, and the Rise of the New Republican Party

  • Preço R$ 165 (368 págs.); R$ 103,50 (ebook)
  • Autor Julian E. Zelizer
  • Editora Penguin Press
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