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Guilherme Wisnik

Falta de estrutura no Brasil respalda decisão de Paulo Mendes da Rocha

Para professor, é compreensível a escolha do arquiteto de doar seu acervo para Portugal

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Guilherme Wisnik

Arquiteto e professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, é autor de ‘Dentro do Nevoeiro’ (editora Ubu), entre outros livros

[RESUMO] Recebida com reações acaloradas, decisão do arquiteto Paulo Mendes da Rocha de doar seu acervo de projetos para instituição portuguesa é compreensível e escancara a falta de políticas de preservação cultural no Brasil, avalia autor, que defende a urgentemente construção de uma rede de coleções de arquitetura e urbanismo no país.

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Paulo Mendes da Rocha decidiu doar seu acervo de projetos —mais de 60 anos de trabalho em forma de desenhos, croquis e maquetes— para a Casa da Arquitectura de Portugal, em Matosinhos. A notícia foi recebida com grande surpresa, gerando reações e análises apaixonadas.

De um lado, a doação do acervo a uma instituição do exterior seria um “ato de barbárie” (no artigo de José Lira a esta Folha); de outro, um “ato civilizatório” (no abaixo assinado de amigos do arquiteto), a depender do ângulo pelo qual é compreendida.

Paulo Mendes da Rocha, mais importante arquiteto brasileiro da atualidade, em seu escritório em São Paulo. - Eduardo Knapp/Folhapress

O fato levanta, sem dúvida, uma discussão sobre a gritante falta de uma política de acervos no Brasil, em especial acervos de arquitetura e urbanismo, o que faz com que parte importante das coleções fique desamparada ou seja atraída por instituições do exterior —como no conhecido caso da coleção de arte neoconcreta de Adolpho Leirner, comprada pelo museu de Houston em 2007.

A perda de tais acervos, por deterioração ou exportação, resulta em prejuízos evidentes para os nossos meios culturais, educacionais e de pesquisa. É verdade que uma coleção de projetos de arquitetura não significa o mesmo que acervos de artistas, pois no caso do arquiteto os projetos não configuram as obras em si, mas mediações para a realização delas.

Edifícios, planos urbanos e cadeiras, por exemplo, são concebidos e antecipados no desenho, mas sua realização material está na obra executada. Mesmo assim, desenhos, maquetes e outros documentos, inclusive de obra, são importantes testemunhos para pesquisas acadêmicas, que resultam muitas vezes em publicações e em exposições, responsáveis por manter viva a memória daqueles trabalhos, permitindo novas abordagens e interpretações teóricas. E a presença desses originais em exposições é algo que está longe de ser desprezível.

Como bem aponta Hugo Segawa, em artigo recente para o Jornal da USP, o fato do acervo de projetos do arquiteto mexicano Luis Barragán ter sido doado para o Museu Vitra, na Suíça, acabou por redundar em uma diminuição do interesse acadêmico pela sua obra, já que o acesso à coleção ficou bloqueado, e nenhuma exposição relevante foi realizada.

Mas será esse o destino do acervo de Mendes da Rocha em Portugal? Ao que tudo indica, não. O compromisso assumido publicamente pela instituição portuguesa ao receber essa valiosa doação é o de digitalizar e disponibilizar todo esse material para pesquisa pública em pouco tempo, e de forma gratuita para pesquisas acadêmicas e escolares em todo o mundo. É pouco?

Não me parece que os alemães se sintam diminuídos pelo fato de o acervo de Mies van der Rohe pertencer ao MoMA de Nova York, após seu exílio na América. Afinal, não é de hoje que as coleções de projetos de arquitetos com grande reconhecimento internacional são objetos de disputa.

A Cité de l’Architecture et du Patrimoine de Paris, assim como o Het Nieuwe Instituut de Roterdã, são exemplos de instituições com acervos notáveis na área. Mas quem atua de forma mais intensa e efetiva nessa arena do colecionismo internacional é o Centro Canadense de Arquitetura (CCA), sediado em Montreal, que detém parte importante dos projetos de arquitetos como Álvaro Siza, James Stirling, Aldo Rossi e muitos outros, além de artistas como Gordon Matta-Clark (nenhum deles canadense, note-se bem).

Instituição mais jovem, a Casa da Arquitectura de Portugal se insere nesse conjunto, e vai buscando adquirir prestígio para fazer parte dessa rede global. Além do acervo de Mendes da Rocha, ela já conta também com a coleção de Eduardo Souto de Moura —também vencedor do prêmio Pritzker, assim como o brasileiro—, e com as doações recentes de outros notáveis arquitetos portugueses, como João Luís Carrilho da Graça e Gonçalo Byrne.

Por que o acervo de Paulo Mendes da Rocha foi o primeiro, dentre os arquitetos brasileiros, a ser atraído por esse sistema internacional de grandes instituições que colecionam desenhos e documentação de arquitetura? É preciso entender que Paulo, além de brasileiro, é um arquiteto global. Certamente o nosso primeiro a atingir esse estatuto, o que traz problemas inteiramente novos para a discussão.

É certo que Oscar Niemeyer é mundialmente conhecido. No entanto, sua arquitetura, sempre interpretada como uma vertente regional do modernismo, ainda se alicerçava numa certa ideia de país, com seu despojamento, seu passado barroco e suas montanhas.

Ganhador de todos os prêmios internacionais mais importantes —mais do que Niemeyer—, Paulo recebeu reconhecimento mundial mais recentemente, num momento de globalização mais efetiva que o colocou numa perspectiva já muito diversa daquilo que um dia se entendeu como um projeto de “formação nacional”.

Portanto, mais do que acusar uma suposta falta de coerência do arquiteto, a guarda de sua coleção fora do país é parte de um sistema mais amplo de premiações, circulações, exibições e validações da arquitetura do chamado “star system” global.

Paulo, neste sentido, toma uma decisão compreensível, dado o fato de que o Brasil ainda não conta com nenhuma instituição comparável às mencionadas acima. O que representa uma grande perda cultural para nós, já que temos uma das produções arquitetônicas mais relevantes do mundo.

É preciso, portanto, nos mobilizarmos urgentemente para construir um centro ou uma rede de acervos de arquitetura e urbanismo no país, tal como o IAB-SP propõe em carta aberta lançada recentemente.

Paulo sempre orientou o seu trabalho em prol do interesse público e considera, evidentemente, que a Casa da Arquitectura garantirá seu compromisso de permitir o acesso público ao seu acervo não apenas em Portugal, mas em todos os lugares do mundo com a digitalização completa, em alta resolução, disponível para qualquer estudante, profissional e pesquisador. Nesse caso, as distâncias físicas importam menos, e a democratização do acesso à obra é o mais relevante. Nesse sentido, precisamos cobrar a Casa para que de fato disponibilize esse material rapidamente, e facilite a vinda de parte desse material original para exposições periódicas no Brasil.

E, além disso, que promova exposições, publicações e programas de pesquisa, e crie protocolos de colaboração com universidades brasileiras de modo a facilitar e estimular a revisão crítica da coleção e do impacto da obra de Paulo, o primeiro arquiteto global brasileiro.


Guilherme Wisnik, arquiteto e professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, é autor de ‘Dentro do Nevoeiro’ (editora Ubu), entre outros livros.

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