Gilberto Gil conta que teve pânico na prisão e fez show no quartel na ditadura

Músico relata histórias das três celas nas quais esteve preso após a instauração do AI-5

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Claudio Leal

Jornalista e mestre em teoria e história do cinema pela USP

[resumo] O músico Gilberto Gil refaz o itinerário de sua prisão pelas celas de três quartéis durante a ditadura militar, período em que vivenciou isolamento agudo, sentimento de pânico, o aprofundamento de seu orientalismo e gestos humanos de alguns militares.

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Em dezembro de 1968, a prisão de Caetano Veloso e Gilberto Gil encerrou a intervenção de choque da tropicália na música popular brasileira. Enquadrados no Ato Institucional nº 5, os tropicalistas caíram em celas de três quartéis. Recém-lançado, o documentário “Narciso em Férias”, de Renato Terra e Ricardo Calil, repassou a descida de Caetano aos cárceres.

Em Salvador, Gilberto Gil, 78, aceitou rememorar sua prisão com o amigo durante a ditadura militar, de 27 de dezembro de 1968 a 19 de fevereiro de 1969. O músico estava no apartamento de Caetano e Dedé, na avenida São Luís, em São Paulo, no momento da chegada de policiais à paisana.

“Eles vieram avisar Caetano de que vão levá-lo pro Rio e perguntaram por você”, Dedé alertou a Gil, que dormia em outro quarto com Sandra Gadelha, sua namorada.

Fotos do cantor Gilberto Gil após ser preso pela ditadura militar em dezembro de 1968; as imagens integram o dossiê elaborado pelos militares sobre o músico depois da instauração do Ato Institucional nº 5
Fotos do cantor Gilberto Gil após ser preso pela ditadura militar em dezembro de 1968; as imagens integram o dossiê elaborado pelos militares sobre o músico depois da instauração do Ato Institucional nº 5 - Reprodução

“Dedé me disse: ‘eu acho bom que você vá pra casa. Eles vão lhe procurar lá’. Ou então, teria a alternativa de fugir. Eu achava que aqueles instantes todos que estávamos vivendo ainda deveriam ser comuns, meus e de Caetano. Não havia se esgotado o compromisso natural, mínimo, de estarmos juntos. Eu fui pra casa esperar”, recorda o tropicalista.

Neste depoimento, Gil refaz o itinerário de sua prisão, cela por cela, depois da passagem pelo Ministério da Guerra, na avenida Presidente Vargas, no Rio de Janeiro.

1º Batalhão de Polícia do Exército, na Tijuca

“A solitária era a ignorância do que estava acontecendo. Foi a fase mais aguda do isolamento. O medo de estar ali e, ao mesmo tempo, o sentimento de ‘Está vendo? Eu achava que a gente estava correndo riscos, e estes fatos confirmam que a gente tinha o que temer. Estou aqui, estou preso, não sei o que vai acontecer comigo. O que eu faço com esse pânico, com esse medo? Eu tinha uma experiência deficiente dos tropeços brabos da vida’.”

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“De todo modo, essa minha tendência natural de me voltar pra dentro, de buscar os confins da interioridade, tudo isso estava ali. E eu já vinha temendo um desfecho daquele tipo, no tropicalismo. Caetano tinha que me chamar a atenção: ‘Estamos vivendo, vamos continuar o nosso trabalho’”.

“E eu desconfiado. Tenho essa tendência natural de investigar a aflição. Quando a aflição assoma, eu sempre fico querendo saber dela: ‘Por quê? O que você quer dizer com isso?’. Nas solitárias estávamos eu, um senhor comunista e Caetano, que conversava mais do que eu com esse senhor. Praticamente não falei nada.”

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Depois de uma semana, Gil e Caetano saem das solitárias. Jogados contra uma parede do quartel, os amigos trocaram gestos de estímulo, à espera de um camburão. Iniciariam uma longa travessia pela cidade.

Quartel da Polícia do Exército na Vila Militar, em Deodoro

“Foi tenso na primeira transferência da Tijuca pra Vila Militar. Camburão e a incerteza do que ia acontecer. Na Vila Militar, houve uma distensão mínima. Saí de um espaço exíguo, desconfortável, solitário, pra uma cela coletiva, com gente que eu sabia quem era. Na solitária, era ‘solitariedade’. Na Vila Militar, solidariedade. Antonio Callado me chamava a atenção para a necessidade de estarmos firmes: ‘Isso é a brutalidade! Temos que nos fortalecer’”.

“E Ferreira Gullar atuava no sentido do espaço, como dividíamos as coisas, quem vai tomar o banho. Era o administrador da condição doméstica. Não me lembro de nada de Paulo Francis. Eu me lembro daquela voz dele. Porque eles conversavam muito entre eles. Caetano foi pra uma outra cela, onde tinha Perfeito Fortuna. Mas eram celas contíguas, no mesmo corredor.”

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Um barbeiro cortou o cabelo de Gil e Caetano. Dali a alguns dias, uma caminhonete levaria os tropicalistas para o quartel de paraquedistas, na Vila Militar. Sozinho, Gil aprofundou seu embarque no orientalismo e nas indagações existenciais.

Capa do processo contra Gilberto Gil elaborado pelo Conselho de Segurança Nacional da ditadura militar em 1968
Capa do processo contra Gilberto Gil elaborado pelo Conselho de Segurança Nacional da ditadura militar em 1968 - Reprodução

Quartel dos Paraquedistas (PQD) do Exército

“Estávamos em quartéis diferentes. Não podia haver nenhuma troca de informações entre nós. Foi uma separação muito grande, nos últimos 30 dias. O sargento Juarez vinha sempre conversar comigo. Já tinha conhecimento mínimo do meu trabalho, sabia dos meus discos, conhecia algumas músicas do ‘Louvação’ [seu álbum de 1967], consternado com aquela minha situação.”

“Um dia, ele me perguntou: ‘Você gostaria de ter um violão?’. Eu disse: ‘Sargento, imagina! O que você acha? Claro que eu gostaria!’. Juarez: ‘Eu tenho um violãozinho em casa. Vou pedir ao comandante pra permitir’. Dito e feito. Um ou dois dias depois ele veio com o violão. O violão, companheiro inseparável que já era e se manteve pelo resto da vida até hoje. Você imagine: um violão numa cela. Foram quatro canções. Uma delas eu me esqueci [ele compôs ‘Cérebro Eletrônico’, ‘Vitrines’ e ‘Futurível’, anotando as letras em páginas de revistas].”

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“Todos os ingredientes básicos da minha criatividade estiveram ligados a essa curiosidade em relação ao mundo externo. O que está por trás do horizonte, a grande interrogação ao olhar a abóbada celeste, essas coisas que vinham desde a infância e desembocaram no meu interesse pelas tecnologias.

“‘Lunik 9’ já tinha isso. Havia todo o frisson das naves espaciais. Como no caso de Caetano, que veio depois a fazer ‘Terra’. Em ‘Vitrines’, misturavam-se questões existenciais minhas, meu romance com a vida e com o amor. Em ‘Cérebro Eletrônico’, o personagem central sou eu. Sou eu e minha reflexão sobre a máquina. Elas são herdeiras de ‘Lunik 9’.”

“Esse temor de que um passo dado em relação ao avanço tecnológico geral daquela época pudesse levar ao desaparecimento do luar tal como ele tinha sido na vida dos poetas. Nestas três músicas estão os embriões de ‘Quanta’ [seu álbum de 1997].”

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“Um dia, o comandante veio até a minha cela perguntar se eu gostaria e poderia tocar no pátio do quartel, pra toda a tropa. Eu tinha ficado um pouco temeroso, um certo temor que até hoje tenho de subir em qualquer palco, além da questão da minha situação institucional de preso pelo Exército. Eu fui. Ficamos uma hora e meia, à noite, no pátio do quartel. Cinquenta, 60 soldados, alguns oficiais. É por isso que ficou esse resíduo da dimensão afetiva ao qual Maciel se referiu [um ano depois, preso com a equipe do semanário Pasquim no mesmo quartel, o jornalista Luiz Carlos Maciel notou a popularidade de Gil entre os soldados].”

“Caetano estava me lembrando que Dedé pediu pra ele ter também um violão. Foi negado com o argumento de que eu era formado, era doutor, tinha diploma universitário. Portanto, eu tinha algumas regalias.”

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“Sandra [sua futura esposa] e Giselda, irmã de Turíbio Santos, me levaram as revistas Manchete e O Cruzeiro. Numa delas tinha uma reportagem de John Lennon com Yoko. E ali na reportagem estava o fato de que eles tinham adotado o regime macrobiótico. Foi a primeira vez que eu ouvi falar. Fiquei curioso. Pedi a Giselda que procurasse um livro mais específico sobre a macrobiótica. Na semana seguinte, ela encontrou o livro ‘Macrobiótica Zen’. Eu mergulhei naquela narrativa.”

“O que eu faço é pedir ao oficial responsável pela alimentação pra mandar somente arroz, feijão, já sem carne, sem proteína. E me mandar aveia para o café da manhã. Um pouco de aveia e uma banana. E Sandra me levou um livro do qual eu extraí as primeiras posições, meus primeiros exercícios de ioga na cadeia. De hata-ioga.”

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“Caetano se refere muito à ansiedade em relação ao interrogatório. Quando a gente chega no PQD, começam a aparecer sinais de que vão conversar conosco. E a gente foi mesmo interrogado. Pela primeira vez, havia um interesse mínimo deles no estabelecimento ou não de uma culpa formada. Ali a ideia de uma libertação passou a conviver com a de uma condenação.”

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No interrogatório, o oficial quis saber de um boato espalhado pelo radialista e apresentador de TV Randal Juliano, no início de 1968. “Você faz música de protesto e anda numa Mercedes azul?”, questionou Randal, na Jovem Pan.

Gil respondeu que a ambição de comprar um carro era normal em qualquer povo do mundo, citando Cuba e Rússia entre outros exemplos. O radialista passou a repetir que o artista declarara que no comunismo russo e cubano todos podiam ter uma Mercedes.

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“Eu dizia: ‘Tudo isso é especulação desse rapaz. Tenho uma Mercedes usada’. Foi uma coisa muito ligada ao modo como Guilherme Araújo [produtor musical] geria a imagem nossa, de ter um carro confortável. Minha condição econômica naquele momento já permitia. Eles queriam criar caso”, Gil relembra.

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A mentira de Randal Juliano lhe perseguiria até janeiro de 1972, ao voltar do exílio em Londres. No aeroporto do Galeão, agentes pediram explicações sobre o incidente, além de questionarem sua amizade com Glauber Rocha e Violeta Arraes, irmã de Miguel Arraes, governador de Pernambuco cassado após o golpe de 64.

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No quartel, a investigação sumária incriminou Gil por sua presença na passeata dos Cem Mil, em 1968. “Sou ainda de opinião que o acusado pode ser posto em liberdade, por ser nociva a sua permanência no Quartel”, afirmou o major Heli de Albuquerque Cordeiro, num relatório secreto de 23 de janeiro de 1969.
Gil sorri ao saber do comentário. “Talvez seja por essa impregnação da dimensão poética, afetiva, do capitão me chamando pra fazer um show. Todos esses episódios que se sucederam ali talvez ficassem pra esse oficial como uma contaminação indesejável”, observa o artista, que nunca tinha lido seu dossiê militar. Apesar do parecer do major, ele ficou mais 21 dias no xadrez.

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“Não tenho lembrança exata da libertação, ao contrário do Caetano, que manteve a linha do tempo. Tudo isso nele é muito roteirizado. Caetano tem uma memória prodigiosa, que tem sido um elemento fundamental pro desenvolvimento humano dele. Eu, não. Eu fui muito pro lado dos iogues, pro lado da meditação, do diálogo interior, do fluxo do tempo. Um amante do silêncio existencial. Caetano queria a praça Castro Alves.”

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Uma troca de ofícios debateu o destino dos tropicalistas confinados em Salvador logo após a soltura. Em 28 de maio, dirigindo-se ao ministro da Justiça, Gama e Silva, o chefe do Exército, Lyra Tavares, pediu a suspensão dos direitos políticos de Gil por dez anos, com base no AI-5. Passados seis dias, recomendou a mesma punição para Caetano.

Em julho de 1969, os tropicalistas partiriam para o exílio. Antes disso, Gil voltou ao Rio para acertar os passaportes e fez uma visita a Gal Costa e Mariah, mãe da cantora. Durante a conversa, caiu-lhe a ideia de um samba exaltando o Rio.

Burilado no avião e concluído em Salvador, “Aquele Abraço” marcou sua despedida do Brasil no show Barra 69: “Meu caminho pelo mundo/ Eu mesmo traço”.

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