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Alcir Pécora

Origem social, raça e repúdio modernista moldaram visões sobre Machado

Antologia reúne textos de 110 escritores sobre o autor de "Dom Casmurro"

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Alcir Pécora

Professor titular de teoria literária da Unicamp

[RESUMO] Antologia com textos sobre Machado de Assis reúne elogios, críticas e polêmicas de 110 escritores, de Rui Barbosa a Milton Hatoum. Questões raciais relativas a sua ascensão social como negro em uma sociedade escravocrata, a traição ou não de Capitu e a incompreensão dos modernistas sobre seu valor literário são alguns dos tópicos centrais nos debates a respeito desse autor de grandeza ímpar que ainda angustia e surpreende seus pares.

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Dediquei o último mês à leitura das mais de mil páginas dos dois volumes de “Escritor por Escritor: Machado de Assis Segundo seus Pares”. Trata-se de uma antologia de textos de autores brasileiros que escreveram sobre Machado, de 1908, ano de sua morte, a 2008, centenário dela.

O que primeiro me ocorre dizer a respeito dos volumes é que eles, por si sós, constituem um grande refrigério: o de ter em mãos uma pesquisa séria, conduzida por Ieda Lebensztayn, pós-doutoranda na Biblioteca Mindlin, e Hélio de Seixas Guimarães, professor de literatura brasileira da USP, a qual, por sua vez, foi publicada pela Imprensa Oficial do Estado de São Paulo e apoiada pelo CNPq.

Isso que deveria ser tão básico e corriqueiro —dinheiro público investido em pesquisa na área de humanidades —, surge, ao contrário, como matéria de surpresa e comemoração nas atuais circunstâncias tacanhas do país e do estado de São Paulo.

Outro aspecto especialmente benéfico da publicação é a divulgação que faz dos resultados de uma importante pesquisa de arquivo, o que deveria ser igualmente corriqueiro e óbvio, mas infelizmente está longe de ser o caso.

Da forma como se desenvolveu a área de letras no Brasil, a pesquisa documental é usualmente pouco valorizada. Um trabalho cuidadoso e de grande fôlego, como o de Lebensztayn e Guimarães, ajuda a assinalar, felizmente, uma mudança de perspectiva.

Para explicitar a abrangência representativa dele, basta dizer que reúne textos publicados, sobretudo em periódicos, de 110 autores diferentes, divididos quase a meio entre nascidos nos séculos 19 e 20. As suas balizas cronológicas extremas vão do texto pronunciado por Rui Barbosa na câmara ardente de Machado, no dia seguinte à sua morte, ocorrida em 29 de setembro de 1908, até o publicado por Milton Hatoum, para o Terra Magazine, em 22 setembro de 2008.

Os principais acervos consultados pelos pesquisadores foram os da Fundação Casa de Rui Barbosa (hoje, desgraçadamente, sob risco de desmonte) e da Biblioteca Nacional, ambos no Rio, e os acervos das Bibliotecas Mindlin e Florestan Fernandes, da USP.

O principal guia utilizado foram os cadernos de recortes do bibliófilo Plínio Doyle, atualmente depositados na Casa Rui, com cerca de “6.000 itens, entre artigos, reportagens e notas, publicados na imprensa brasileira entre a década de 1870 e o início dos anos 2000”. As principais bibliografias machadianas consultadas foram as de José Galante de Sousa, Jean-Michel Massa e Ubiratan Machado, as quais, em conjunto, compreendem um período que vai de 1857 a 2003.

O aparato crítico dos volumes conta com prefácios e posfácios curtos dos pesquisadores sobre o trabalho e seus resultados, além de mini-biobibliografias de cada um dos escritores relacionados e de referências bibliográficas fundamentais para os estudos.

A apresentação do vasto material é muito bem feita, contando com fotografias do Rio de Janeiro antigo de autoria de José Medeiros e de Thomaz Farkas, pertencentes aos acervos do Instituto Moreira Salles. Há ainda caricaturas de vários autores criadas pelo traço clean e preciso do ilustrador paraense J. Bosco. Um elogio adicional deve ser feito à editoração dos volumes que conseguiu reunir toda a informação de maneira caprichada, sem perder a sobriedade e a simplicidade.

Entrando propriamente no assunto dos vários textos elencados, a primeira observação a fazer é que a antologia reúne em ordem cronológica um conjunto representativo de discussões, críticas e polêmicas. Boa parte do material é conhecida, mas a coletânea dá nitidez a algumas questões.

Por exemplo, espanta o quanto a grandeza ímpar de Machado é percebida, exaltada, mas também, em não pequena proporção, é relativizada ou até radicalmente subtraída. E isso num meio literário acanhado em que a média dos escritores está muito abaixo dele, e no qual mesmo os melhores não podem se ombrear com ele.

Isto sugere, talvez, que boa parte das críticas mais acerbas tenham como origem a primitiva e humaníssima inveja. Mas não é tanto isso o que impressiona, e sim a forma que elas tomam, com recorrência de notas pessoais, além de uma série de debates arrevesados, nos quais, não raro, nem sutilmente, aflora a face vil do racismo.

No conjunto, os textos incidem tanto sobre a vida como sobre a obra de Machado, muitas vezes postulando separação ou contradição entre elas; outras vezes, ao contrário, defendendo a unidade indissolúvel de ambas.

Para falar primeiro dos textos que incidem mais sobre os acontecimentos da vida do autor, há muitos que concentram sua análise numa zona de conflito entre a sua origem de menino pobre, mulato, gago, criado no Morro do Livramento, agravada pela condição física e psicológica derivada da epilepsia, e o meio da elite política e cultural carioca.

Parte dos que o fazem encontram nesse conflito as bases em que se formaram tanto o temperamento discreto e tímido de Machado como o escopo singular de sua intervenção literária.

Assim, os que o veem com simpatia exaltam muitas vezes a sua capacidade de forjar, com a pura força do espírito, o que lhe negara a natureza ou a fortuna; outros veem aí a fonte de sua habilidade para a dissimulação e a prudência no trato de todos os assuntos que pudessem causar algum dano a sua carreira de funcionário público.

Há mesmo quem veja esse conjunto de esforço, inteligência e dissimulação como fruto do recalque da origem, o que lhe teria rendido um fundo permanente de sofrimento, agonia, melancolia ou aborrecimento. Aliás, psicologismos selvagens a propósito do obscuro íntimo de Machado são vastamente explorados, com maior ou menor malícia, pelos escritores.

Esses exercícios interpretativos de senso comum, que pouco elucidam a obra de Machado, deixam ver o incômodo que causava no meio letrado da época. Vários autores postulavam ser notável o seu esforço para alcançar nobilitação através da cultura, o que, traduzido em sua forma mais crua, equivalia a elogiar uma espécie de branqueamento de sua condição original.

Curiosamente, o preconceito não é menor por parte dos que criticavam esse mesmo branqueamento que lhe atribuíam. Então o defeito particular de Machado passava a ser a vergonha e a traição da origem, agravadas pelo casamento com uma portuguesa branca, tudo tendo em vista o êxito no serviço público e a ascensão social.

Quer dizer, sem sequer entrar no mérito da obra, Machado era duramente batido de um lado e de outro: branco por pretensão meritória ou por arrivismo condenável, mas sempre mulato envergonhado de sua condição a almejar a brancura que não tinha.

Aliás, a propósito, vários autores se pronunciam sobre os retratos disponíveis de Machado, e alguns não hesitam em apontar o gosto da vasta barba e do bigode, comuns à época, como índice de seu desejo de ocultar a cor da pele e os lábios pronunciados. Há textos tremendos a respeito, escritos entretanto com a pena leve de quem diz a coisa mais natural do mundo, quando não fundamentada na fisiognomia mais provada e científica.

Esse tipo de acusação ou de apologia não é exclusiva dos autores centrados na interpretação biografista de Machado. Para mostrá-lo, basta uma breve passagem pelas tópicas predominantes nas críticas das suas obras.

Machado de Assis em tom de rosa e fundo roxo
Ilustração - Mariana Waechter

Abreviadamente, talvez possam ser divididas em três ou quatro principais: a língua, o estilo, o gênero em que mais se destacou e, enfim, a sua “filosofia”, entendendo-se pelo termo uma síntese do sentido geral de sua produção literária.

Em relação à língua, há quase unanimidade em chamá-la “clássica”, isto é, de corte ático, atinente à melhor tradição literária portuguesa, alegadamente distante tanto dos barroquismos pedantes como dos brasileirismos pedestres. Esse mesmo ponto, entretanto, podia dar margem a encômios ou censuras.

Os que elogiavam viam nisso um índice de universalidade e controle estilístico horaciano, no qual medida, discrição e correção gramatical eram um objetivo literário em si mesmo. Os que criticavam faziam-no sobretudo pela perda de conexão com o Brasil e os brasileiros, em favor de um estilo submisso à matriz portuguesa.

Dessa forma, também considerações estilísticas desaguavam na questão da origem: o estilo escorreito não passaria de outra faceta do branqueamento que Machado tentava produzir em sua própria vida, escondendo o preto, pobre e brasileiro a fim de parecer aristocrático, castiço e europeu.

Em relação à questão dos gêneros literários praticados por Machado, os críticos da primeira hora mencionavam quase em pé de igualdade a sua poesia e a prosa de ficção, destacando ainda o seu teatro, a crônica e a crítica literária.

Com o passar dos anos, a prosa de ficção posterior a “Memórias Póstumas de Brás Cubas” (1881) passou a predominar inteiramente, com alguns autores chegando a propor que a sua obra relevante se reduzia a um volume de contos e aos cinco últimos romances.

A polêmica aqui se dá em torno de saber se ele era melhor nos romances ou nos contos, com grande divisão das opiniões. Já em relação às crônicas, o interesse parece ter crescido nos últimos tempos, quando antes, por vezes, eram consideradas leves, de salão ou para moças, vindo tudo a significar o mesmo.

A maior atenção às crônicas possibilitou reavaliar outra polêmica do passado que não via em Machado suficiente cor local ou interesse pelas paisagens cariocas. As crônicas parecem tê-lo reabilitado ao menos em termos de paisagem sociológica e retrato de época, com vários autores ressaltando nelas a pintura de tipos sociais, além do mero comentário do fait-divers da imprensa carioca.

Ainda na questão do gênero literário, quando se trata de discutir os conteúdos dos romances, não há assunto mais debatido do que o da suposta traição de Capitu em “Dom Casmurro” (1899). Enquanto alguns autores, convencidos pela argumentação da crítica norte-americana Helen Caldwell, já falavam dubitativamente dela, outros indignavam-se com a hipótese, jamais levantada em vida de Machado, e que, ao desfazer a traição, ainda fazia enlouquecer Bentinho.

Em relação à filosofia da obra, os críticos também divergiam. No início, a maioria fazia sobressair a faceta psicológica dos romances, que trariam análises agudas do caráter humano, mas se dividia no tocante à aptidão de Machado para aprofundar-se nas personagens femininas: uns achando que não, pois não era homem com experiência no assunto; outros assegurando que sim, pois as pintava com especial sutileza e perversidade.

Havia autores, entretanto, que liam Machado numa chave sociológica, apontando nele um retrato completo do Segundo Reinado (1840-1889) e a crítica consequente de seus tipos mais miúdos, banais ou ridículos.

No entanto, seja como representante do romance realista, naturalista ou psicológico, Machado é descrito muitas vezes como “filósofo” pessimista que, armado de um ceticismo irônico, de um humor à inglesa, decreta a derrota do homem, incapaz de erguer a cabeça acima das lamas conjunturais ou das misérias congênitas.

Também na interpretação dessa filosofia irônica e desenganada, muitas vezes associada à influência de Sterne, Swift e Schopenhauer, não faltaram polêmicas. Alguns viam nela uma posição original, crítica e legítima diante das monstruosidades do tempo e da fortuna; outros, apenas uma resignação conservadora, que livrava Machado da obrigação moral de se posicionar e de eventualmente arriscar o cargo e o pescoço.

Como última anotação, pode ser interessante observar que, nos três tipos mais graves de acusação a Machado —a saber, o de traição das origens, de estilização nobilitante e de reacionarismo fatalista—, ninguém excedeu a Mário de Andrade, ainda que alegasse ter sofrido muito para divulgar os seus reparos.

É caso de estudo a dificuldade gigantesca de compreensão do valor de Machado de Assis pelos modernistas, que não pode ser resolvida ou aliviada pela questão geracional, de novos contra velhos, ou pela adoção do mote drummondiano de que “amor nenhum dispensa uma gota de ácido”.

É o que tende a fazer o próprio Hélio Guimarães, em outra recolha de sua autoria, “Escritos de Carlos Drummond de Andrade sobre Machado de Assis”, publicada pela Três Estrelas (selo editorial do Grupo Folha) em 2019. E ainda que o alívio talvez possa se aplicar a Drummond, tendo-se em conta a sua trajetória poética posterior, de modo algum pode ser estendido aos paulistas e, especialmente, como disse, a Mário de Andrade.

De fato, a recalcitrância denuncia um não pequeno paradoxo, que não é possível deixar passar, sob pena de perder um verdadeiro nó crítico evidenciado pela antologia.

O único autor da literatura brasileira que poderia servir aos modernistas, não de simples anúncio ou antecipação, mas sim de modelo literário consumadamente moderno, com seu experimentalismo estético, sua perspectiva cosmopolita e ainda sua metodologia analítica da vida social brasileira, foi tratado como um quase parnasiano, de feição artística tradicional e de propósitos políticos conservadores.

Mas claro está que, ao ler Machado, os modernistas deixam-se ler por ele, e se o paradoxo que mencionei está bem apontado, então o desamor modernista por Machado é bem menos contingente do que parece.

Certamente não é o caso de esmiuçá-lo aqui, mas como estou com a mão no milhar de páginas da antologia, deixo aqui dois ou três palpites a respeito, na esperança de que algum especialista ou leitor mais autorizado possa aprofundá-los, ou, quem sabe, dissolvê-los.

Para os modernistas, a ideia de literatura está fortemente assentada sobre uma concepção nacionalista, na qual o valor da obra é determinado por uma instância de pertencimento político e afetivo, a literatura “nossa”. O que, nela, não está a serviço dessa constituição nacional corre o risco de ser taxada de frivolidade ou de macaqueação do estrangeiro.

Machado foi objeto de ambas as acusações e, sobretudo, incomodava a sua indiferença pela questão “brasileira”. E curiosamente parecia torná-la mais irritante a sua suposta preferência por autores ingleses, tratada por Mário como dupla inconveniência: por ser imitação e ainda por preterir os franceses, alegadamente mais adequados a um ethos nacional projetadamente iluminista.

Outro ponto importante de desentendimento em relação a Machado é a sua indiferença a uma ideia normativa e edificante de cultura e de literatura, o que era interpretado, nos termos duros de Mário, como “exercício aristocrático da hipocrisia” e “humour de camarote”, ajustados a uma crítica fatalista que não contribuía para a transformação do país.

O desencontro com Machado também está patente no evolucionismo pressuposto pelos modernistas, no qual o presente representa um progresso em relação ao passado, ao menos potencialmente —o que parece bem duvidoso em se tratando de obras de arte.

Seja como for, desse ponto de vista, Machado é “um oitocentista”, que não apenas desconhece, como nem sequer intui o cerne da atualidade ao valorizar na obra de arte sobretudo a técnica e a perfeição formal vazadas numa língua pretensamente castiça, que só a despeito da vontade dele mesmo alcança alguma brasilidade.

Subjacente aos três pontos, vale salientar a presença de um obstinado autocentramento, e de sua contraparte, o expansionismo anacrônico, já que a leitura modernista de Machado está ostensivamente regulada por questões que não eram as dele, nem há porque supor que fosse falta dele ignorá-las.

Em termos de valor estético e historiográfico, fundamentalmente, Mário não admite autonomia da obra de arte face ao projeto nacionalista. Ou o autor partilha do corpo místico da “nossa literatura”, ou não pode ser cultuado, e, ainda quando o seja, não merece ser amado.

É quase como se o modernismo se recusasse a ser um acontecimento literário e cultural dentro do país para se reivindicar precursor da noção mesma de Brasil, ao menos do “nosso Brasil”. Daí o problemão representado por Machado ao não comungar nessa missa, e, ao mesmo tempo, ocupar um lugar grande demais fora dela.

Não havia alternativa: para que o modernismo pudesse realmente valorizar a obra machadiana, havia de abandonar a visão paroquial que tinha da evolução literária brasileira, mas acho que disso nunca chegou a abrir mão.

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