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Força da narrativa de Bolsonaro sobre Covid-19 indica que tormento não vai passar tão cedo

Para grupo de análise de conjuntura, bases do Brasil como nação se tornaram ainda mais frágeis com a pandemia

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[RESUMO] Intelectuais revisitam projeções sobre o futuro do bolsonarismo feitas no início da pandemia e apontam fatores estruturais e conjunturais que levaram o discurso negacionista do presidente sobre o coronavírus a prevalecer.

*

​I

Até o momento, o governo de Jair Bolsonaro passa de modo relativamente confortável pelo enorme desafio representado pela pandemia do novo coronavírus. Como explicar que, frente a uma catástrofe humana que ultrapassa 150 mil mortes, Bolsonaro ainda conte com apoio da ordem de 40% junto à opinião pública?

Em 24 de abril passado, publicamos na Ilustríssima um artigo sobre os potenciais efeitos da pandemia no futuro do bolsonarismo, examinando as oportunidades que então se abriam para a oposição. Convém fazer agora um balanço das projeções ali realizadas.

No texto original, dissemos que o governo e, mais amplamente, o bolsonarismo enunciavam um projeto autoritário que se tornava cada vez mais explícito. Lembramos que o caso do Brasil se inseria em um movimento mundial de deterioração democrática, para o qual a pandemia se tornava álibi, como no caso, por exemplo, do primeiro-ministro húngaro, Viktor Orbán.

Contudo, o presidente do Brasil não vinha usando o combate à Covid-19 como pretexto para reforçar o Poder Executivo. Ao contrário, decidira questionar a importância da doença.

Bolsonaro ampliou o ataque às instituições pela via do negacionismo, refutando os enormes riscos à saúde pública trazidos pelo vírus e travando uma guerra contra outros atores estatais e Poderes constitucionais, especialmente órgãos técnicos federais e governadores pró-medidas de isolamento social.

A questão fora colocada em termos dicotômicos: era preciso escolher entre o combate à provável morte física pela doença e a luta contra o inevitável óbito econômico decorrente das recomendadas medidas de isolamento. O presidente optou claramente pela segunda e apareceu como defensor irrestrito (e quase único) do emprego e da renda da população, imagem continuamente sustentada pelo mantra do direito de ir e vir, de trabalhar etc.

À época, avaliamos que essa seria uma estratégia de alto risco, ainda que condizente com a postura belicosa e polarizante do atual mandatário. O risco elevado devia-se ao quadro catastrófico previsível, com a doença se espalhando rapidamente, o sistema de saúde em várias regiões próximo ao colapso e o negacionismo presidencial dificultando, quando não impossibilitando, a coordenação das políticas públicas necessárias.

Observamos que tal situação abria uma janela de oportunidade para a luta da oposição contra o projeto autoritário de Bolsonaro: dado que o vírus é um inimigo invisível e que a luta contra ele só é eficaz se for coletiva, a situação trazia o potencial de colocar em destaque afetos e valores antagônicos à corrente ideológica encarnada pelo presidente, como solidariedade e espírito de comunidade, além de requerer um modelo de Estado oposto àquele defendido pelo governo, sobretudo no plano econômico.

Localizamos aí uma vulnerabilidade crucial do bolsonarismo: a pandemia demandava um Estado forte de um governo cujo ministro da Economia pregava o Estado mínimo, quando não, em determinadas áreas, o próprio fim do Estado.

II

O que vimos acontecer? Bolsonaro jogou simultaneamente em duas posições opostas: de um lado, adotou —ainda que, em parte, por pressão da sociedade civil repercutida no Poder Legislativo— importantes medidas emergenciais de sustentação de emprego e renda; de outro, continuou a reforçar, via Paulo Guedes, a realização das reformas estruturais liberais programadas, que desidratam a capacidade do Estado de enfrentar crises.

Na verdade, a pandemia, ao jogar para segundo plano, mesmo que momentaneamente, os impasses da política econômica, criou uma janela de oportunidade favorável ao governo, diferente da que esperávamos. Com a aprovação, pelo Congresso, do estado de calamidade e do chamado orçamento de guerra, criou-se a chance de o governo efetuar concessões reais à população, sem que isso significasse um rompimento com o mercado.

A aprovação do auxílio emergencial trouxe um aporte de renda da maior importância para os estratos carentes da população durante uma das maiores quedas econômicas da nossa história. O benefício, que foi prorrogado até o fim de agosto e reduzido pela metade entre setembro e dezembro, chegou a mais de 65 milhões de pessoas (um terço da população), tendo sido o principal responsável por atenuar a queda prevista do PIB brasileiro de 2020, mesmo se comparada com a recessão projetada em países que obtiveram sucesso em controlar a enfermidade.

O volume de recursos destinados ao programa, considerados apenas os três primeiros meses de vigência, ultrapassou o valor anual do Bolsa Família, compensando o aumento das desigualdades nas rendas do trabalho em meio à grande perda de empregos.

O expressivo ganho de popularidade do presidente junto aos setores mais carentes da sociedade, decorre, ao que tudo indica, da concessão do auxílio emergencial. Essa alteração acabou compensando a perda de apoio sofrida junto às camadas de renda mais elevada, resultante do negacionismo e dos péssimos resultados do governo no enfrentamento da doença, podendo também ter tido peso aí os problemas policiais da família Bolsonaro e a saída de Sergio Moro do cargo de ministro da Justiça.

Bolsonaro percebeu o impacto positivo de robustos programas de transferência de renda. Insistiu, por isso, na criação do Renda Brasil, um Bolsa Família algo mais generoso e de maior escopo. No entanto, em cenário dominado pelos humores do mercado, com seus agentes ainda vendo em Guedes um emissário no Poder Executivo, e com o andamento das políticas governamentais em uma conjuntura pós-pandemia, amarrado pelo teto de gastos, Bolsonaro viu-se obrigado a abrir mão do projeto.

O capítulo mais recente da novela, com o tumultuado anúncio do Renda Cidadã, não mudou nada, pois a fonte de financiamento do “novo” programa continua a ser vista pelo mercado financeiro como simples manobra para furar o teto.

O involuntário sucesso do governo no plano da política econômica durante a pandemia e os desafios agora enfrentados para manter uma versão desidratada de auxílio emergencial confirmam nosso diagnóstico de fins de abril, de que os desafios colocados no plano econômico constituem a principal encruzilhada do atual governo.

Sem estado de calamidade e sem orçamento de guerra, a combinação de qualquer programa musculoso de transferência de renda com o teto de gastos é uma impossibilidade, a menos que outros direitos sociais sejam retirados ou reduzidos. Este pode vir a ser, de fato, o caminho escolhido, apesar de não significar a resolução do problema.

De todo modo, o perfil ultraliberal do governo apresenta sua conta —vide a proposta de Orçamento do Ministério da Economia para 2021, que não deixou qualquer espaço para uma expansão de gastos em áreas com enormes desafios, como saúde e educação—, o que só aguça o dilema entre agradar ao mercado ou à nova base social que o bolsonarismo quer conquistar.

III

Mas se acertamos na indicação de que os impasses postos pela adoção de uma política ultraliberal deveriam se aguçar com o agravamento da situação econômica provocado pela pandemia, a quantidade impressionante de mortos pela Covid-19, que ainda cresce dia a dia, colocando o Brasil como contraexemplo internacional do que deve ser feito, não parece ter provocado os estragos que vislumbrávamos, seja em relação à comoção fruto do desastre, seja em relação à própria popularidade do presidente. Por quê?

Uma primeira e importantíssima hipótese, como já antecipado, relaciona-se ao papel decisivo do auxílio emergencial para a minimização dos impactos da crise sobre as camadas mais carentes da população, que são também as mais afetadas pela informalidade nas relações de trabalho. Outras medidas do governo aprovadas pelo Congresso, como o benefício para a manutenção do emprego e da renda de trabalhadores formais, também podem ter influenciado no mesmo sentido.

Uma segunda hipótese está ligada à mudança de postura de Bolsonaro, agora de caráter mais acomodatício frente a forças políticas tradicionais.

No meio da pandemia, em meados de junho, a prisão de Fabrício Queiroz e o avanço no inquérito sobre fake news emudeceram os constantes ataques de Bolsonaro aos poderes constituídos, forçando-o a uma aliança com o pântano político conhecido como centrão. Sem essa reconciliação com suas origens políticas, os inúmeros processos de impeachment na Câmara poderiam vir a prosperar, já que o governo, até então, não havia formado base parlamentar consistente.

Por fim, no início de julho, para a sua própria sorte, Bolsonaro foi forçado a se isolar por cerca de duas semanas após ter contraído o coronavírus, tendo saído do confinamento com postura mais contida e aparentemente mais próxima ao centrão. O afastamento de Moro e o desmonte da Lava Jato promovido pela Procuradoria-Geral da República, em conjunto com a indicação de Kassio Nunes para o STF (Supremo Tribunal Federal), representam o coroamento dessa aliança.

Enfim, a mudança de estratégia a partir de meados de junho trouxe à tona novela conhecida e perigosíssima: a normalização do presidente junto aos meios políticos e à grande imprensa.

As elites conservadoras podem até torcer o nariz para Bolsonaro e para seu jeito grosseiro, vulgar e brigão (da mesma forma como a aristocracia e elites econômicas da Itália dos anos 1920 se comportaram com Mussolini), mas isso não basta para que se unam com o fito de derrubá-lo, como fizeram com Dilma, ainda mais agora que o presidente mostra-se, mesmo que temporariamente, dócil com o sistema político.

Os chamados por união nacional que proliferaram no auge da pandemia no Brasil não visavam de fato um impeachment, mesmo se evidências materiais contra Bolsonaro existissem abundantemente.

Na verdade, essas conclamações e o próprio cabedal de provas de crime de responsabilidade serviram, junto com Queiroz, inquérito das fake news et caterva como peças adicionais para a renegociação dos sistemas de partilha de poder no interior do Estado brasileiro e para a enésima tentativa de "domesticação" de Bolsonaro. Tudo isso, claro, visando evitar qualquer possibilidade de a esquerda disputar o poder novamente.

Em suma, o andar de cima teme mais o retorno da esquerda que o aprofundamento do autoritarismo por meio do fascismo à brasileira de Bolsonaro.

Porém, esses elementos —do auxílio emergencial à normalização do presidente— são fatores conjunturais no quebra-cabeça. Apesar de terem seu peso, certamente não dão conta do fenômeno como um todo. Por isso, arriscamos, a partir daqui, sugerir algumas outras hipóteses ancoradas, desta feita, em elementos de ordem estrutural.

Um primeiro elemento está relacionado à postura antissistema de Bolsonaro, que data de muito antes da pandemia e que o presidente soube instrumentalizar ao colocar-se em oposição às medidas de isolamento social (suposto autoritarismo dos governadores e de órgãos técnicos), posando, ao mesmo tempo, de paladino das liberdades individuais.

Ademais, o fato de Bolsonaro ter aparentado defender sozinho o emprego e a renda da população, apagando o importantíssimo papel do Congresso na aprovação das medidas emergenciais, reforçou o mito do “salvador acorrentado”, refém de instituições corruptas e antinacionais —dos governadores ao STF, do Parlamento ao próprio Ministério da Saúde.

Em paralelo, a renitente negação da gravidade da doença trouxe à tona elementos intrínsecos ao bolsonarismo, que têm raízes na tradição fascista brasileira, como a glorificação da violência, o desprezo aos fracos e a destruição da solidariedade social genérica.

Porém, a força desses componentes ideológicos não pode ser sobre-estimada. Em princípio, eles teriam eco apenas no núcleo duro do bolsonarismo, a parcela de aproximadamente 12% da opinião pública que apoia o presidente de forma quase incondicional, tal como detectado pela análise dos dados da pesquisa Datafolha.

Para ir além desse plano, é preciso trazer à cena outra marca estrutural e substantiva da sociedade nacional: a clivagem entre as classes no Brasil, onde a socialização dos estratos médios e altos se dá em um espaço hierárquico muitos graus acima do das camadas pobres, o que pode ter produzido angústias e dilemas bem diferentes frente à pandemia.

Enquanto o primeiro grupo temeu principalmente a morte pela doença, o segundo (sem deixar de temer a própria doença, é claro) parece ter receado, principalmente, a completa destituição econômica em virtude das medidas de isolamento —o que, evidentemente, reforça o significado que veio a ter, junto aos segmentos de baixa renda, a concessão do auxílio emergencial.

A primazia conferida ao agravamento da situação material, ao invés de à ameaça representada pelo vírus, pode estar associada ao fato de a experiência da morte violenta ser uma contingência desde sempre presente no cotidiano dos segmentos populares no Brasil.

Se a morte pela doença assusta e fragiliza as classes médias e altas, essa é só uma possiblidade dentre várias às quais as populações periféricas, em geral negras, são constantemente submetidas no seu cotidiano, repleto de violência criminal e brutalidade policial. Dessa forma, quando Bolsonaro reage à pandemia com o discurso do “e daí?”, do “não sou coveiro”, e do “todo mundo morre um dia”, talvez esteja ressoando a dura experiência presente no dia a dia de parte significativa da população.

Na análise desse fenômeno da “naturalização” das mortes, é imperativo considerar o fator racial. Como demonstram estudos abalizados, o racismo não é um corpo estranho ou um componente exterior da formação social brasileira; pelo contrário, é historicamente um dos elementos organizadores de nossa sociabilidade, em seus aspectos ideológico, jurídico, político e econômico.

Assim, uma hipótese plausível para a indiferença em relação às mortes no Brasil pode estar no fato de o racismo estrutural conter uma dimensão ideológica, cuja análise é fundamental para a compreensão de como a violência se normaliza no cotidiano.

É por meio da produção de um imaginário social racista, disseminado pelos meios de comunicação de massa, pelo sistema educacional e pela cultura popular (negros são representados de forma subalterna ou como criminosos), que a atuação violenta das instituições e a desigualdade econômica ganham sentido, justificação e até racionalidade.

Em consequência, ao invés de evidenciar o caráter insuportável do permanente extermínio das camadas vulneráveis da população, sobretudo negros, a situação criada com a pandemia permitiu que Bolsonaro utilizasse a seu favor essa normalização aberrante. Não se sabe até que ponto tal comportamento derivou de um cálculo estratégico ou se igualmente foi mero acerto involuntário, mas é preciso conferir peso a esse fator.

Vale notar ainda que a insistência do governo em tratar a pandemia como uma “questão privada”, como algo que “cada indivíduo” deveria cuidar, e não como uma questão coletiva, compartilhada, de vida comum, converge com a política de produção de indiferença social, que é elemento fundamental do bolsonarismo e que, no caso específico da catástrofe da pandemia, traz consigo a completa ausência de luto coletivo, de dolo e de comoção que a situação de mais de uma centena de milhares de mortos naturalmente tenderia a provocar.

Na mesma chave, cabe chamar a atenção para a congruência da narrativa presente no discurso privatista, seja com o ideário neoliberal e a importância aí conferida ao indivíduo, à meritocracia e ao empreendedorismo, seja com o contexto da teologia da prosperidade neopentecostal, cada vez mais disseminada, que valoriza a manifestação da graça na satisfação de desejos de proteção e de prosperidade individual.

Por fim, lembremos que o fenômeno não é exclusivo do Brasil. Nos Estados Unidos, Donald Trump exibe a mesma postura negacionista, de defesa da liberdade econômica e de contrariedade com as políticas de isolamento —não por acaso, até o momento, EUA e Brasil são, em termos absolutos, o primeiro e o segundo países do mundo em número de mortos e o primeiro e o terceiro em número de infectados pelo novo coronavírus. No entanto, os presidentes de lá e de cá mostram surpreendente resiliência junto a cerca de 40% do eleitorado.

Uma análise comparativa dos efeitos da pandemia implicaria examinar a gestão sistêmica da economia e política mundiais em contexto de predomínio de valores e práticas neoliberais, o que não temos espaço para desenvolver aqui.

Incluem-se nesse âmbito temas como o desgaste do potencial de moderação das democracias liberais e o enfraquecimento de instituições como partidos, sindicatos e movimentos sociais, a desorganização das classes e do mundo do trabalho, com o deslocamento de empresas para o setor de serviços, e a disseminação de atividades informais, intermitentes, uberizadas e de alta rotatividade.

A menção a resultados semelhantes no Brasil e nos EUA, a nação mais rica e poderosa do planeta, parece suficiente, no entanto, para perceber que o fenômeno brasileiro está ancorado em transformações de monta, que atingem globalmente a economia e a sociedade modernas.

Em resumo, por força de razões conjunturais e estruturais, a narrativa de Bolsonaro de que seria preferível a (provável) morte física à (certa) morte econômica acabou por prevalecer. Isso ajuda a explicar por que o gesto contundente e decisivo das forças oposicionistas, conclamado no artigo original que escrevemos, acabou não ocorrendo.

É preciso igualmente reconhecer que não se consumou a expectativa de que a necessária solidariedade, exigida pelo enfrentamento de uma crise de saúde pública de tamanha gravidade, fosse colocar a nu o desprezo pela vida humana inscrito na estratégia negacionista de Bolsonaro.

Em meio ao despontar de elementos fascistas que estamos presenciando, o estoque de solidariedade da sociedade brasileira parece estar muito rebaixado, existindo apenas local e pontualmente, no interior de determinadas comunidades; não, porém, na amplitude e profundidade que a situação exige.

Não cremos estar muito longe da verdade se afirmarmos, neste ponto, que os fundamentos constitutivos do país como nação, que nunca foram muito firmes, a começar da clivagem de partida constitutiva da escravidão e do racismo que nos marca histórica e politicamente, vão se tornando ainda mais frágeis neste período de ascenso de valores fascistas e de eleição de inimigos internos.

IV

Quais lições podemos tirar da pandemia e dos efeitos políticos do negacionismo de Bolsonaro? A primeira é que dilema econômico do governo foi temporariamente afastado, mas de forma alguma extinto. O impasse entre teto de gastos e políticas neoliberais versus programas consistentes de transferência de renda é cristalino, e tende a estar presente no próximo ano, com o fim do auxílio emergencial, do estado de calamidade e do orçamento de guerra.

Não estando primordialmente na pandemia, a arena de luta deverá fixar-se na bomba-relógio econômica e social representada pelas consequências do fim do auxílio emergencial, conjugado a um contexto de desemprego recorde, economia letárgica e milhares de empresas e empreendimentos destruídos, muitos dos quais sem possibilidade de se reerguer, mesmo com a plena normalização das atividades.

A segunda é que as oposições de modo geral não se mostraram preparadas para enfrentar um tipo de fenômeno como o bolsonarismo, que se revela, depois de oito meses de pandemia, mais profundo e complexo do que se poderia imaginar.

Considerando que a crise sanitária ainda é uma triste realidade para milhares de brasileiros e que a evolução da doença segue envolta em incógnitas, não é de pouca importância a prevalência da narrativa presidencial quanto à necessidade de evitar a morte econômica mais do que combater o vírus.

Em vista do cansaço da sociedade com a quarentena e da possibilidade de vacina nos próximos meses, o campo de luta da oposição tenderá a deixar de fora a pandemia, mas isso não significa que se deva negligenciar os fatores estruturais e conjunturais discutidos acima que contribuíram para a vitória da narrativa bolsonarista.

Dada a clara intenção de ter algum programa que amorteça efeitos potencialmente devastadores para sua popularidade de uma crise econômica pós-pandemia e diante das restrições que o governo enfrenta junto ao mercado para se livrar do teto de gastos, é possível que Bolsonaro aprofunde a estratégia de compensar o gasto adicional com um desmonte mais completo das estruturas de políticas públicas e a redução de direitos constitucionalmente consignados.

Se a estratégia vingar, estarão abertos os caminhos de uma aliança mais duradoura de forças conservadoras, tendo por pivô um líder autoritário de extrema direita que, mantendo bons índices de popularidade e aparentando observar as regras do jogo democrático, prosseguirá no trabalho de corroer pouco a pouco os alicerces da democracia.

Contudo, não se pode descartar um cenário com bem menos margem a eufemismos, no qual a redução de direitos em proveito de uma política de transferência de renda, combinada com uma crise econômica profunda após a pandemia, lance lenha na fogueira do conflito social intraclasse, a opor trabalhadores que vivem na informalidade àqueles que detêm direitos trabalhistas, tachados de privilegiados.

Essa segunda possibilidade, ao contrário da anterior, pressagia situação de altíssima instabilidade política. A história do século 20 nos ensina que conjunturas similares raramente favorecem as forças democráticas e de esquerda. Dependendo das alternativas disponíveis, pode até mesmo reaguçar o ferrão fascista que o bolsonarismo carrega consigo.


André Singer é professor titular do Departamento de Ciência Política da USP.

Christian Dunker é professor titular do Instituto de Psicologia da USP.

Cicero Araújo é professor titular do Departamento de Ciência Política da USP.

Felipe Loureiro é professor associado do Instituto de Relações Internacionais da USP.

Laura Carvalho é professora associada do Departamento de Economia da USP.

Leda Paulani é professora titular do Departamento de Economia da USP.

Ruy Braga é professor titular do Departamento de Sociologia da USP.

Silvio Almeida é professor da Fundação Getulio Vargas e da Universidade Presbiteriana Mackenzie.

Vladimir Safatle é professor titular do Departamento de Filosofia da USP.

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