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João Brant

Modelo de aplicativos de mensagens enterra o debate público

Sem regras definidas em lei, empresas não mudarão serviços para não perder usuários, avalia pesquisador

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João Brant

Doutor em ciência política pela USP e consultor e pesquisador em políticas de internet, comunicação e cultura. Foi secretário-executivo do Ministério da Cultura (2015-2016)

[RESUMO] Autor argumenta que modelo de comunicação de massa anônimo e opaco dos aplicativos de mensagens enterra o debate público e favorece a disseminação de conteúdos falsos, o que abala os pilares da democracia. Uma solução seria alterar a arquitetura desses serviços de modo a permitir a identificação dos responsáveis por viralizar informações ilícitas, mantendo-se, contudo, os mecanismos de privacidade nas conversas interpessoais.

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A pandemia e as eleições reaqueceram o problema da desinformação nos aplicativos de mensagens. Como mostrou uma reportagem da Agência Pública, a partir de pesquisa da UFMG e da USP, 7 das 10 imagens mais compartilhadas em grupos de WhatsApp nos primeiros três meses da pandemia eram falsas, e 60% ligavam a Covid-19 a uma conspiração chinesa.

No caso das eleições municipais, ainda não dá para saber o impacto da desinformação, até porque o pico da poluição informacional costuma se dar perto do pleito, mas já há em vários estados processos sobre notícias falsas na Justiça Eleitoral.

Embora a real dimensão do problema seja invisível, a parte exposta já assusta. Uma sociedade democrática não pode naturalizar o fato de uma parte significativa das informações consumidas pela população ser falsa ou enganosa.

Também não deve ser naturalizada uma suposta falta de soluções. Há ações que podem enfrentar o principal problema: o enterramento do debate público nos aplicativos de mensagens. Antes de entrar nas sugestões, porém, vale aprofundar o diagnóstico.

Logotipo do WhatsApp
Logotipo do WhatsApp - Lionel Bonaventure - 28.dez.16/AFP

Ornitorrinco digital

Os serviços de mensagens são, ao mesmo tempo, meio de comunicação interpessoal e meio de comunicação viral. Na comunicação interpessoal (entre indivíduos ou em grupos), garante-se, quando há criptografia, a privacidade das conversas, fundamental no diálogo privado.

Por outro lado, se tomarmos o exemplo do WhatsApp, permite-se que cada usuário participe de até 10 mil grupos com até 256 integrantes (acessíveis inclusive por links abertos) e de ilimitado número de listas de transmissão com até 256 membros cada.

Esse arranjo possibilita a viralização de mensagens para milhões de pessoas em minutos, sem identificação do remetente inicial.

O WhatsApp alega que mensagens que viralizam amplamente são apenas 0,5% do total. A questão central, contudo, não é o número relativo, mas o absoluto. A empresa informa que são veiculadas globalmente 80 a 100 bilhões de mensagens por dia; 0,5% disso representa 400 a 500 milhões de mensagens.

Considerando o número de usuários no Brasil, é possível supor que pelo menos 10% dessas mensagens circulem aqui, ou seja, no mínimo 40 milhões. No período eleitoral, é provável que esse número cresça.

O número absoluto é, portanto, alto e relevante, independente de ser pequeno relativamente ao total de mensagens. Em um exemplo grosseiro, é como se na década de 1990 fossem comparados o número diário de matérias de TV e o de ligações telefônicas. O primeiro seria bem menor, mas com muito mais impacto na democracia pelo seu caráter maciço.

As mensagens virais se multiplicam nos aplicativos em um ambiente opaco. Não há um painel público em que sejam postadas —elas só são visíveis pelos destinatários. Você pode ser vítima de uma campanha de difamação que alcança metade da população e não saber disso. Ou pode até saber, mas não terá como se defender. Perspectivas circulam sem o contraditório. Notícias falsas se disseminam sem oportunidade de questionamento.

Aqui vale dizer: a criptografia, às vezes apontada como problema, não deve levar a culpa. Aplicativos sem criptografia também são opacos, e ela é essencial para garantir confidencialidade na faceta interpessoal dos serviços.

As mensagens virais também se aproveitam de o anonimato ser regra geral no WhatsApp. A longa história de boatos na política sempre se valeu do anonimato, mas a diferença é que eles antes circulavam boca a boca ou em panfletos apócrifos. No mundo da internet, passam a ter impacto gigantesco.

O anonimato na comunicação de massa é importante como exceção para proteger pessoas e grupos vulneráveis, mas quando se torna regra gera dois problemas. Primeiro, a circulação de conteúdo sem autor impede, na prática, a responsabilização moral e legal. Isso cria um mecanismo de incentivo à distribuição de conteúdos enganosos ou calúnias com finalidade política.

O segundo problema do anonimato como regra é que ele abre caminho para a exploração perniciosa de fragilidades da psicologia humana. Conteúdos sem autoria são mais facilmente repassados, porque não dependem da credibilidade do autor e não responsabilizam moralmente quem repassa.

Além disso, mesmo que sua funcionalidade principal não seja guiada por algoritmos e inteligência artificial, a própria arquitetura do aplicativo e seus recursos induzem determinadas condutas. Como aponta a antropóloga Letícia Cesarino, o ambiente dos grupos fechados é marcado por ritmo intensivo, confiança baseada em relações pessoais, fusão de contextos pessoais, sociais e profissionais e isolamento do contraditório.

O isolamento é reforçado pela lógica de comunicação viva e síncrona de ambientes privados. Nesse tipo de espaço, torna-se custoso emocionalmente participar de debates com contraditório forte. A tendência gradual é os grupos se tornarem mais homogêneos.

O enterramento do debate público

Esse problema afeta a democracia em vista do lugar que os aplicativos de mensagens ocupam no processo de formação da opinião. No Brasil, pesquisa do Instituto Reuters com a Universidade de Oxford mostra que, em 2020, as mídias sociais ultrapassaram a televisão como fonte de notícias. O WhatsApp aparece junto com o YouTube como a principal rede social para uso geral e como a segunda principal fonte de notícia, atrás apenas do Facebook.

Não há dúvida de que aplicativos de mensagens têm enormes contribuições sociais. O problema é que o modelo de comunicação de massa opaca e majoritariamente anônima, que caracteriza os aplicativos, implica o enterramento do debate público. Impede que haja escrutínio de ideias e dificulta a visibilidade de perspectivas contraditórias.

Sem transparência, a confiabilidade da informação é diretamente fragilizada. Em arenas de discussão visíveis ao público e com responsabilidade moral e legal dos interlocutores, a mentira tem menos chance de prosperar. Talvez por isso o problema de notícias falsas não fosse tão relevante até 2014.

É pilar da democracia que os cidadãos estejam bem informados para a tomada de decisão. Estar bem informado, todavia, depende do acesso a informações plurais, diversas e confiáveis. Nesse sentido, liberdade de expressão e acesso à informação são siameses.

O problema é que esses valores democráticos não são levados em conta pelos aplicativos. Não é suficiente quebrar os monopólios ou tentar inibir comportamento abusivo dos usuários se a própria arquitetura dos serviços induz esses comportamentos.

A armadilha está no fato de que o caráter interpessoal de parte das mensagens atrai para todo o serviço, inclusive para as mensagens virais, um modelo de tratamento de dados próprio das comunicações privadas, baseado em privacidade e confidencialidade. O debate público nas democracias, contudo, precisa de luz.

Há saídas

No Brasil, a questão aparece no projeto de lei de enfrentamento à desinformação que está em análise na Câmara dos Deputados, depois de passar pelo Senado. O polêmico artigo 10 buscou mitigar uma parte dos problemas com a rastreabilidade de mensagens virais, que ofereceria elementos de investigação para identificar os responsáveis por informações ilícitas. Sou a favor desse caminho, mas reconheço que traz riscos, como apontam seus críticos, pela fronteira turva entre comunicação interpessoal e comunicação viral.

De qualquer forma, soluções técnicas poderiam mitigar não só o problema da responsabilidade, pela identificação de remetentes de mensagens, mas também o da opacidade. Para ao mesmo tempo proteger a comunicação interpessoal e jogar luz sobre a comunicação viral, os serviços de mensagem poderiam oferecer ao usuário a possibilidade de separar as funções.

Isso seria feito, por exemplo, com a oferta de recurso para o criador da mensagem optar sobre a possibilidade ou não de encaminhamento. Seria análogo ao que faz o Facebook quando oferece ao usuário a alternativa de a postagem ficar restrita a amigos ou ser pública e compartilhável.

Se os aplicativos condicionassem a viralização a uma autorização do usuário, conseguiriam proteger completamente as mensagens interpessoais e ao mesmo tempo jogar luz sobre as mensagens virais. Seriam dois paradigmas distintos dentro do mesmo serviço, a serem escolhidos pelo usuário.

Medidas como essa, embora simples, alteram a modelagem do serviço. Porém, se não houver regras definidas em lei, as empresas não mexerão nos produtos, sob pena de perder usuários para concorrentes.

A solução proposta é apenas um dos caminhos possíveis —certamente há outros, que devem ser debatidos. A arquitetura dos serviços de mensagens não leva em conta valores democráticos e cria, na prática, um ambiente suscetível à manipulação por grupos políticos com poder econômico, sem responsabilização por mentiras e ataques.

Se esses serviços têm centralidade na formação da opinião da sociedade, como acontece no Brasil, isso contamina todo o ambiente informacional. A consequência é a violação do direito de acesso à informação diversa e confiável, componente central do direito à liberdade de expressão, pilar da democracia.

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