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Bianca Santana, Eugênio Bucci e Ivo Herzog

Modelo de negócio das big techs é incompatível com a democracia

O que pode mudar cenário de desinformação é a quebra do monopólio de plataformas globais

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Bianca Santana

Doutora em ciência da informação pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, mestra em educação e jornalista. Autora de “Arruda e guiné: resistência negra no Brasil contemporâneo” (Fósforo, no prelo), "Continuo preta: a vida de Sueli Carneiro" (Companhia das Letras, 2021) e "Quando me descobri negra"(SESI-SP, 2015).

Eugênio Bucci

Jornalista e professor da ECA-USP

Ivo Herzog

Presidente do conselho do Instituto Vladimir Herzog

[RESUMO] Autores defendem que projeto de lei sobre fake news em tramitação na Câmara dos Deputados acerta ao regular práticas abusivas, como o impulsionamento artificial de conteúdos, mas não será suficiente para combater a desinformação generalizada por não enfrentar o monopólio das plataformas globais, cujo modelo de negócio distorce a esfera pública democrática.

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O projeto da Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet (PL 2630/20), apelidado de lei das fake news, depois de aprovado no Senado, agora tramita na Câmara Federal.

O projeto congrega as melhores motivações. Ninguém aqui é contra o ideal de livrar a sociedade dos malefícios causados pela indústria da desinformação, em boa medida financiada por fontes obscuras, na semiclandestinidade ou mesmo na ilegalidade mais escarrada. Além de mentiras, essa indústria dissemina calúnias cruentas, ameaças de todo tipo (até mesmo de morte) e preconceitos inaceitáveis.

Trata-se de um uso planejado e intencional das plataformas digitais, que ameaça gravemente a democracia, contra a vigência dos direitos humanos e mesmo contra as liberdades fundamentais, pois impõe um tal regime de intimidações violentas que acaba por inviabilizar a livre expressão das ideias e das opiniões.

Boas intenções à parte, o PL guarda a ilusão de que as leis são capazes de resolver a questão da verdade no debate público. Ilusão, de fato. Se a lei pudesse limitar a circulação de mentiras, bastaria um único artigo na Constituição proibindo a mitomania e tudo o mais estaria solucionado. As coisas não são assim.

A versão do PL que circulou em meados de setembro ainda apresenta, infelizmente, pontos imprecisos e dependentes da subjetividade (ou do subjetivismo jurídico) da autoridade a quem cabe a aplicação da lei. O legislador precisa trabalhar melhor para que o PL seja depurado desses desvios.

É o que notamos no artigo 41, que estabelece pena de reclusão de até cinco anos para quem participar de “ação coordenada” para “disparo em massa de mensagens que veiculem conteúdo passível de sanção criminal ou fatos sabidamente inverídicos capazes de colocar em risco a vida, a integridade física e mental, a segurança das pessoas, e a higidez do processo eleitoral”.

Ora, mas o que são “fatos sabidamente inverídicos”? Descontada a incongruência vocabular do legislador —que chama de “fatos” o que pode ser considerado “inverídico”, sem atentar para que um fato para ser de fato um fato só pode ser fato verídico—, a bomba-relógio instalada no artigo está no “sabidamente inverídico”.

Quem é que vai decidir o que é ou não é inverídico? Um cidadão mais, digamos, bolsonarista considerará inverídicas as notícias sobre queimadas nas florestas brasileiras. Vai ser assim mesmo? E em um cenário de criminalização de movimentos sociais, uma publicação por reforma agrária ou uma manifestação antirracista poderiam ser interpretadas como “conteúdo passível de sanção criminal”?

O mesmo desacerto se manifesta no artigo 6º, parágrafo 1º. Nesse ponto, o PL afirma que será mantida a plena liberdade para a “manifestação artística, intelectual, de conteúdo satírico, religioso, político, ficcional, literário ou qualquer outra forma de manifestação cultural”. Muito bom, mas e quando um juiz tomar como “fato sabidamente inverídico” aquilo que o autor tem como “conteúdo satírico”? Que subjetividade prevalecerá nesses casos?

A sensação ao ler o PL é de apreensão e de um certo constrangimento. Parece que o legislador não atinou direito com a matéria. No artigo 40, inciso II, trata-se da criação da “instituição de autorregulação” (o mesmo texto legal a chama também de “entidade de autorregulação”), que deverá contar com a participação de representantes da “imprensa” e “do jornalismo audiovisual”.

Ora, esse tal de “jornalismo audiovisual”, para efeitos de todas as garantias do ordenamento jurídico brasileiro, já está incluído na categoria “imprensa”. “Imprensa”, portanto, não se restringe às Redações que veiculam suas notícias e seus artigos por meio de papel impresso. O conceito de “imprensa” inclui o jornalismo no rádio (há umas boas décadas), na televisão, na internet e, bem a propósito, nos tablets. “Imprensa” não é mesma coisa que “impressa” nem aqui nem na tradição anglo-saxã, que não confunde “right to print” com “freedom of press”.

Essas passagens do PL, além de outras, não citadas aqui, preocupam sobremaneira. Não é por aí. Em vez de se perder nos labirintos intermináveis das análises de sentido das incontáveis postagens nas redes sociais, os parlamentares deveriam ter o foco não nos conteúdos (se o que vai narrado em um post é verdade ou é mentira, lembrando que, para isso, já existe o Código Penal tipificando os crimes de calúnia, injúria e difamação), mas nas práticas desleais, nos comportamentos abusivos.

Para isso, sim, é possível e necessário estabelecer parâmetros objetivos de imediata aplicabilidade. O emprego oculto de robôs, o disparo em massa (contra disposições legais) de mensagens de propaganda (sobretudo nos serviços de mensageria privada) —tudo isso pode e deve ser regulado, com benefícios para todos.

É possível e necessário também tornar transparentes, para o público, o emprego de recursos econômicos para impulsionar artificialmente a veiculação de conteúdos ou a veiculação paga de “notícias”. Quando vai nesse caminho, o projeto de lei acerta: passa a ter seu foco em comportamentos que são lesivos e em técnicas de propaganda abusiva. Esse caminho tem chances de funcionar, ainda que seu alcance seja muito limitado.

Isso porque o PL não toca no problema maior: o monopólio das grandes plataformas e dos sites de busca. Esse monopólio está presente no Brasil, mas é um monopólio global —e assim, só assim, precisa ser analisado.

Exercido por conglomerados cujo valor de mercado se mede na casa do trilhão de dólares e que se tornaram as empresas mais valiosas do mercado, em todos os tempos, esse monopólio vem se caracterizando por um estilo de atuação marcado pela opacidade e por uma resistência extrema a qualquer possiblidade de abertura de seus métodos internos.

Os conglomerados usam algoritmos para regular o fluxo das informações, mas nada se sabe sobre como os algoritmos trabalham. Os conglomerados comercializam dados de seus usuários, mas não declaram que dados são esses, como são extraídos e como são monetizados. Os conglomerados vendem o olhar de seus usuários a preços altamente lucrativos, mas a sociedade não é sequer informada sobre as cifras. No Brasil, por exemplo, nós não temos os dados do faturamento em publicidade, nos últimos anos, de empresas como Google e Facebook.

Enquanto o monopólio não é quebrado (e somente legislações dos Estados Unidos e da União Europeia terão força para tanto), teremos de contar com a boa vontade dos conglomerados monopolistas. Para que uma legislação que combata as práticas abusivas na internet dê certo, a atitude colaborativa desses gigantes globais teria de ser total.

Para começar, eles teriam de abrir os números de mercado e permitir a verificação pública sobre o funcionamento de seus algoritmos e dos dados pessoais extraídos e comercializados por esses algoritmos. Essa atitude virá? Essa abertura existirá?

De um jeito ou de outro, o que vai mudar o quadro, em definitivo, é a quebra dos monopólios. A proposta, já aventada pela senadora americana Elizabeth Warren, não é mais segredo. Recentemente, as big techs foram chamadas ao Congresso dos Estados Unidos para prestar contas sobre práticas monopolistas. Na União Europeia, o tema também vem crescendo.

Há uma notória incompatibilidade entre a democracia global e as condutas dos monopólios em controlar a portas fechadas o fluxo da informação de interesse público. Sem dúvida, as fake news acarretam patologias para a democracia brasileira e, de resto, para todas as democracias do mundo, mas isso só acontece porque, no fundo dos processos industrializados de desinformação, existe um modelo de negócio que consiste em promover a espetacularização para gerar engajamentos e, com isso, aumentar a extração e venda de olhar, a extração e venda de dados pessoais e, finalmente, o lucro.

Esse modelo de negócio deu visibilidade ao terraplanismo, beneficiou a extrema direita e transformou as discussões políticas que fazem parte das democracias em ringues espetacularizados privados, que em vez de votos conscientes rendem lucros obscuros. A distorção que temos visto das esferas públicas não é acidental: é fabricada pelo modelo de negócio dos grandes conglomerados.

A democracia no mundo inteiro está sob ameaça. Não há mais dúvidas quanto a isso. Da mesma forma, não há mais dúvidas sobre as conexões sistêmicas entre o modelo de negócio dos conglomerados e as milícias virtuais que proferem ataques contra os direitos humanos e contra os fundamentos da democracia.

Certamente, devemos olhar com atenção para os debates que transcorrem no Parlamento brasileiro, mas o PL não será suficiente. Se queremos ir à raiz do problema, devemos entender que o fenômeno da desinformação pandêmica é uma ponta de iceberg. Há muito mais por baixo da superfície.

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