Descrição de chapéu
Luiz Armando Bagolin

Supor subversão de Rafael em pintura no Vaticano é indecoroso, avalia professor da USP

Para autor, interpretação de crítico de arte americano sobre 'Escola de Atenas' é exagerada

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Luiz Armando Bagolin

Professor da USP e ex-diretor da Biblioteca Mário de Andrade

[RESUMO] Professor da USP contesta interpretação de crítico de arte americano, segundo a qual Rafael incluiu detalhe em seu célebre afresco no Vaticano para subverter a homenagem aos pensadores da antiguidade encomendada pelo papa, o que teria realçado na obra a efemeridade de todo poder. Embora interessante, essa conclusão desconsidera as características da produção artística no início do século 16, argumenta o texto abaixo.

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Em um artigo recente, publicado na BBC Culture e intitulado “The School of Athens: A Detail Hidden in a Masterpiece” (a escola de atenas: um detalhe escondido na obra-prima), Kelly Grovier, escritor, poeta e crítico de arte norte-americano, propõe-nos uma nova interpretação sobre o mais famoso dos quatro painéis pintados por Rafael Sanzio para a Stanza della Segnatura, no Vaticano: o artista teria deixado ali um detalhe com o propósito de subverter a principal mensagem do quadro.

"Escola de Atenas", de Rafael
"Escola de Atenas", de Rafael Sanzio - Musei Vaticani/Divulgação

A pintura “Escola de Atenas” foi executada entre 1509 e 1510, atendendo a um pedido do papa Júlio 2º para redecorar o lugar. Rafael tinha então apenas 26 anos. Grovier parte fundamentalmente de duas hipóteses para construir a sua nova interpretação desta obra, lembrando de início que Rafael deve ter se conscientizado da grande “aposta” e dos imensos riscos de sua empresa.

A “Stanza della Segnatura” (Sala da Assinatura) era o lugar onde os mais importantes documentos papais eram assinados, e o artista talvez tenha pensado na possibilidade do poder de aconselhamento de suas pinturas sobre os poderosos que se utilizavam daquele cômodo.

Para o crítico, o primeiro grande desafio de Rafael foi tornar reconhecíveis as figuras dos principais pensadores da antiguidade pagã (filósofos, geômetras, matemáticos e outros), uma vez que apenas pelas vestes de cada um, muito semelhantes entre sim, as atribuições e os caracteres de cada personagem em cena não poderiam ser claramente expressos.

Diferentemente de Michelangelo, que um ano antes lidara com as figurações para a Capela Sistina, onde facilmente pode-se reconhecer os personagens das histórias bíblicas, Rafael tinha ao seu alcance apenas meios insuficientes para compor figuras que correspondessem às expectativas dos futuros observadores da pintura: como representar Anaximandro, Sófocles, Antístenes, Boécio etc.? Como diferenciá-los?

Os dois personagens centrais do afresco, Platão e Aristóteles, trazem em suas mãos livros cujos títulos, legíveis para o espectador, embora discretamente pintados, nos mostram as obras “Timeu” e a “Ética”, revelando, deste modo, por alusão, os seus autores. O problema, neste caso, está resolvido. Mas e todas as outras figuras? Como identificá-las?

Platão e Aristóteles em "Escola de Atenas" - Musei Vaticani/Divulgação

Para Grovier, a solução inventada por Rafael foi compor “retratos” híbridos, misturando os caracteres dos pensadores antigos com os de personagens modernos e de figuras religiosas.

Assim, em seu Platão, unem-se as feições de Leonardo da Vinci (o seu perfil ligeiramente inclinado para a esquerda lembra o autorretrato do artista feito em sanguínea, atualmente pertencente à coleção da Biblioteca Real de Turim) com a do apóstolo são Tomé, presente na Última Ceia, pintada por Da Vinci entre 1495 e 1498.

Nas mãos de Rafael, Da Vinci, com seu espírito indômito de tudo duvidar e investigar, tornou-se Platão. Tal estratégia teria sido utilizada também para a composição do retrato de Pitágoras, que rabisca uma tabuinha, no primeiro plano, na parte inferior do painel. Ao seu lado, vemos uma figura a sussurrar algo em seus ouvidos, lembrando o anjo de são Mateus.

Para o crítico, todas as figuras ali presentes são mescladas a personagens reais, históricos e bíblicos. Ele acredita ainda que alguns dos principais artistas modernos desempenharam o papel de “dublês” para os personagens a serem representados na pintura, emprestando não apenas suas aparências, mas também suas personalidades.

Pitágoras em "Escola de Atenas' - Musei Vaticani/Divulgação

A sua segunda hipótese se baseia num outro destes “retratos”, que foi acrescentado ao afresco, ao que tudo indica, algum tempo mais tarde: o do filósofo Heráclito. A sua figura não está presente no cartão preparatório feito por Rafael para a composição da pintura (atualmente na coleção da Pinacoteca Ambrosiana).

Trata-se, na hipótese de Grovier, de Michelangelo, também contemporâneo de Rafael e alguns anos mais velho. A sua inclusão na pintura, numa posição melancólica (a cabeça apoiada no braço esquerdo, apertando o ouvido, enquanto escreve com a direita de modo quase displicente ou desconcentrado) serviria como uma advertência aos usuários da Sala da Assinatura: Heráclito se tornou célebre pelos seus pensamentos sobre a superfluidade e transitoriedade de tudo, sobre o devir, e como aquele que pregou que “não se pode percorrer duas vezes o mesmo rio”.

Instalada no primeiro plano e abaixo das figuras que dominam a parte central do afresco, Platão e Aristóteles, a figura de “Heráclito-Michelangelo” seria assim um “símbolo subversivo” propositadamente feito por Rafael para lembrar sobre a efemeridade do poder e dos poderosos, pois tudo muda o tempo todo.

O “detalhe” a que se refere o subtítulo de seu artigo seria o pote de tinta ao lado, ao fundo da figura de Heráclito: “Remova o pote de tinta do epicentro do afresco de Rafael e a obra se dissolve em um fiasco de formas confusas e que confundem”, diz ele.

Heráclito em "Escola de Atenas" - Musei Vaticani/Divulgação

Trata-se de uma crítica interessante, porém a sua conclusão, muito embora de todo estranha ao campo de pensamento da idade de Rafael, é um exagero.

É necessário lembrar aos leitores e espectadores de hoje que, na época da produção do afresco, personagens reais, históricos e fictícios eram compostos de acordo com lugares-comuns, tópicas como diziam os retores, conhecidíssimas da audiência, como caracteres a serem louvados (ou vituperados).

Isso valia tanto para a composição de textos, poesias, histórias e cartas quanto para as obras artísticas, pinturas, esculturas, etc.

Esses “lugares-comuns” eram comuns não só porque circulavam em muitos lugares, mas também porque podiam ser imitados e usados livremente para a composição de uma figuração, como no caso da pintura, verossímil para os espectadores.

Notícias sobre as “excentricidades” de Michelangelo, assim como a respeito do caráter polissêmico ou investigativo de Leonardo já circulavam como “retratos” não verdadeiros, mas louváveis e críveis, embora a primeira edição das “Vidas dos Artistas”, de Giorgio Vasari, livro em que estes personagens se tornaram mais conhecidos, tenha vindo a público apenas 40 anos depois da execução dos afrescos (1550 na primeira edição e 1568, na segunda).

Nesta obra se lê que “Rafael, ao chegar, foi calorosamente recebido pelo papa Júlio 2º, e começou na Sala da Assinatura uma cena em que os teólogos conciliam a filosofia e a astrologia com a teologia, na qual são retratados todos os sábios do mundo, tudo adornado por figuras, entre as quais alguns astrólogos a gravarem caracteres de geomancia e astrologia em tábuas que enviam aos evangelistas. Entre eles há um Diógenes com sua taça recostado na escada, figura reflexiva e absorta, digna de louvores pela beleza e pelas vestes. Semelhantes a este, veem-se Aristóteles e Platão, um com o Timeu nas mãos, o outro com a Ética, ambos rodeados por uma grande escola de filósofos. (...) Entre estes se vê um jovem de formosa beleza, com os braços abertos de admiração e a cabeça inclinada; trata-se do retrato de Frederico 2º, duque de Mântua, que então estava em Roma. (...) Também há uma figura agachada, a girar um compasso sobre as tábuas; dizem que se trata do arquiteto Bramante, e que não se pareceria mais com ele se estivesse vivo, tão bem retratado está”.

Não é preciso recorrer à hipótese de “retratos híbridos” feitos por Rafael para interpretar aquelas figuras. A reunião de retratos de príncipes ou homens ilustres de sua época com os de indivíduos antigos tornaria a pintura mais encarecida, além de produzir uma forma de elogio aos modernos.

Num outro trecho deste mesmo livro (sobre o outro afresco que figura os poetas em Parnaso), Vasari diz: “Há ali retratos de todos os mais famosos poetas antigos e modernos, dos que tinham vivido e dos que viviam até o seu tempo: alguns reproduzidos a partir de estátuas, alguns de medalhas, muitos de pinturas antigas, enquanto outros, ainda vivos, foram retratados do natural por ele mesmo”.

Mesmo quando não há uma concordância plena com Vasari, parece não ter sido problema no passado a compreensão geral do afresco como uma alegoria, dentro da qual são rendidas homenagens a diversas figuras consideradas importantes para o círculo de Júlio 2º.

Portanto, seria impensado e indecoroso embutir qualquer mensagem subversiva ali ou mesmo supor qualquer teoria conspiratória instrumentalizada pela pintura.

Roger de Piles, artista e erudito francês, que escreveu no século 17 uma “Descrição da ‘Escola de Atenas’, para servir de exemplo ao tratado de invenção”, refuta que a pintura trate da “concordância da filosofia e da astrologia com a teologia”, como propôs Vasari.

De Piles nos lembra que as mensagens transmitidas pelas pinturas feitas para as quatro câmaras estão inscritas nelas mesmas: a primeira representa a teologia com as palavras Scientia Divinarum Rerum; a segunda, a filosofia (“Escola de Atenas”) com as palavras Causarum cognotio; a terceira, a jurisprudência com as palavras Jus suum unicuique tribuens; a quarta, a poesia (o Parnaso) com as palavras Numine afflatur.

Rafael, diz ele, “que queria representar essa ciência por meio de uma assembleia de filósofos, não pode fazê-lo reunindo apenas aqueles de um século. Não é uma história simples que o pintor quis representar: é uma alegoria em que a diversidade das épocas e dos países não impede a unidade dos assuntos”. Outrora, era também comum que artistas recebessem alcunhas ou apelidos que denotavam algum traço de seu caráter ou alguma parte distintiva na sua maneira de execução ao pintar, ao esculpir etc.

Autorretrato atribuído a Rafael, datado do começo do século 16
Autorretrato atribuído a Rafael, datado do começo do século 16 - Reprodução

Por exemplo, Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, ou Francisco José de Goya y Lucientes, o Turbulento. Nunca existiu, contudo, um Rafael, o Rebelde. Muito pelo contrário. Diversos discursos antigos o representaram como alguém muito disciplinado, cortês, afável e pacificador (Leão 10º, que sucedeu a Júlio 2º, pensou em nomeá-lo cardeal) e que inclusive, segundo Vasari, morreu “por excesso de amor”.

Finalmente, não há qualquer menção nos dois autores aqui citados sobre Leonardo da Vinci ter servido para o papel de Platão ou de Michelangelo para o de Heráclito, o que não impossibilitaria, dentro das preceptivas seguidas por Rafael em seu tempo, de se pensar na possibilidade desses retratos terem sido compostos com base em suas fisionomias, como homenagens a duas das principais emulações do jovem Rafael no campo da arte da pintura. Só não dá para reduzir toda essa história à representação de um único pote de tinta.

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