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Daniel Wei Liang Wang, Gabriela Moribe e Ana Luiza Arruda

Vacina obrigatória contra Covid pode ser a medida com menos restrição de direitos

Decisão deve seguir modelo transparente e equilibrar autonomia individual e benefícios públicos

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Daniel Wei Liang Wang

Professor de direito da Fundação Getulio Vargas de São Paulo

Ana Luiza Arruda

Advogada, mestranda em direito e desenvolvimento pela Fundação Getúlio Vargas de São Paulo

Gabriela Moribe

Advogada, mestranda em direito e desenvolvimento pela Fundação Getúlio Vargas de São Paulo

[RESUMO] Discussão sobre obrigatoriedade da vacina contra Covid-19 deve levar em consideração fatores como o estágio da pandemia, a eficácia da imunização e o impacto de medidas alternativas sobre a sociedade. Caso controle o vírus, vacinação compulsória pode ser a melhor forma de conciliar autonomia individual e saúde pública, provocando menos restrições de liberdade que o isolamento social.

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Uma vacina segura e efetiva é a principal aposta para conter tanto os efeitos devastadores da Covid-19 sobre a saúde pública como os impactos das medidas de distanciamento social na economia, na liberdade das pessoas, na educação de jovens e crianças e na saúde mental da população em geral.

Após o desenvolvimento de uma vacina, haverá dilemas sobre quem priorizar no acesso a ela: profissionais de saúde, outros trabalhadores essenciais, pessoas em grupos de risco? Essas questões envolvem escolhas trágicas semelhantes àquelas suscitadas nos debates sobre alocação de vagas de UTI em face da pandemia.

Resolvido o problema da escassez, o debate seguinte tratará da obrigatoriedade da vacinação contra Covid-19. “O meu ministro da Saúde já disse claramente que não será obrigatória esta vacina e ponto final”, disse Bolsonaro a apoiadores na segunda-feira (19). Por outro lado, João Doria, governador de São Paulo, já afirmou que a vacinação no estado será obrigatória e prevê medidas legais contra os que se recusarem.

Nessa discussão, muitos assumem uma posição de defesa do direito absoluto à liberdade individual, o que inclui a autonomia de recusar qualquer intervenção médica. Essa é uma postura insustentável.

Ainda que o liberalismo tenha bons fundamentos para justificar o direito absoluto de indivíduos tomarem decisões que afetem apenas sua própria saúde, não há nada nesse pensamento que reconheça a liberdade de causar morte e doença a outros.

Aqueles que recusam a vacina não colocam em perigo apenas a si, mas a toda coletividade. Como afirmou John Stuart Mill, um dos ícones do liberalismo, “a única liberdade que merece esse nome é a de perseguir nosso próprio bem do nosso próprio modo, desde que não tentemos privar isso dos outros ou impedir seus esforços de obtê-lo”.

Por outro lado, isso não significa que o Estado tenha o poder de impor toda e qualquer intervenção médica com base na proteção da saúde pública. A restrição à autonomia individual precisa ser bem fundamentada na lei e proporcional aos ganhos em saúde que se queira atingir.

Importa ressaltar que vacinação obrigatória não é sinônimo de vacinação forçada. Obrigar alguém a tomar vacina, e prever sanções em caso de descumprimento, não significa que pessoas serão vacinadas à força. A título de comparação, pessoas que não cumprem sua obrigação de votar não são arrastadas para uma urna de votação.

A vacinação obrigatória já é prevista no direito brasileiro. A lei federal 6.259/75 dá ao Ministério da Saúde o poder de definir as de caráter obrigatório. O Estatuto da Criança e do Adolescente obriga a vacinação nos casos recomendados pelas autoridades sanitárias.

Diversas leis estaduais e municipais tornam obrigatória a apresentação da carteira de vacinação atualizada no ato de matrícula escolar. Especificamente para a Covid-19, a lei 13.979/20 autoriza as autoridades a adotarem a vacinação compulsória.

A mera previsão em lei não resolve completamente a questão jurídica. É preciso saber se uma eventual política de tornar a vacinação contra Covid-19 obrigatória violaria a Constituição. Atualmente, a obrigatoriedade para crianças é questionada no STF por pais que defendem o direito de não vacinar seus filhos por convicções filosóficas e alegados riscos para saúde.

Ainda que o STF ratifique o que a lei estabelece no caso de crianças, isso não dá uma resposta definitiva sobre a obrigatoriedade da vacina contra Covid-19 em toda a população. No caso de crianças, a vacinação é do interesse delas (o que prevalece sobre vontades contrárias, mesmo que expressas pelo próprio indivíduo ou por quem detém o poder familiar) e de toda a coletividade.

Todavia, no caso de adultos, peso muito maior deve ser dado ao princípio de respeito à autonomia individual de dar ou recusar consentimento a uma intervenção médica. O respeito à autonomia inclui o direito de tomar decisões vistas por outros como irracionais.

No direito, o método da proporcionalidade costuma ser aplicado para resolver esse tipo de conflito em que para se proteger um direito ou um objetivo público é necessário restringir outro(s) direito(s). Esse método é formado pela aplicação sequencial de três testes: adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito.

A obrigatoriedade da vacinação é medida adequada se a restrição à autonomia individual é capaz de fomentar o objetivo de proteção da saúde pública. A resposta no caso é fácil, a princípio, dado que a imunização da população é medida efetiva para conter uma doença altamente contagiosa. Há também evidências de que a obrigatoriedade aumenta a taxa de cobertura vacinal.

No entanto, é preciso considerar os dados de segurança e eficácia da vacina contra Covid-19 que se quer tornar obrigatória. A comunidade científica internacional já expressou preocupação quanto ao risco de perda de rigor científico pela pressa de imunizar a população.

Na Rússia, por exemplo, começaram a ser aplicadas vacinas que não completaram todas as fases de testes. Embora haja razões para permitir o uso experimental, o argumento pela obrigatoriedade tona-se mais fraco nesses casos.

Também há de ser avaliado se existem as condições para a cobertura universal da vacinação. Quando não há doses ou insumos suficientes para atender todas as pessoas, a obrigatoriedade pode gerar desconfiança, controvérsia e distorções na distribuição. Se não é possível universalizar, é melhor priorizar alguns grupos a partir de critérios claros, sem impor obrigações.

O risco de que a obrigatoriedade crie resistência também precisa ser avaliado, embora não tenha havido registro de protestos populares no Brasil nesse sentido desde a Revolta da Vacina, motim contra a vacinação compulsória para varíola no começo do século 20.

Se a medida é adequada, o segundo teste é o da necessidade, ou seja, se é possível fomentar o mesmo objetivo por um meio menos gravoso para a autonomia individual. A resposta vai depender do estágio da doença, da disposição da população de ser vacinada voluntariamente e das alternativas para prevenção do contágio.

Caso os já infectados e recuperados adquiram alguma forma de imunidade duradoura à Covid-19, então é possível que, somando-os aos dispostos a receber a vacina voluntariamente, já seja possível atingir um nível suficiente de proteção dentro da comunidade para evitar novos surtos (a chamada imunização de rebanho).

Também é preciso avaliar alternativas à obrigatoriedade, como aumentar o acesso aos serviços de vacinação (por exemplo, disponibilizando muitos postos com amplo horário de funcionamento), criar campanhas para combater fake news e conscientizar a respeito da importância da vacina para proteger a si e a outros.

Todas essas medidas, claro, são recomendáveis com ou sem a obrigatoriedade. A questão é se a obrigatoriedade ainda será necessária se essas ou algumas dessas medidas forem implementadas.

Deve-se, ainda, considerar se é possível atingir o objetivo de conter a pandemia com medidas alternativas à vacinação —realização de testes em massa, contact tracing, quarentena, isolamento social etc. No entanto, mesmo que esse conjunto seja igualmente capaz de controlar a pandemia, precisaremos discutir se é mais ou menos restritivo de direitos que a vacinação obrigatória.

Isso leva à pergunta se a vacinação compulsória é proporcional em sentido estrito, o terceiro teste no método da proporcionalidade. Mesmo que a obrigatoriedade seja adequada e necessária, deve-se colocar na balança, de um lado, o que se perde em autonomia individual e, de outro, os prejuízos acarretados pela pandemia e pela imposição de medidas de distanciamento social para a prevenção do contágio.

A pandemia traz perdas enormes em saúde e vidas, além de seu custo para o sistema de saúde, o que limita recursos financeiros e humanos para a atenção de outras doenças e outros pacientes.

Por outro lado, medidas de distanciamento social limitam uma série de outros direitos individuais —liberdade de ir e vir, de associação, econômicas—, além dos efeitos deletérios para a saúde mental, a educação, a economia. A ausência (ou insuficiência) de intervenção estatal para a promoção de saúde coletiva também restringe direitos.

Imaginemos três cenários. No primeiro, a vacinação compulsória controla a pandemia, tornando desnecessárias medidas duras de distanciamento social. No segundo, não há vacinação compulsória, mas a pandemia é contida por medidas rigorosas de isolamento.

No terceiro, não há nem vacinação compulsória e nem medidas de distanciamento, o que torna a crise sanitária da Covid-19 mais severa e longa do que poderia ser. Não seria absurdo que uma análise cuidadosa levasse à conclusão de que no primeiro cenário há menos restrições de direitos.

O tipo de punição em caso de descumprimento também importa. Obrigatoriedade significa que uma pessoa pode ser sujeita a sanções caso não se vacine. As sanções podem variar em natureza e intensidade.

Podem ir de uma mera advertência a multa (como para pessoas que deveriam votar, mas não o fizeram), perda de benefícios (por exemplo, se o recebimento do auxílio emergencial do governo for condicionado à vacinação), medidas restritivas de liberdade (ser monitorado, impedido de frequentar alguns lugares etc.), ou, no limite, vacinação forçada.

Questão igualmente importante é se a lei deve tolerar exceções e permitir que algumas pessoas recusem a vacina. Esses casos deveriam ser baseados em razões médicas já previstas na legislação brasileira (por exemplo, quem não pode se vacinar por alergia ou imunodeficiência). Mais controversas são as exceções derivadas de razões filosóficas ou religiosas.

A proporcionalidade e o contexto epidemiológico também são relevantes para avaliar o tipo de sanção e a possibilidade de exceções por razões não médicas. Quanto maior a cobertura vacinal, e sobretudo se for atingida a taxa necessária para a imunidade de rebanho, menos severas podem ser as punições, e maior a margem para permitir exceções.

Ainda que a vacinação obrigatória seja constitucional, algumas das sanções previstas e a ausência de exceções talvez não o sejam.

Em conclusão, a constitucionalidade da vacinação compulsória depende das circunstâncias concretas da pandemia, das características da vacina, dos detalhes do desenho e implementação da eventual obrigatoriedade.

O método de proporcionalidade, se cuidadosamente aplicado aos fatos quando uma decisão for tomada pelo governo e controlada pelo Judiciário, serve de guia para que uma política de vacinação (compulsória ou não) seja transparente, informada por evidência e que leve os direitos de indivíduos e da comunidade a sério.

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