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Andre Pagliarini

Biografia mostra como greves no ABC transformaram Luiz Inácio no mito Lula

Livro recém-lançado de professor americano conecta trajetória pessoal do ex-presidente à história de profundas transformações do Brasil

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Andre Pagliarini

Professor de história no Hampden-Sydney College, na Virgínia (EUA)

[RESUMO] Biografia recém-lançada nos EUA por professor americano conecta a trajetória pessoal de Lula à história de profundas transformações do Brasil, da qual é personagem de relevo desde os anos 1970, e considera que o maior dom político do petista é sua capacidade de se relacionar com atores heterogêneos e contraditórios.

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Em campanha pela Prefeitura de São Paulo, Guilherme Boulos costuma dizer que não tem rabo preso com ninguém. Segundo o candidato do PSOL, basta coragem e compromisso para enfrentar a “máfia” do transporte e das empresas do lixo, entre outros “esquemas” corruptos da cidade hoje administrada pelo tucano Bruno Covas.

Boulos tenta vender sua distância dos centros do poder institucional como trunfo eleitoral, sinal de que representaria de fato uma ruptura com a gestão de Covas, cujo partido governa o estado de São Paulo há quase três décadas, e com governo federal, representado na disputa municipal por Celso Russomanno (Republicanos).

Essa estratégia de legitimar sua candidatura parece estar funcionando: Boulos é hoje o nome mais viável da esquerda na maior cidade do país. Assim, após a inédita vitória em primeiro turno de João Doria (PSDB) em 2016, surge um outro tipo de outsider na disputa.

Esse apelo tem história. Quatro anos antes de Boulos nascer, Luiz Inácio Lula da Silva já se colocava como um ator político livre das amarras tradicionais. Em 1978, aos 32 anos, liderou a greve dos metalúrgicos do ABC paulista, tornando-se uma figura de envergadura nacional.

Entrevistado na época por Ruy Mesquita, Lula disse ter “o objetivo de dizer aquilo que eu sinto”. Explicou: “Em alguns sindicatos brasileiros hoje, eu acho que está meio patenteado que quando um homem não tem compromisso —eu costumo usar muito a palavra rabo preso—, quando um homem tem um compromisso pura e simplesmente com sua consciência ou com aquilo que ele representa, eu acho que as coisas se tornam mais fáceis”.

Independência e sinceridade foram qualidades indissociáveis do apelo político de Lula quando ele emergiu como liderança nacional, segundo o historiador John D. French, que acaba de lançar nos EUA a biografia “Lula and His Politics of Cunning: From Metalworker to President of Brazil” (Lula e sua política de astúcia: de metalúrgico a presidente do Brasil).

French, professor e pesquisador do Departamento de História da Universidade Duke, é um dos brasilianistas mais importantes em atividade. Escreveu “O ABC dos Operários: Conflitos e Alianças de Classe em São Paulo, 1900-1950” (1995) e “Afogados em Leis: A CLT e a Cultura Política dos Trabalhadores Brasileiros” (2001), livros influentes cujos traços analíticos se encontram na biografia de Lula.

French estuda há décadas o mundo operário brasileiro, especialmente o contexto específico em que o ex-presidente surgiu. Por isso, a biografia se destaca não apenas por contar a trajetória de vida de uma figura marcante, goste-se dela ou não, mas pela forma como insere essa figura na história do país.

French “enfatiza os processos sociais, políticos e culturais pelas quais Luiz Inácio Lula da Silva virou o Lula imaginado, que passou a ser propriedade comum de todos os brasileiros”. Esses processos não só moldaram um homem, mas também a história do Brasil na segunda metade do século passado.

A biografia de Lula é bastante conhecida. Nascido no sertão de Pernambuco em 1945, migrou com a família para São Paulo com seis anos, onde matriculou-se no curso de torneiro mecânico, ingressou no Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo e depois liderou greves históricas que culminaram na fundação do PT em 1980. Sua trajetória já foi traçada em obras acadêmicas publicadas no exterior, em um filme e até em história em quadrinhos.

Além disso, o jornalista Fernando Morais está para lançar dois tomos acerca da vida do ex-presidente, que contribuirão bastante para nosso entendimento tanto de Lula quanto do lulismo como fenômeno político.

Então, por que o livro de French, que ele pretende ainda traduzir e publicar no Brasil, é hoje a biografia definitiva de Lula? A resposta é que o autor conseguiu escrever sobre uma figura proeminente, por quem nutre clara admiração, sem abraçar o personalismo que tanto se associa ao petista.

Em 2018, quando o PT discutia nos bastidores um eventual plano B no caso de o ex-presidente não poder disputar a eleição, o jornalista Clóvis Rossi (1943-2019) classificou Lula como o “mais notável exemplar da raça dos caudilhos no Brasil”. A dificuldade do partido, segundo Rossi, se devia ao fato de que “caudilhos têm o péssimo hábito de impedir que nasça até mesmo uma humilde graminha ao redor deles. Menos ainda, portanto, que surja uma palmeira capaz de lhes fazer sombra”.

Não obstante essa frequente caracterização, French sustenta que é impossível entender Lula sem olhar para o contexto humano que o produziu —ou seja, como um personagem entre vários outros em um dado momento histórico. De acordo com o autor, o livro “falharia se, fixado no mito chamado Lula, não levasse em conta os milhares de amigos, aliados e admiradores, as dezenas de milhares de trabalhadores comuns e as dezenas de milhões de eleitores”.

Portanto, a obra não é um mero relato individualista, mas sim uma complexa história de relações sociais em um país em transformação: relações entre pais e filhos, irmãos e irmãs, maridos e mulheres, entre operários (tanto da mesma categoria quanto no geral), trabalhadores e patrões, intelectuais e peões, entre uma geração e outra, entre classes. Enfim, entre iguais e desiguais.

Os relacionamentos do ex-presidente, especialmente com o irmão José Ferreira da Silva (mais conhecido como Frei Chico), e as mulheres que o moldaram e o acompanharam ao longo da vida são a matéria-prima da obra.

Para French, o grande dom do líder sindical que chegaria no Planalto em 2003 é a habilidade de se relacionar com um elenco diversificado de personagens ao longo do tempo, preservando relacionamentos pessoais distintos e muitas vezes contraditórios. Essa astúcia define Lula como ator político.

“Afinal,” coloca o autor, “Lula não foi autorizado a subir até onde chegou pela ordem social, política e cultural que governava o Brasil. Alcançou a Presidência pelas relações que estabeleceu com a população, tanto os de cima quanto os de baixo, pela ressonância de seu discurso, de quem ele era e do que veio a simbolizar”.

Lula cresceu em um país em plena mudança. Ao longo do século 20, o PIB brasileiro mais do que centuplicou, subindo de R$ 9,1 bilhões para R$ 1 trilhão. No mesmo período, a população cresceu quase dez vezes, de 17,4 milhões para 169,8 milhões de habitantes. O PIB per capita passou de R$ 516 em 1901 para R$ 6.056 em 2000.

Um estudo do Iedi (Instituto de Estudos sobre Desenvolvimento Industrial) mostra que, em todo o século, o Brasil ficou em segundo lugar entre os países que mais cresceram no mundo —uma média de 4,5% ao ano, igual à da Coreia do Sul e só superada pela de Taiwan (5%).

De 1900 a 1973, o Brasil foi o país que mais cresceu no mundo —uma média de 4,9% ao ano—, enquanto que nas décadas de 1980 e 1990, marcadas por estagnação econômica, o crescimento médio foi de apenas 2,4% ao ano. Nenhum lugar se desenvolveu como São Paulo. “Olhando em retrospecto, fica claro que um novo Brasil estava surgindo nas fábricas, nos mercados e nos assentamentos da metrópole,” sustenta French.

Esse contexto de industrialização e urbanização gerou oportunidades antes inimagináveis para pessoas como Lula. No início dos anos 1960, sua mãe, dona Lindu, praticamente por pura força de vontade, conseguiu uma vaga cobiçada para o penúltimo de seus oito filhos no curso profissionalizante do Senai —em 2013, o Sindicato dos Metalúrgicos do ABC inaugurou a Escola Livre para Formação Integral Dona Lindu.

Assim, Lula chegaria a fazer parte do que French chama de uma “intelectualidade da classe trabalhadora”. Como torneiro mecânico formado, distanciava-se do operário médio, aquele sem qualificação, tornando-se membro de uma certa elite operária ciente da sua importância para a industrialização do país.

Conforme aponta French, trabalhadores qualificados eram muito mais propensos a se envolverem no sindicato e na política através do PCB e outras organizações de esquerda. Muitos anos depois, Lula creditou ao Senai o sucesso que teve.

“O Senai me deu cidadania,” ele disse em 2012. “De oito irmãos, fui o primeiro a fazer um curso profissional, o primeiro a ter uma casa, ter um carro; eu fui o primeiro a trabalhar numa fábrica, o primeiro a participar de um sindicato e, do sindicato, eu fundei um partido e, por este partido, eu virei presidente da República.”

Se um curso profissionalizante do Senai lhe rendeu uma posição relativamente privilegiada em termos de emprego e estabilidade financeira, também lhe inseriu em um mundo maior de debate, reflexão e disputa, que eventualmente levaria a sua eleição para presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo.

A militância sindical rendeu uma vida de “drama e relevância,” diz French. Lula viajou para fora do Brasil pela primeira vez e chegou a interagir com políticos, intelectuais e jornalistas antes tão distantes de sua realidade.

Ao lado da segunda esposa, Marisa Letícia, uma jovem viúva que conheceu em 1973, Lula percebia que a liderança sindical trazia certos riscos —a ditadura, afinal, tolerava pouquíssima crítica—, mas não havia outro canal para expressar os interesses dos trabalhadores.

“A vida industrial fornecia poucas evidências de que alguém poderia evitar ser explorado simplesmente concordando com tudo que os patrões queriam,” French aponta. “Tal comportamento submisso e impróprio era típico dos bajuladores e puxa-sacos”, que ninguém —nem trabalhadores, patrões, ou políticos— podia respeitar como vozes do operariado. Lula, antes um “bom moço” pouco interessado em questões politicas, não seria desse tipo.

Diferentemente do irmão que militava no PCB, o Lula jovem operário não queria saber de política. Era cético em relação aos sindicatos peleguistas, que pareciam relíquias de uma geração passada, e estava mais interessado em namorar e em nutrir o companheirismo de trabalhadores como ele.

Aos poucos, passou a enxergar o sindicato como uma ferramenta, uma maneira de realizar suas ambições pessoais e defender a posição do trabalhador médio dentro de uma economia que havia produzido taxas de crescimento milagrosas às custas do arrocho salarial. A “origem subalterna” do estilo de liderança que Lula viria a exercer ajudaria na hora de formar um partido de esquerda caracterizado, sobretudo, pela diversidade intelectual.

O PT ligaria a geração de 1968 aos novos militantes do final da década de 1970, estes com pautas e interesses diversificados, que viam em Lula “um ícone unificador, apesar de suas diferenças”.
Lula alcançou um ponto tão alto na vida da nação que “o processo de contingência histórica” praticamente desapareceu de sua narrativa, reclama French.

A organização exitosa das greves de 1978-80, por exemplo, não estava dada. “Sem unidade de ação ou consciência comum, os metalúrgicos não pareciam terreno fértil para organizar, muito menos para montar, uma insurgência vigorosa e maciça”, diz o autor.

Como explicar esse fenômeno? Afinal, o governo não havia sido desafiado por trabalhadores dessa maneira em mais de uma década. A ditadura estava em processo de distensão, mas ninguém acreditava que as greves seriam atos impunes.

Normalmente, esse momento icônico é explicado quase que inteiramente pelo carisma incomum do homem que viria a se tornar presidente duas décadas depois.

Todavia, como French bem lembra, Lula era desconhecido pela grande maioria dos operários em 1978. Poucos participavam da vida do sindicato e, assim, sabiam quem era seu líder. Militantes engajados como Alberto Eulálio —mais conhecido como Betão, que na época trabalhava na Ford—, formavam a linha de frente do movimento grevista, “soldados no exército de peões que Lula passou a comandar”.

Com a intensificação do movimento, o número de trabalhadores como Betão cresceu gradativamente, cada um apoiado e impulsionado pela atividade de seus pares. Uma disputa da escala daquela que ocorreu no ABC não se explica simplesmente pela relação do carismático Lula com as “massas,” French argumenta, e sim pela “multiplicação de espaços de convergência” e pela construção de novas relações “horizontais e verticais.”

Os próprios trabalhadores, inclusive Lula, passavam por um processo de autoafirmação e conscientização. Em 1979, “uma mobilização extraordinária produziu um caso de amor surpreendente entre as massas e Lula, seguido por um casamento duradouro entre organização e carisma”.

Com essa biografia, French tece um retrato vibrante da vida de uma pessoa cuja importância se deriva do fato de fazer parte de uma história mais ampla, uma história genuinamente nacional. Essas perspectivas interligadas, tanto individual quanto nacional, impulsionam a obra.

Na visão do autor, Lula sempre foi um institucionalista, seja a favor do sindicato ou do partido político a que ele pertence. “Ele nunca buscou uma relação sem mediação entre indivíduos dispersos e um salvador ungido,” elemento esse “central para a liderança ‘carismática’ ou ‘populista’”, de acordo com French.

Em 2017, em visita ao Instituto Multidisciplinar da UFRRJ (Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro), Lula foi recebido de forma calorosa e animada, como mostra a foto de capa do livro.

Sobre o Instituto Multidisciplinar, inaugurado de forma definitiva em 2010, uma aluna entrevistada na ocasião da visita do então presidente falou da importância de haver uma universidade na Baixada Fluminense: “Te traz aquilo de ‘vamos tentar’”. Talvez nenhum discurso capte tão bem a história de Lula —uma história que, como French bem lembra, está ainda para ser escrita.

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