Descrição de chapéu Rio de Janeiro

Como elitização e individualismo apagaram atmosfera libertária do Leblon

Reduto de vanguardas nos anos 50 e 60, bairro se tornou símbolo de desrespeito a normas de distanciamento social

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Marcella Franco
Marcella Franco

Jornalista, é autora na Folha do blog Do Meu Folhetim e está escrevendo seu primeiro romance

[RESUMO] Antes conhecido por sua aura artística e libertária, na qual se congregavam diferentes classes e nomes da cultura, o célebre bairro carioca dá sinais de pular da glória para a incivilidade, passando a exemplo de segregação social e ocupando nos últimos meses espaço nos noticiários em cenas de desrespeito às normas sanitárias de combate à pandemia.

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Se o Leblon fosse um personagem, daria para dizer que o tempo não lhe foi dos mais gentis. Este senhor, sabidamente habitado por índios desde 1558 —e que já abrigou matadouro de baleia, quilombo e favela—, hoje caduca. Aos 500 anos de existência, o velhote vem dando sinais frequentes de que teria pulado da glória à incivilidade.

Durante a quarentena provocada pela pandemia de coronavírus, foi este o bairro carioca a concentrar os episódios mais escandalosos de desobediência às recomendações das autoridades. Foi do Leblon que vimos fotografias de pessoas aglomeradas, e foi dele que também brotaram discórdias que viraram notícia.

O engenheiro civil, formado, melhor que você, por exemplo, adora o Leblon. Assim como, com apetite, também desfrutaram das ruas do bairro as duas moças recém-saídas da praia, ainda em trajes de banho, no carro conversível, e que geraram indignação nos comensais de um restaurante.

Vista da praia do Leblon, por volta das décadas de 1950/1960, com o morro Dois Irmãos ao fundo - Arquivo/Agência O Globo

“Um país povoado de sereias e quimeras”, descreve o escritor Geraldo Carneiro em seu livro “Leblon”, a respeito do bairro onde foi morar em 1962. Aquele era, segundo conta, o momento mais profícuo das artes, com escritores, atores e músicos flanando livremente pelas calçadas.

“Todas as facções da cultura carioca andaram por lá”, diz, referindo-se ainda mais especificamente ao Baixo Leblon, quadrilátero gastronômico formado por Diagonal, Luna Bar, Pizzaria Guanabara e Jobi —este, instalado a poucos metros de distância de onde se deu a tal briga do biquíni.

Quando máscaras ainda eram adereços apenas para o Carnaval, e tudo bem que só as usasse quem quisesse, o poeta Carlos Drummond de Andrade deu nome aos habitantes do bairro com o metro quadrado mais caro do país. Publicado em 1940 no livro “Sentimento do Mundo”, o poema “Inocentes do Leblon” evoca aqueles que “não viram o navio entrar” e, por isso, não sabem que tipo de gente desembarcou dele. “Definitivamente inocentes”, eles “tudo ignoram, / mas a areia é quente, e há um óleo suave / que eles passam nas costas, e esquecem”.

Na década de 1980, o poeta Antonio Cicero retoma a expressão em seu poema “Virgem”, que vira canção em 1987 na voz de sua irmã, Marina Lima. “Essa evolução do Leblon a gente vê pela música”, reforça a historiadora Heloisa Starling, professora titular da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais).

“A música ‘As Menininhas do Leblon’, do Wilson Simonal, fala das garotas conservadoras que não transavam, como o Geraldo Carneiro diz no livro dele. O Caetano, com ‘Falso Leblon’, pega o tráfico de cocaína. E ‘Virgem’ é um momento em que começamos a ver um pessoal que vai para a praia, malha, que cuida do corpo”, continua.

Para Starling, os anos 1990 representam um exemplo daquilo que ela chama de giros, momentos em que o bairro carioca sofreu modificações profundas em seu funcionamento, afetando não apenas a estética mas todos os elementos responsáveis pela antropologia e sociologia de um lugar.

“Esse giro específico produz alienação e individualismo egoístico, assim como uma ação no sentido do conservadorismo. Como se tudo aquilo talvez estivesse adormecido em um caldo conservador, que de repente se destampou.”

Para compreender a dimensão do tal giro dos anos 1990, é preciso remontar a história do Leblon a um passado ainda mais remoto que o dos versos de Drummond. “No século 16, Portugal divide o Brasil em duas repartições. O governador da repartição do Sul, Antônio Salema, resolve que fará na região do Leblon um grande engenho de açúcar”, conta Starling.

Os planos de Salema, no entanto, esbarravam em um impeditivo: os índios. Ele, então, espalha roupas infectadas de varíola, que servem de iscas e acabam varrendo a aldeia kariané do mapa do Rio de Janeiro. “As pessoas sem máscara no Leblon estão fazendo o que Salema fez, pouco se lixando para os outros.”

Até o início do século 18, as terras de Salema sobrevivem com inúmeras sucessões, quando passam então ao francês Charles Le Blon, que se torna dono de tudo que se estende “desde a atual Bartolomeu Mitre até o antigo Hotel Leblon, no limiar da avenida Niemeyer”, como explica Geraldo Carneiro em seu livro.

A empresa de Le Blon, a Aliança, investe na pesca de baleias, que fornecem óleo para a iluminação das ruas e ossos que viram cal, usada na construção civil. “Na hora em que o visconde de Mauá faz a iluminação a gás no Rio, o Le Blon vai falir”, narra Starling.

As terras ganham, assim, um novo dono, o português José de Seixas Magalhães, dono de uma loja de malas no centro da cidade. Nasce ali o “quilombo Le Blon”, onde, com a ajuda de escravos fugidos, Seixas cultiva pés de camélia, o símbolo do movimento abolicionista.

Muito tempo depois, já nos anos 1930, o Leblon assiste ao surgimento da favela da Praia do Pinto, uma grande habitação horizontal onde moravam quase 10 mil famílias. “Em 1947, a política de desapropriação se acirra”, lembra Marco Antonio da Silva Mello, antropólogo e coordenador do laboratório de etnografia metropolitana LeMetro/IFCS-UFRJ.

“As pessoas sempre associam esse movimento ao Carlos Lacerda [ex-governador da Guanabara], mas, na realidade, o maior número de favelas removidas foi entre 1962 e 1974, ao longo das administrações dele, do Negrão de Lima e Chagas Freitas. Foram 80 favelas removidas, e 140 mil moradores levados da zona sul para bairros da periferia.”

A história da Praia do Pinto, na verdade, se encerra antes disso. Em 1969, um incêndio nunca esclarecido destruiu completamente o local, forçando todos os moradores que ainda não haviam aceitado sair de suas casas a abandonar o local definitivamente. A maioria foi levada para a periferia, mas alguns conseguiram se manter no Leblon, em um empreendimento chamado Cruzada São Sebastião, na rua Humberto de Campos.

Dom Hélder Câmara funda essa instituição, ligada à Igreja Católica, em 1955. Ele dizia que era preciso acabar com a mania de varrer os operários para longe da casa dos patrões. São dez blocos de apartamentos no coração do Leblon, para abrigar parte da população expulsa dos seus lugares na zona sul do Rio”, descreve Mello.

“Os moradores do bairro falam que a Cruzada é o câncer do Leblon. Como se essa população tivesse pousado de algum lugar ali e reivindicado posse, quando na verdade estavam apenas viabilizando a permanência na cidade”.

Em 1970, tem início a construção de um dos condomínios mais famosos do bairro, o Selva de Pedra. Marco Antonio Mello explica como se deu o processo. “O arquiteto Marcos Konder Netto fez o planejamento da ocupação da área da favela e dividiu o terreno em 40 glebas. No projeto, sempre 13 andares sobre pilotis, com livre circulação embaixo, e apartamentos de pelo menos três quartos.”

“Os primeiros moradores da Selva andavam de pijamas pelo Leblon, as mulheres de bobes no cabelo. As pessoas faziam marmita, costura. Aqueles 40 blocos eram de classe média baixa, e eles conseguiram pagar as prestações a baixíssimo custo. Eram funcionários públicos de baixa extração, militares.”

Para Mello, a marcha da especulação imobiliária é o que leva o Leblon a se transformar. “Era um bairro de casas, um viés mais familiar. Com a especulação, a classe média chega, as casas desaparecem e dão lugar a edifícios onde mora uma classe média mais alta, que quer estar na zona sul e quer estar protegida”, analisa Heloisa Starling.

“O Leblon tem talvez a arquitetura mais feia do Brasil”, acredita o ator Gregorio Duvivier, colunista da Folha. “Até os anos 1970 eram predinhos, daí chegou a grana, e hoje ele é todo espelhado marrom, com grades tubulares de alumínio na frente. As grades estão sempre úmidas, e você não tem mais calçada. Virou um bairro intransitável.”

“As pessoas de fora do Rio ainda têm a ideia de que o Leblon é um lugar progressista. Porque imaginam o Tom Jobim numa mesa do (restaurante) Plataforma, ou porque o Chico Buarque mora lá. E a Globo tem um papel nisso. As novelas do Manoel Carlos certamente venderam para o mundo um Leblon que não era fiel ao real”.

Em “Laços de Família”, de 2000, o ator Tony Ramos interpretava o dono de uma livraria no bairro. “Eu não diria que o morador típico do Leblon é dono de livraria. Tem um valor muito excludente ali, é um bairro mais de empreiteiros, advogados, e de gente do mercado financeiro”, completa Duvivier.

E é aqui que voltam os giros descritos por Heloisa Starling. Tanto para Duvivier quanto para a historiadora, nos anos 1990 os investidores saem do centro da cidade e instalam seus escritórios e residências no Leblon. E assim, de acordo com Starling, o bairro esvazia seu viés libertário, da juventude “do rock e do teatro”, para atender a um novo tipo de demanda.

“Você passa a lidar com um tipo de gente jovem, competitiva. E essa mudança no público produz uma ideia mais arrogante, mais isolacionista. A pessoa mora no Leblon, se encontra com outra de outro lugar, e pergunta ‘o que você está fazendo aqui?’”, ilustra.

Para Marco Antonio Mello, o Leblon ainda guarda alguma diversidade, “mas ela não encontra espaço”, diz. “Mudou até o perfil dos moradores do Selva de Pedra. Hoje é de classe média mais alta porque mudaram as condições do entorno. O comércio é caro.”

“Você vai ao Leblon e tem cancelas na rua, seguranças de terno e gravata. Só que é tudo uma grande farsa, com o objetivo de sustentar a indústria da segurança e afastar os mendigos e os pobres. Sendo que a morfologia do Rio sempre conviveu com a contiguidade entre a favela e a habitação burguesa.”

O antropólogo conta que, há algum tempo, o Selva de Pedra enfrentou uma onda de furtos. Não demorou muito, diz, para que os moradores da Cruzada São Sebastião fossem acusados dos crimes. “Só que eram crimes cometidos pelos próprios moradores do Selva.”

No condomínio de classe média, também são comuns as infestações de cupins. E, às vezes, quando um morador chama o serviço de dedetização para combater a praga, ouve que as coisas por ali são “assim mesmo”, relata Mello.

“Eles falam que, porque o condomínio foi construído em cima dos escombros da favela, os moradores antigos ressurgem na forma de criaturas que entram na intimidade e comem suas coisas. Como se fosse uma grande vingança.”

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