Estudo aponta parentesco entre textos da Antiguidade e linguagem de crianças e loucos

É possível determinar evolução do pensamento nos últimos 4.500 anos a partir de análise de discursos, conclui pesquisa

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Marcelo Leite

Colunista, doutor em ciências sociais, autor dos livros "Promessas do Genoma" e "Ciência: Use com Cuidado"

[RESUMO] Ao alfabetizar-se, criança refaz caminho da espécie até a forma contemporânea de consciência, conclui estudo com hipóteses formuladas pelo neurocientista Sidarta Ribeiro e equipe multidisciplinar. Análise de 734 textos e transcrições abrangendo 4.500 anos revela que repetições frequentes caracterizam oralidade de crianças e ameríndios. Elas recuam com a aquisição da escrita, mas persistem na literatura mais antiga e irrompem na fala de psicóticos. Percurso paralelo da humanidade e dos indivíduos letrados até a complexidade reforça papel da leitura como antídoto para a exclusão e a puerilidade das redes sociais.

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O que pode haver de parentesco entre os primeiros textos da Antiguidade e a fala de crianças, loucos e ameríndios? A estrutura repetitiva, um fóssil da linguagem oral que a educação plena torna obsoleta e que ressurge como assombração quando a pessoa perde a capacidade de organizar os próprios pensamentos.

Não foi fácil chegar a essa cápsula de conclusões após ler um dos artigos mais ambiciosos e intrigantes com que topei em quatro décadas de jornalismo científico. O trabalho sairá em dezembro no periódico Trends in Neuroscience and Education, mas está disponível na página da publicação.

Veridiana Scarpelli

O título é longo, assim como o alcance das teses do grupo multidisciplinar brasileiro com colaboradores da Argentina e da Espanha: “A História da Escrita Reflete os Efeitos da Educação na Estrutura do Discurso – Implicações para Alfabetização, Oralidade, Psicose e Era Axial” (minha tradução do original em inglês).

“Os resultados demonstram que é possível fazer ‘arqueologia mental’, usando métodos matemáticos de análise do discurso para inferir o percurso evolutivo da mentalidade de nossos ancestrais”, afirma o neurocientista Sidarta Ribeiro, do Instituto do Cérebro da UFRN (Universidade Federal do Rio Grande do Norte), que formulou as teses centrais do estudo com o físico teórico Mauro Copelli (Universidade Federal de Pernambuco). Ambos atuam também no Neuromat (Centro de Pesquisa e Inovação em Neuromatemática), apoiado pela Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo).

Para Copelli, foi fascinante traçar um paralelo entre a maturação da estrutura do discurso de uma pessoa ao longo da vida e a maturação da estrutura dos discursos das sociedades humanas ao longo da história. Mais que isso, entusiasmou-o a possibilidade de quantificar essas dinâmicas de maneira simples, do ponto de vista matemático e computacional.

O trabalho tem algo de pantagruélico, a começar da amostra digerida: 734 textos e transcrições de relatos orais, entre eles 447 obras abrangendo 4.500 anos de literatura. Ao todo, mais de 10,3 milhões de palavras.

A análise quantitativa só se tornou possível porque todas as peças foram vertidas para o inglês, reduzidas a um tipo de representação estrutural não semântica (grafos) e computadas no Núcleo de Processamento de Alto Desempenho da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (NPAD/UFRN).

“A maior lição desse artigo é sobre a influência da cultura na própria organização mental da comunidade como um todo”, diz a psiquiatra Natália Mota, também da UFRN, que se dedicou aos grafos a partir de 2006 e compôs com Sylvia Pinheiro a dupla de autoras principais do artigo.

“É fundamental reconhecer, de forma a diminuir o preconceito e a estigmatização, que algumas pessoas [psicóticas] podem ter mais dificuldade de internalizar essa maneira de organizar os pensamentos e, portanto, de gerar e compreender discursos que sejam mais complexos”, defende Mota. “A linguagem é essa cola que permite que a gente se relacione de uma forma mais conectada.”

Para melhor entender o escopo do trabalho, três explicações vêm a calhar. Primeiro, o que são e como se usam grafos. Em seguida, o conceito de Era Axial criado por Karl Jaspers (1883-1969) e desenvolvido por Julian Jaynes (1920-1997). E, por fim, como se compôs a amostra analisada.

Grafos são diagramas em que cada palavra de um enunciado vai representada com um círculo, os nós, e estes são interligados por setas, ou arestas, na ordem em que se sucedem no discurso. Quando uma palavra ou expressão aparece de novo, uma outra flecha a conecta com a primeira ocorrência do termo.
Com base nesse tipo de figura, pode-se automatizar a tomada de algumas medidas com ajuda de computadores. Uma delas é a quantidade de nós, indicativa da riqueza léxica, ou seja, da variedade do vocabulário utilizado.

Outra é recorrência de curto alcance, repetições muito próximas de expressões, característica da oralidade que se manifesta no grafo como laços muito fechados. Um exemplo extremo seria a criança que repete: “Mel, mel, mel”. Ainda de alcance curto, mas um pouco mais complexo, seria dizer: “Mel, eu quero é mel, eu quero mel”.

Bem diversa é a recorrência de longo alcance, quando ideias são retomadas para fechar um raciocínio ou argumentação depois da interposição de várias informações. Constitui uma medida indicativa de discursos mais complexos, como longas narrativas literárias e tratados.

“O modelo permite que algumas medidas sejam calculadas, informando mais sobre as características estruturais do discurso, como sua diversidade de palavras, conectividade e aleatoriedade”, explica Sylvia Pinheiro, hoje na Queen’s University (Canadá). Isso não dependeria do significado das palavras, mas sim de como se organizam.

Trabalhos anteriores de Mota, Copelli e Ribeiro já tinham indicado que tais grafos podem ser usados para separar relatos de sonhos de esquizofrênicos daqueles de pessoas sem o transtorno mental, ou seja, que é possível discriminá-los (e, portanto, usar a ferramenta para apoiar diagnósticos). Também observaram que as medidas mudam conforme a criança se alfabetiza e depois se torna proficiente na leitura e na escrita de textos com ideias mais concatenadas.

Pode-se traçar um paralelo entre esse processo de letramento, seguido de amadurecimento intelectual do indivíduo, e o percurso da espécie. De acordo com Jaspers, a mentalidade humana evoluiu até fixar o modo hoje dominante —reflexivo, argumentativo— durante a chamada Era Axial (800-200 a.C.).
Nesse período surgiram na esfera greco-romana e também na Pérsia, na Índia e na China eixos de pensamento religioso e filosófico que ainda fundamentam a consciência contemporânea. De Confúcio e Lao-tsé a Parmênides e Platão, foi nesses seis séculos que a humanidade trocou de marcha, por assim dizer, e deslanchou na direção de sistemas conceituais mais e mais complexos.

As ideias de Julian Jaynes agregaram um novo tempero ao banquete preparado pelos autores do artigo: “Os psicóticos de hoje representariam a persistência socialmente desajustada de uma mentalidade antiga, memória de um tempo em que era comum ouvir vozes”, como anotou Sidarta Ribeiro em seu livro “O Oráculo da Noite”.

Dito de outra maneira, até 3.000 anos atrás o funcionamento da mente humana teria mais semelhança com a mentalidade de crianças, povos caçadores e coletores e psicóticos, fundada na superestimação do próprio ponto de vista. Dessa perspectiva, a vida psíquica ganha atributos de realidade externa: pensamentos podem ser manifestações de espíritos ou divindades e podem também influenciar o curso da vida quando se emitem as palavras certas (orações, maldições, cantos, invocações).

Daí surgiu para Ribeiro e Copelli a ideia de procurar traços linguísticos comuns na linguagem empregada por crianças, psicóticos e textos da época dos faraós. A hipótese era que, após o surgimento da escrita, transcorreu algum tempo antes de a mentalidade humana adquirir o estilo atual, o que só aconteceria durante a Era Axial de Jaspers.

O grupo partiu para montar um acervo de textos pré-axiais e pós-axiais, a fim de compará-los com relatos infantis e psicóticos por meio dos grafos. Selecionaram 447 obras representativas das tradições mesopotâmica, egípcia, hinduísta, persa, judaico-cristã, greco-romana, medieval, moderna e contemporânea.

Outra amostra de controle foi montada com busca aleatória na biblioteca digital do Projeto Gutenberg. Somada às transcrições de sonhos de crianças, ameríndios e portadores de psicoses, chegou-se ao total de 734 exemplares mencionados antes.

A expectativa dos autores indicava que haveria aumento nos escores de diversidade lexical (número de nós) e recorrência de longo alcance quanto mais recentes fossem os textos analisados. Ao mesmo tempo, deveria diminuir a recorrência de curto alcance, repetições que servem de apoio mnemônico para a reprodução de sagas e mitos quando não há suporte escrito para transmiti-los.

“A cultura oral exigia muita memória de trabalho, muitas repetições no discurso, com rimas, para que a história pudesse ser guardada adequadamente, e os textos da Idade do Bronze refletem isso”, explica Ribeiro. À medida que mais gente tem acesso à leitura, por meio do ensino, libera-se a memória de trabalho para fazer outras coisas.

Segundo o neurocientista, o cérebro humano não evoluiu para fazer leituras. A região cerebral utilizada para decodificar letras e palavras fica no giro fusiforme esquerdo, que se desenvolveu como base neural do reconhecimento de faces.

O neurocientista francês Stanislas Dehaene e colaboradores brasileiros, como Felipe Pegado e Lúcia Braga, mostraram que pessoas analfabetas têm pouca ativação dessa área quando veem palavras. Já os adultos analfabetos que aprendem a ler tardiamente apresentam ativação do giro fusiforme para palavras, mas com redução das respostas para faces.

Os resultados sugerem que essa área específica do cérebro é reciclada para fazer um papel diferente. No reconhecimento de faces existe invariância no eixo horizontal, tanto faz o lado da face que se olha para saber de quem se trata. Com palavras escritas isso não funciona: b e d são letras diferentes.
A área é recrutada às expensas do reconhecimento de faces. O cérebro está sempre aprendendo a fazer coisas para as quais não evoluiu, e isso tem um preço em termos de perdas no desempenho de faculdades originárias.

A superação dessa barreira exige esforço organizado, o letramento oferecido pela educação formal. Quando a maior parte da população era analfabeta, pois só alguns sacerdotes e escribas tinham acesso à leitura, os primeiros relatos registrados na forma de texto ainda estavam próximos demais da tradição oral, e esse eco se fazia ouvir na forma de léxico mais limitado e na recorrência de curto alcance.

Os resultados da análise quantitativa corroboraram a hipótese do grupo. A maioria dos grafos de textos antigos, por exemplo da Idade do Bronze, revelou atributos comparáveis aos de crianças e adultos psicóticos de hoje, provável reflexo de limitações no desenvolvimento da memória de trabalho, mas ainda assim distantes da oralidade ameríndia.

“Há uma boa separação entre ameríndios e todos os outros grupos”, diz Ribeiro. “A distância estrutural entre o Livro dos Mortos egípcio e Fiódor Dostoiévski, José Eduardo Agualusa ou Michel Laub é tão grande quanto a distância entre o Livro dos Mortos e um relato de experiência calapalo. Os textos da Idade do Bronze estão a meio caminho entre a literatura contemporânea e a oralidade ameríndia.”

As menções ao angolano Agualusa e ao brasileiro Laub não são fortuitas. Ambos os escritores estiveram em contato com os pesquisadores e cederam textos de seus livros para o estudo, respectivamente “Milagrário Pessoal” e “Diário da Queda”.

A análise com grafos indicou ainda uma transição por volta de 800 a.C. Coincidindo com o advento da Era Axial, a literatura chega a um platô estrutural de complexidade e articulação que marcaria todo o pensamento humano como o entendemos hoje.

Como anotado no artigo, “os escritos de Platão e outros textos clássicos axiais se equiparam em complexidade estrutural com relatos orais nos dias de hoje de participantes com mais de 12 anos de idade: longe de crianças e indivíduos com sintomas psicóticos e muito mais perto de Voltaire do que das Instruções de Shuruppag” (coleção de provérbios sumérios datada entre 2.600 e 2.500 a.C.).

Lendo o artigo, perguntei-me se tais achados não seriam só o que se poderia esperar: partindo da simplicidade repetitiva do universo oral, o único caminho evolutivo que restaria para percorrer, para a linguagem da espécie, seria o da complexidade crescente.

Mauro Copelli reagiu dizendo que há algo mais. Para um físico, conta, é inevitável pensar em uma transição de fases (por exemplo, quando a água passa do estado líquido para o gasoso ao se alterarem pressão ou temperatura): “Dois sistemas físicos diferentes podem ter transições de fase com propriedades matemáticas idênticas. Neste caso, dizemos que os dois sistemas pertencem à mesma ‘classe de universalidade’”.

“No caso dos textos históricos, a explicação detalhada das transformações em cada caso certamente passará por contexto, cultura, tecnologia e estruturas social e política, mas talvez esses ‘invariantes universais’ estejam indicando justamente algum tipo de similaridade que emerge nas dinâmicas históricas, apesar de suas diferenças.”

“Foi muito surpreendente topar com o tipo de transição abrupta que a gente encontrou em torno de 800 antes de Cristo”, ecoa Sidarta Ribeiro. “É por isso que esse artigo me enche os olhos. São achados empíricos muito relevantes.”

Natália Mota recorre à ideia de Jaynes de que nas grandes civilizações isoladas em termos culturais existia essa forma de funcionamento consciente que ela chama de mente bicameral, associada aos sintomas psicóticos, na qual o que entendemos por pensamento não ocorre ao sujeito como inspirado por si próprio, mas prenhe de orientações divinas. A psiquiatra recorre aos heróis da “Odisseia” para ilustrar a emergência da nova mentalidade.

“Aquiles é o exemplo daquele que faz tudo por comando divino, da deusa Atenas. Na Era Axial, as pessoas começam a perceber, pelo intercâmbio cultural, que deuses diferentes dão ordens muito semelhantes e todas as culturas são movimentos humanos, que o pensamento é um movimento interno e não uma manifestação divina. Isso permite a metacognição dos movimentos internos. O exemplo oposto é Ulisses, que tem essa noção de presente, passado e futuro, toma suas próprias decisões e é senhor de seu próprio destino —a consciência como a gente a conhece.”

Para além da macro-história da consciência, por assim dizer, essa análise estrutural abrangente obtida com grafos teria implicações para a pedagogia dos dias de hoje. “O estudo nos ajuda a entender um pouco mais sobre a evolução da linguagem da nossa espécie e a reforçar a importância da educação formal nos primeiros anos escolares”, comenta Sylvia Pinheiro.

Não só nos anos iniciais, acrescenta Sidarta Ribeiro: “A transformação discursiva realizada entre os ensinos fundamental e médio mimetiza, parcialmente, as mudanças na estrutura do discurso que ocorreram ao longo de toda a história”. Completar a educação básica, chegando ao final do secundário, equivaleria ao mínimo necessário para participar autonomamente da vida social.

Sem superar as barreiras naturais do giro fusiforme recrutado para a leitura e, mais, sem amadurecer o domínio da escrita para ser capaz de formular e compreender argumentações longas, a pessoa fica excluída da vida plena em sociedade.

O acesso à educação, porém, não impede que se rompa o fio de Ariadne empregado pelo pensamento para avançar mais e mais longe. Como assinala a psiquiatra Natália Mota, a psicose aparta o sujeito da vida social, mas não o torna menos humano. Precisamos ouvir os loucos, defende, assim como devemos atenção às crianças, aos povos indígenas e aos textos antigos.

Todos eles, gente como a gente, podem ensinar alguma coisa sobre o que se passa hoje na política e nas redes sociais, em que a desarticulação do pensamento se encontra com um substrato tecnológico bem mais poderoso que o livro para ressuscitar a repetição de curto alcance, na forma de memes, e dissolver os adesivos sociais do diálogo e da reflexão.

Não é só uma figura de linguagem, assim, dizer que o resultado da eleição americana representa um rompimento com a loucura e a infantilidade retrógradas na política em favor do fio tênue de razões e evidências encadeadas que pode nos libertar dos fantasmas do passado —mas não necessariamente.

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