Descrição de chapéu Clarice 100

Filme inédito dá destaque à doméstica em obra de Clarice Lispector

Luiz Fernando Carvalho faz leitura decolonial de 'A Paixão Segundo G.H.' em longa adiado pela pandemia

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Marilene Felinto

Autora de "Mulher Feita e Outros Contos" e "As Mulheres de Tijucopapo". Mantém o site marilenefelinto.com.br

[RESUMO] Autora compara filme de Luiz Fernando Carvalho com o romance "A Paixão Segundo G.H.", de Clarice Lispector, e destaca o papel da empregada que tem aparição breve porém marcante, a sugerir o lugar de solidão e silêncio a que está relegada.

*

A pandemia impediu que a maior surpresa entre as homenagens do centenário de Clarice Lispector estreasse neste ano: o longa-metragem “A Paixão Segundo G.H.”, do romance homônimo da escritora, obra do cineasta Luiz Fernando Carvalho.

Clarice nasceu em 10 de dezembro de 1920 e publicou “A Paixão Segundo G.H.” em 1964. Surpresa e curiosidade caminham juntas ante a simples ideia de que alguém transponha para a tela esse texto nada convencional, aparentemente “infilmável”, em que a torrente discursiva e o monólogo labiríntico constituem eles mesmos um fato do enredo.

Mas isso é exatamente o que Carvalho gosta de fazer e faz sem medo. Sua relação com a literatura não é de hoje. Transformou em filme o romance “Lavoura Arcaica”, de Raduan Nassar, em 2001, e fez de “A Pedra do Reino”, de Ariano Suassuna, uma minissérie para a TV Globo.

Tratar do novo filme agora, sem que seja possível vê-lo ainda, pode parecer injusto com o público, mas o que faço é apenas uma menção de passagem —uma curta degustação de um único aspecto dele—, como contribuição pessoal aos cem anos do gênio de Clarice Lispector, cuja obra é a mais original e expressiva já escrita por uma mulher no Brasil.

Tive oportunidade de assistir ao filme no ano passado, ainda não totalmente finalizado, em um pequeno estúdio de montagem em São Paulo, a convite de Carvalho. Aceitei, movida pela curiosidade e pela memória do impacto que o romance me causou quando eu ainda era estudante de letras.

Sozinha naquela saleta do estúdio, tive uma sensação de constrangimento, porque os tantos críticos de cinema é que saberiam, eles sim, analisar trabalho daquele porte. E estava assombrada ainda pelas dezenas de estudiosos tarimbados na obra de Clarice, da psicologia à crítica literária, da antropologia à filosofia.

Talvez não fosse eu quem devesse estar naquela avant-première solitária. De modo que não pretendo abrir aqui nenhum debate formal sobre a transposição da obra literária para a linguagem cinematográfica, sobre se a relação entre romance e filme opera contribuições ou entrelaçamentos etc. etc.

E como, de todo modo, sempre evitei ao máximo ler o que se escreve sobre Clarice e sua obra, para preservar intacta minha primeira leitura de juventude do texto clariciano, prossegui à audiência da película nesse estado de espírito.

Na verdade, tenho consciência de que minha leitura do romance “A Paixão Segundo G.H.” tem certo grau de reducionismo, desde um antigo trabalho de conclusão de curso que escrevi sobre ele na faculdade.

O que mais me interessou, naquela ocasião, foi a personagem da empregada doméstica, Janair, cuja presença (um “império”, diz a protagonista G.H.) na narrativa é geralmente minimizada nas análises da obra.

De tal modo isso me moveu que acabei escrevendo como trabalho de curso um pequeno tratado meio simplista (mas já, então, “pós-colonial”? afinal, isso foi há 40 anos!) sobre as domésticas na obra de Clarice.

Elas são muitas, especialmente nas crônicas da autora. A Janair de “G.H.” está também na “Quinta História”, em “A Criada”, em “A Tão Sensível”, em “Enigma”, em “Ideal Burguês”, em “A Menor Mulher do Mundo”, entre outras.

A serviçal negra e isolada no quarto dos fundos está em todas as empregadas domésticas sobre as quais Clarice Lispector demorou seu olhar social e lírico, a partir das quais descreveu seu renovado espanto (e sua culpa?) pela diferença de classe, de raça, de lugar social.

Ainda hoje, para definir o enredo do romance “A Paixão Segundo G.H.”, prefiro dar o devido destaque à relação patroa-empregada, que me parece crucial nesse livro, e não apenas à crise da mulher burguesa (G.H.) que, na busca por si mesma, vai às raias da identificação com uma barata.

Ou seja, meu resumo reducionista é: “A Paixão Segundo G.H.” é a história de uma empregada que pede demissão do serviço e dispara uma crise existencial na patroa, esta que se surpreende até à náusea ao adentrar o quarto da serviçal, lugar que desconhecia no universo de seu próprio apartamento.

Ela então encontra, rabiscado a carvão na parede branca do quarto, o desenho de si mesma (de seu homem e de seu cão) que a empregada tinha feito. Ali estava o ousado e inusitado “julgamento” que a doméstica imprimira da patroa.

“Janair me odiara”, conclui G.H. “Havia anos que eu só tinha sido julgada pelos meus pares e pelo meu próprio ambiente que eram, em suma, feitos de mim mesma e para mim mesma. Janair era a primeira pessoa realmente exterior de cujo olhar eu tomava consciência.”

Na minha leitura, o ato de a empregada ter pedido demissão e “vingar-se” da patroa com o desenho na parede é tão importante quanto a crise desta (sua paixão, seu sofrimento, que também se dá na busca de uma expressão que a reorganize) e seu encontro com a barata escondida no quarto da doméstica.

Evidente que o enredo em si, como sucessão de fatos que constituem a narrativa, não diz o que é esse romance intemporal, em que tudo é ruptura e procura, sucessão de pensamentos, indagações e apelos a um alguém ausente. No monólogo de G.H., a procura é também pela palavra que exprima o inexprimível: a protagonista, uma dona de casa de classe alta, mas também artista, escultora, está em busca de sua essência (o “mistério” de si mesma), das causas primárias sobre o que lhe aconteceu, o desmoronamento de seu “ideal burguês”, algo que desorganizou uma existência que lhe parecia antes tão sólida e conhecida.

Voltando ao filme, minha surpresa foi encontrar eco para aquela leitura de juventude no trabalho do diretor Luiz Fernando Carvalho. Do mesmo modo que no romance, em que a empregada não fala, e é apenas uma referência no monólogo da patroa, no filme a aparição da personagem é curta, em duas ou três cenas, mas suficientemente demorada em primeiro plano para sugerir o lugar de solidão e silêncio a que está relegada.

Como no romance, a empregada aparece toda vestida em seus trajes marrons, que se confundem com sua pele negra e a tornam ainda mais invisível para a patroa, que precisa se esforçar para lembrar seu nome.

Foto de rosto da atriz
Samira Nancassa, que interpreta a empregada doméstica Janair em 'A Paixão Segundo G.H.', de Luiz Fernando Carvalho - Divulgação

“E sua roupa?”, questiona-se G.H. “Não era de surpreender que eu a tivesse usado como se ela não tivesse presença: sob o pequeno avental, vestia-se sempre de marrom escuro ou de preto, o que a tornava toda escura e invisível —arrepiei-me ao descobrir que até agora eu não havia percebido que aquela mulher era uma invisível.”

No filme, a atriz negra no papel de Janair é amadora, Samira Nancassa, natural da Guiné-Bissau, refugiada econômica que vive em São Paulo. Até por essa escolha, Carvalho fez uma leitura decolonial (como se diz hoje) desse aspecto do romance, embora não use essa palavra nem se dê conta disso.

Sobre a visibilidade que deu na tela à invisibilidade da empregada doméstica, Carvalho comentou em conversa recente comigo:

“Talvez minha leitura de Janair, em que enxergo a personagem como elemento propulsor, protagonista de toda a transformação de G.H., assuste a alguns. Sinto muito. Meu propósito é jogar luz sobre uma estrutura que se arrasta faz séculos. Neste exato momento, prédios são erguidos no Rio de Janeiro (e em todo o Brasil) redesenhando a senzala hoje. Essa crítica social está posta no romance, mas há quem ainda teime em não ler assim. Clarice desenvolveu o romance a partir do encontro com o outro, até alcançar a coragem de realmente enxergar a si própria. Sem Janair não haveria G.H. Janair é, em si mesma, a revolução necessária, lição final compreendida através da travessia pela própria G.H”.

Carvalho rejeita o termo adaptação para seus trabalhos em cinema. Seu “A Paixão Segundo G.H.” é transformação fiel do texto em imagem, sem roteiro. O filme se apoia no espaço como fio condutor da narrativa, o que ajuda o expectador a se orientar pelo enredo.

Do living à sala de estar, da cozinha à área de serviço e ao quarto da empregada, a protagonista G.H. (representada pela atriz Maria Fernanda Cândido) vai transitando por esses ambientes em que diversos elementos de cena reforçam seu status social, sua vida supérflua, e até mesmo a atmosfera política em que vive, inclusive com uma referência ao golpe militar de 1964.

Carvalho resolveu adiar o lançamento do filme para depois da pandemia “por questões de saúde”. “Não diretamente minhas, mas do país, do cinema, da cultura”, diz ele. “É um posicionamento político meu em relação a todo o desmantelo. Uma reflexão ética dentro do que entendo que seja a função do artista em uma sociedade tão desigual como a nossa, regida, por um lado, pelo vírus e, por outro, pela ganância de um modelo único de mercado em detrimento da ciência e das artes.”

“Não tenho a menor segurança de lançar ‘G.H.’ antes da vacina, enquanto não houver uma perspectiva de estreia segura no Brasil. Numa situação como esta, os verdadeiros independentes são os que mais sofrem. Festivais diminuem suas sessões mais ‘artísticas’, privilegiando as grandes distribuidoras de sempre, produtoras e celebridades internacionais de sempre, em especial as americanas.”

“Me parece um triste faz de conta acreditarmos que a reabertura das salas neste momento não acarretará crescimento do número de mortes. Tudo aponta para um desrespeito à população em prol do lixo cultural americano encalhado, que precisa desaguar em alguma vala comum da ‘América Latrina’. A barreira, além de sanitária, precisa ser de consciência.”

A Paixão Segundo G.H.

  • Elenco Maria Fernanda Cândido e Samira Nancassa
  • Direção Luiz Fernando Carvalho
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