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Novo título de 'A Revolução dos Bichos' é pulo do gato, afirma tradutora

Romance de George Orwell foi renomeado para 'A Fazenda dos Animais' em nova edição

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Dirce Waltrick do Amarante

Tradutora e professora da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina). Autora, entre outros livros, de "Para Ler Finnegans Wake de James Joyce" e "James Joyce e Seus Tradutores". Organizou e cotraduziu "Finnegans Rivolta", de Joyce

[RESUMO] Em 1964, a fábula satírica de George Orwell sobre o stalinismo foi publicada no Brasil, traduzida por um tenente em plena ditadura, com o título “A Revolução dos Bichos”, que foi mantido em sucessivas edições posteriores. Quase seis décadas depois, o livro volta com nova tradução, de Paulo Henriques Britto, e outro título, “A Fazenda dos Animais”. Comparando as duas versões, professora analisa os contextos políticos e as complexas decisões que guiam uma tradução.

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“Animal Farm: a Fairy Story” começou a ser escrito no final de 1943 pelo escritor britânico George Orwell, nome de pena de Eric Arthur Blair, mas só foi publicado em 1945. Duas décadas mais tarde o livro chegou, em língua portuguesa, ao Brasil.

O ano era 1964, e nada como um livro contra o comunismo para referendar o golpe militar em curso. O tradutor da versão brasileira era um tenente, Heitor Aquino Ferreira, secretário do general Golbery do Couto e Silva.

A tradução de Ferreira ganhou inúmeras edições e consolidou o título “A Revolução dos Bichos: um Conto de Fadas”, como o livro passou a ser conhecido por aqui. Para a propaganda anticomunista, um título mais próximo do original —como “Fazenda dos Animais”, “Granja dos Bichos”, “Sítio dos Bichos” etc.— certamente não teria o impacto que teve a palavra revolução impressa na capa.

Porco em cima de uma mesa redonda, com fundo vermelho e rosa
Ilustração da capa do livro 'A Fazenda dos Animais', de George Orwell, publicado pela Companhia das Letras - Deco Farkas/Divulgação

Diferentes propostas de traduções são sempre bem-vindas. Aliás, nenhuma pode ser considerada definitiva. Parece que teremos novas versões do clássico inglês em língua portuguesa, depois da recente publicação do livro pela Companhia das Letras em tradução de Paulo Henriques Britto. Tem chamado a atenção o novo título da obra em português: “A Fazenda dos Animais”.

Em um encontro promovido pela Companhia das Letras, Paulo Henriques Britto conversou com Caetano Galindo a respeito de sua tradução. Questionado sobre o título, Britto afirmou ter sido uma escolha editorial.

Ele pensou primeiramente em manter “A Revolução dos Bichos”, mas acabou aceitando a sugestão da editora, depois de ler o posfácio de Marcelo Pen para esse volume. Deu-se conta de que o novo título, além de tirar o “ranço” da época dos militares, faz menção direta ao espaço da ação.

Diz Pen em seu texto: “Assim, no Brasil, recebemos a obra com o famoso título ‘A Revolução dos Bichos’, deslocando o foco do fruto do ato para o ato em si, do espaço para a ação. Cabe ressaltar que se trata de um espaço importante, não apenas por revelar um ambiente muito típico da realidade rural inglesa, que Orwell tinha em mente, remetendo à sua infância e às circunstâncias em torno da gênese da obra, mas ainda por indicar aquilo que importa, em termos narrativos, isto é, que a propriedade passa a pertencer aos bichos, ou aos que trabalham nela, não aos que detêm o privilégio, e as consequências e transformações que se dão nessa localidade, depois disso”.

O fato é que o título “Animal Farm” é o nome de uma propriedade, algo como o “Sítio do Picapau Amarelo” (muito parecido em termos de tamanho com o sítio de Orwell), ou ainda, a Granja do Torto, a Fazenda das Acácias etc. Isso fica claro no seguinte parágrafo do segundo capítulo do livro:

“Then Snowball (for it was Snowball who was best at writing) took a brush between the two knuckles of his trotter, painted out MANOR FARM from the top bar of the gate and in its place painted ANIMAL FARM. This was to be the name of the farm from now onwards”.

“Então, Bola-de-Neve (que era quem escrevia melhor) pegou o pincel entre as juntas da pata, apagou o nome GRANJA DO SOLAR do travessão superior e, em seu lugar, escreveu GRANJA DOS BICHOS. Seria esse o nome da granja daquele momento em diante” (tradução de Heitor Aquino Ferreira).

“Bola de Neve (que era quem escrevia melhor) pegou um pincel com uma pata dianteira, cobriu de tinta a inscrição Fazenda do Solar, na trave de cima da porteira, e por cima dela escreveu Fazenda dos Animais. Esse seria o nome do lugar doravante” (tradução de Paulo Henriques Britto).

“Animal Farm” não me parece ser uma fazenda tal como a entendemos no Brasil. Fazenda se refere a uma grande propriedade com vários trabalhadores e muitos animais, ou uma grande plantação, mas não é isso que vemos na “fazenda” de Orwell.

A propriedade descrita no livro conta com pouquíssimos trabalhadores e parece bastante precária. Vale lembrar que “farm” pode ser traduzido também por sítio, quinta, campo, propriedade etc.

Paulo Rónai adverte para um dos problemas da tradução: “E os sinônimos, palavras de sentido idêntico ou quase idêntico? Eles representam outro tipo de emboscada. Por não haver sinônimos perfeitos, eles não são permutáveis em todos os enunciados possíveis. Pai e papai são sinônimos, mas não se diz Fulano de tal, papai de três filhos. Quando a língua estrangeira apresenta diversos sinônimos lá onde a sua própria língua lhe oferece apenas uma palavra, o tradutor não tem dificuldade; mas terá de ponderar a escolha de cada vez que para um termo estrangeiro existirem dois ou três equivalentes no seu idioma [...]. Havendo abundância de sinônimos para determinada noção nas duas línguas, o bom tradutor procurará determinar o matiz, o sabor, a aura social daquele que figura no original para transportá-lo em sua língua”.

A propósito, “animal” também pode ser traduzido de diversas formas, mas o problema que se coloca não é o mesmo da tradução da palavra “farm”: traduzir animal por bicho ou animal depende mais de uma escolha sonora, de gosto pessoal, do que de uma conotação específica, como é o caso de “farm”.

Ferreira traduziu “Animal Farm” por “Granja dos Bichos”, como se viu acima. Se esse fosse o título do livro, ouso especular, talvez os leitores pudessem relacionar a granja ficcional à Granja do Torto (uma das residências do presidente do Brasil), o que seria cômico, à revelia do tradutor, que era militar.

E a palavra “revolução” usada no título da tradução de Ferreira? Pen afirma não haver “revolução/revolution” no livro. A palavra usada reiteradas vezes, de fato, é “rebellion”: “That is my message to you, comrades: Rebellion! I do not know when that Rebellion will come, […]”.

“Esta é a mensagem que eu vos trago, camaradas: rebelião! Não sei dizer quando será esta revolução, [...]” (tradução de Heitor Aquino Ferreira).

“Esta é a minha mensagem para vocês, camaradas: Rebelião! Não sei quando virá essa Rebelião, [...] (tradução de Paulo Henriques Britto).

No entanto, “rebellion” também pode ser vertido para “revolução”, ainda que não seja a primeira opção tradutória. No exemplo acima, Ferreira usou “rebelião” e, logo em seguida, “revolução”. Desse modo, acabou endossando a escolha de “revolução” no título do livro.

Cabe destacar que o texto de orelha da edição de 1946 de “Animal Farm”, publicada pela Harcourt Brace and Company, começa exatamente assim: “The animals on Mr. Jones’s farm stage a successful revolution [...]”, ou seja, “Os animais do sítio do sr. Jones organizam uma revolução bem-sucedida” (tradução minha).

Ocorre que a Companhia da Letras tem em seu catálogo a versão de Ferreira. Talvez os editores tenham pensado que não valeria a pena fazer uma nova tradução e manter o título consagrado, mesmo mudando a capa do livro, pois os leitores iriam achar que se tratava do mesmo texto em português. Os leitores frequentemente não se preocupam com o nome do tradutor, de modo que uma nova versão não bastaria para fazê-los comprar o livro.

E ainda que se preocupassem, cabe ressaltar que o nome do tradutor não aparece na capa de “A Revolução dos Bichos”, assim como também não aparece na capa de “A Fazenda dos Animais”. Renomear em português o romance foi uma forma de recuperar o título “original” e assim dar uma identidade à versão mais atual —uma espécie de pulo do gato (assim seguimos com a bicharada) da editora.

A Fazenda dos Animais: um Conto de Fadas

  • Preço R$ 19,90 (136 págs); R$ 13,90 (ebook)
  • Autoria George Orwell
  • Editora Companhia das Letras
  • Tradutor Paulo Henriques Britto
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