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Thiago Camargo

Banimento de Trump de redes sociais não é censura

Relação de usuários e plataformas é baseada em termos e condições, que presidente se recusou a respeitar

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Thiago Camargo

Advogado e mestre em administração pública pela Universidade Columbia. Foi secretário de Políticas Digitais do MCTIC (Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações) e membro do Comitê Gestor da Internet no Brasil

[RESUMO] Autor argumenta que a suspensão de contas do presidente americano não pode ser chamada de censura. Ação coordenada do Twitter e de outras empresas se explica pelo alto custo que a ausência de uma reação dura traria para as companhias depois da invasão do Capitólio.

"Deixa que digam / Que pensem / Que falem / Deixa isso pra lá / Vem pra cá/ O que é que tem? / Eu não estou fazendo nada / Você também / Faz mal bater um papo assim gostoso com alguém?"

Em 1964, Jair Rodrigues gravou o samba (ou seria o primeiro rap brasileiro?) “Deixa Isso pra Lá”, que representa bem o espírito com o qual as redes sociais começaram. Que mal poderia fazer "bater um papo assim gostoso com alguém", não é mesmo?

No mesmo ano, uma ditadura se instalava no Brasil e fazia da censura um dos mais eficientes métodos de repressão à expressão de descontentamento. Se uma gravadora se recusasse a gravar uma música de Jair Rodrigues, seria somente uma opção comercial, mas o governo poderia, utilizando a lei e a força, proibir que a música fosse gravada ou cantada, distribuída, impressa ou até mesmo sussurrada. Isso foi feito com vários artistas.

Donald Trump, de perfil, acena com a mão direita. Gramado e apoiadores ao fundo
Donald Trump acena na Casa Branca - Brendan Smialowski - 12.jan.21/AFP

A ditadura usou o aparato estatal para proibir algumas pessoas, que viviam ou não da sua liberdade de expressão, de expressar suas ideias e seus sentimentos. Isso é censura.

O banimento de Trump do Twitter, por outro lado, não é censura, é reposicionamento corporativo.

Há alguns dias, o presidente dos EUA, Donald Trump, foi banido do Twitter. Foi banido, também, do Facebook, Snapchat, Pinterest, TikTok, YouTube e outras plataformas. Alguns motivos existem para isso ter acontecido somente agora —e existe um motivo para essas ações não serem chamadas de censura.

O banimento acontece agora porque é a primeira vez que há uma ligação direta, na visão da plataforma, entre um tuíte do presidente e cinco mortos no mundo real. Nele, Trump convocou seguidores a ir a um comício em Washington, com a promessa de que o evento seria "selvagem" e lá discursou instando a massa a marchar rumo ao Capitólio. O resultado foi visto em todos os jornais.

O banimento, porém, acontece só agora porque as empresas que não se posicionarem diante de atitudes do tipo correrão o sério risco de ser vistas como facilitadoras ou financiadoras de ataques à democracia. Nos últimos anos, a indústria de coleta e de tratamento de dados, sobretudo as redes sociais, passaram a enfrentar um nível de desconfiança da população e de escrutínio de legisladores comparável ao que as indústrias do tabaco e das armas já enfrentaram no passado.

Contribuem para isso o escândalo da Cambridge Analytica —e seu envolvimento no brexit e na eleição do próprio Trump— e a recente produção literária e audiovisual que analisa o fenômeno. Livros como "The Age of Surveillance Capitalism" (a era do capitalismo de vigilância) e documentários como "Privacidade Hackeada" e "O Dilema das Redes" colocam essa indústria contra a parede.

As big tech são criticadas, por motivos diferentes, por gente de todos os espectros políticos: por, supostamente, violar a privacidade, promover a radicalização, estimular comportamentos compulsivos, tornar as pessoas desconectadas do mundo real, fragilizar a democracia, tirar proveito de regimes de trabalho análogos à escravidão e destruir pequenos e médios negócios.

Não é uma reputação fácil de contornar. É o tipo de notoriedade que estimula impulsos regulatórios.

Essa visão de que atividades não reguladas no mundo digital poderiam destruir pilares fundamentais do mundo real motivou a iniciativa do presidente francês, Emmanuel Macron, de lançar em 2018 o Paris Call durante o Fórum de Governança da Internet, na capital francesa.

Trata-se de um manifesto por uma nova regulação do mundo digital que, baseada em nove princípios, não seja, nas palavras de Macron, tão restritiva de liberdades quanto a que se vê na China e nem tão permissiva quanto a que se vê na Califórnia. Entre esses princípios, há um que prega defender os processos eleitorais.

O Paris Call foi subscrito por 79 países e 686 empresas e entidades do setor privado. Gigantes do setor de tecnologia, como Microsoft, Facebook e Google, também assinaram.

Meses se passaram, e ninguém havia banido Trump. A primeira explicação é que, até então, não havia existido um atentado real contra a democracia. Os tuítes acusando, sem evidências, que a eleição havia sido fraudada foram combatidos com alertas de desinformação, limitação de alcance ou eliminação da postagem. O ataque ao Capitólio, contudo, foi um atentado real, em uma outra escala.

A segunda explicação é que Trump já tinha perdido a eleição e, com isso, não poderia mais modificar a Seção 230 do Communications Decency Act, que diferencia o que é responsabilidade da plataforma e o que é responsabilidade do usuário das plataformas.

Uma terceira explicação é que, diante da invasão do Capitólio, a ausência de uma reação dura com aqueles que atacam a democracia poderia ter um custo muito alto às empresas, com reação negativa por parte dos consumidores —ou um pouco de tudo isso ao mesmo tempo.

O alto custo de não reagir aos ataques à democracia explica o comportamento do Twitter e de outras empresas no pós-banimento. O diretor-presidente do Twitter, Jack Dorsey, em vídeo vazado recentemente, disse que focar Trump foi só o início. Grandes empresas já anunciaram que não vão mais doar para campanhas de congressistas que contestaram os resultados das eleições.

Em outra ponta, plataformas vistas como facilitadoras de grupos extremistas, como Gab e Parler, foram banidas das lojas de aplicativos e da infraestrutura de grandes empresas.

Por fim —e voltando ao começo— essa ação coordenada de banimento, retirada de aplicativos de lojas e recusa em fornecer infraestrutura não pode jamais ser chamada de censura. A relação de Trump com os aplicativos, bem como dos aplicativos com as lojas de aplicativos ou das startups com as empresas de infraestrutura, são relações entre entes privados baseadas em contratos e/ou termos e condições.

Essas relações podem ser rompidas a qualquer tempo caso alguma das condições seja desrespeitada. Trump continua podendo convocar quantas entrevistas coletivas quiser. Ele não foi preso, torturado ou impedido de se expressar. Só não pode mais se expressar pelo Twitter, já que se recusou a respeitar os termos e condições de uso da plataforma. Da mesma maneira que —"Vai, vai por mim"— se recusou a respeitar os termos e condições do jogo democrático.

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