Como curta de 1921 moldou o cinema experimental e ressoa em Scorsese e Woody Allen

Primeiro filme de vanguarda americano, 'Manhatta' foi pioneiro no uso da poesia no cinema

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Carlos Adriano

Cineasta e doutor pela USP, realizou pós-doutorado em comunicação e semiótica pela PUC-SP e dirigiu "O que Há em Ti" (2020) e "Santos Dumont Pré-cineasta?" (2010), entre outros filmes

​[RESUMO] Autor reflete sobre o pioneirismo de "Manhatta", realizado há cem anos, que justapõe a paisagem urbana de Nova York a versos de Walt Whitman. Considerado o primeiro filme de vanguarda norte-americano, o curta mudou os rumos do cinema experimental e ressoa em obras de cineastas nova-iorquinos consagrados, como Martin Scorsese e Woody Allen.

Há cem anos, um filme realizado em Nova York desafiou a então incipiente indústria do cinema norte-americano com a projeção-proposição de uma outra possibilidade de imagem em movimento.

Produto da colaboração entre o fotógrafo Paul Strand (1890-1976) e o pintor Charles Sheeler (1883-1965), “Manhatta” (1921, 11 minutos) foi pioneiro no uso da poesia como parâmetro não narrativo para o cinema, na contracorrente da indústria do filme “mainstream”, que se apoiava no romance e no teatro.

Se é possível dizer que, no período de 1893 a 1913 (“early cinema”, ou cinema das origens), os primeiros filmes eram experimentais pela própria natureza, em métodos de produção e técnicas de linguagem, é correlata a demarcação da era dourada da Hollywood silenciosa, entre 1925 e 1929, devido a “Em Busca do Ouro” (1925, Charles Chaplin), “A General” (1926, Buster Keaton, Clyde Bruckman), “Aurora” (1927, F.W. Murnau), “Docas de Nova York” (1928, Josef von Sternberg) e “Aleluia” (1929, King Vidor).

Pouco antes de Strand e Sheeler rimarem normas plásticas e poéticas, D.W. Griffith consolidava as convenções da gramática cinematográfica, baseadas no melodrama, com “O Nascimento de uma Nação” (1915), “Intolerância” (1916) e “Lírio Partido” (1919).

Só em 1928 apareceria ali outro filme experimental, “The Life and Death of 9413, a Hollywood Extra” (a vida e a morte 9413: um extra de Hollywood, de Robert Florey, Slavko Vorkapich e Gregg Toland).

Ainda em 1921, Marcel L’Herbier realiza “Eldorado” do outro lado do Atlântico, mas o grosso da finesse da “avant-garde” só viria depois: “A Roda” (1923, Abel Gance), “Entreato” (1924, René Clair), “Ballet Mécanique” (balé mecânico, 1924, Fernand Léger e Dudley Murphy), “Cinema Anêmico” (1926, Marcel Duchamp), “Um Cão Andaluz” (1928, Luis Buñuel e Salvador Dalí), “A Queda da Casa de Usher” (1928, Jean Epstein).

“Manhatta” é considerado o primeiro filme de vanguarda norte-americano e o primeiro exemplar do ciclo conhecido como sinfonias da cidade. Quase subgênero do documentário, são filmes em que a paisagem urbana é tela de frente e fundo para aquele dito de Lacan trazido por Barthes: “A realidade se mostra, o real se demonstra”.

Essas partituras urbano-visuais também ilustrariam as teses de Walter Benjamin sobre o aedo desgarrado no auge do capitalismo, tal como epitomizado por Charles Baudelaire.

O ciclo correu mundo —na França, “Rien que les Heures” (apenas as horas, 1926, Alberto Cavalcanti) e “A Propósito de Nice” (1930, Jean Vigo); na Alemanha, “Berlim - Sinfonia da Metrópole” (1927, Walter Ruttmann); na União Soviética, “Um Homem com uma Câmera” (1929, Dziga Vertov); na Holanda, “Regen” (chuva, 1929, Joris Ivens e Mannus Franken); em Portugal, “Douro, Faina Fluvial” (1931, Manoel de Oliveira).

Até na província a melodia foi propagada (e não necessariamente papagueada): aqui se filmou “São Paulo, a Sinfonia da Metrópole” (1929, Adalberto Kemeny e Rudolf Rex Lustig).

“Manhatta”, cujos títulos iniciais variaram entre “New York The Magnificent” (Nova York, a magnífica) e “Fumée de New York” (fumaça de Nova York), foi anunciado como “um estudo da moderna Babilônia-sobre-o-Hudson”. O filme constrói os contornos da cidade cola dos às imagens com o cimento das vinhetas feitas dos versos de Walt Whitman (1819-1892).

Extraídos de “Folhas de Relva” (1855-1892), os poemas citados são, em tradução livre: “Cidade dos Navios”, “Um Desfile na Broadway”, “Mannahatta”, “Uma Canção às Ocupações”, “Canção da Exposição”, “Canção do Machado Largo”, “Centelhas da Roda” e “Travessia da Balsa do Brooklyn”. Os versos inscrevem-se como intertítulos sobre uma paisagem pintada (o horizonte de arranha-céus, visto a partir do rio Hudson).

No filme, não vemos folhas no chão. A maioria das tomadas tem a câmera no topo dos prédios. Além de fachadas e outros sinais que abrem a metrópole, o que mais se vê são as ondas do rio. Por vezes, os versos imantam um sintagma de imagens correspondentes ao que se lê nos letreiros (os barcos na baía); por outras, arma-se uma alavanca de contrastes entre palavra e imagem (exortação redentora e as condições adversas dos operários).

Extraídos do poema “Canção da Exposição”, os versos “este mundo todo estendido / com trilhos de ferro” (em tradução livre) chamam uma imagem nebulosa: a fumaça expelida pelo trem vela e desvela a estação ferroviária. A rima visual entre os fios do poste e os trilhos e(s)coa o ranger verbal (trem, trilhos, ferro).

A linha “onde a multidão incessante da cidade / move-se, o vivo e longo dia” (em tradução livre) anuncia uma ousada tomada em “plongée”, com colunas de um mirante (em primeiríssimo plano) deixando vazar por entre os vãos as artérias que transportam carros e pessoas, acendendo as “centelhas da roda” que fazem andar a cidade.

Planos extremamente gráficos e contrastados de nuvens acima de barcos são introduzidos por trechos de “Travessia da Balsa do Brooklyn”: “lindas nuvens do pôr do sol! / reguem com seu esplendor / eu ou os homens e as mulheres / gerações depois de mim” (em tradução livre). O caráter de porto dessa “cidade do mundo” (como enuncia Whitman) é um irônico e lírico epílogo para a epístola fílmica sobre a ilha.

O fulgor fotográfico de “Manhatta” é tributário da origem de seus autores. Sob o contínuo rearranjo de luzes e sombras (como equivalentes de vidros, pedras e metais dos prédios), a construção do filme simula a edificação dos arranha-céus de Nova York, com o acúmulo de imagens que ameaçam desabar sobre o espectador —talvez “assassinado pelo céu”, como diria Federico García Lorca em “Poeta em Nova York”, referindo-se à “arquitetura extraterrestre” da cidade onde escreveu “Ode a Walt Whitman” e o roteiro de filme “Viagem à Lua”.

A muda cacofonia proporciona uma experiência óptica arrebatadora. A composição da imagem da ponte do Brooklyn não só é alicerce para filmes de vanguarda posteriores como “Under the Brooklyn Bridge” (sob a ponte do Brooklyn, 1953, Rudy Burckhardt), mas também ressoa nos poemas de Vladimir Maiakóvski (“A Ponte do Brooklyn”, 1925), García Lorca (“Noturno da Ponte do Brooklyn”, 1929) e Hart Crane (“A Ponte”, 1930).

Se Whitman foi o guia de Strand e Sheeler, Robert Desnos o seria para Man Ray em “Estrela do Mar” (1928). A noção de poesia como eixo para um programa de linguagem formal e a figura do poeta como um modelo de posição e postura do artista seriam seminais para o cinema de vanguarda e para o americano em particular.

Um de seus expoentes sintomáticos foi Stan Brakhage, romântico eremita encarapitado nas montanhas do Colorado, que realizou quase 400 filmes em 50 anos, em formatos e durações variáveis (de 8 mm a Imax; de 9 segundos a 4 horas), em técnicas e estilos vários (de ensaios sensuais encenados a garatujas pintadas sobre a película).

Até 2001, “Manhatta” circulava nos Estados Unidos apenas em pobres cópias 16 mm. Até que uma gloriosa cópia em nitrato 35 mm foi repatriada do British Film Institute, de Londres. O cinema underground americano dos anos 1950 e 1960 foi objeto de uma poderosa campanha de institucionalização da arte nos EUA, embora longe dos moldes impressionantes do expressionismo abstrato.

Galvanizadas pelo crítico, agitador cultural e cineasta Jonas Mekas, instituições propulsoras do filme experimental pontificaram na Nova York dos anos 1960 e 1970, como a revista Film Culture, a distribuidora The Film-Makers’ Cooperative e os Anthology Film Archives. Manhattan foi celeiro e estaleiro de inúmeros filme-artistas, como Maya Deren e Joseph Cornell nos anos 1940 e 1950 e Ken Jacobs e Hollis Frampton nos anos 1960 e 1970.

Morador de Lower Manhattan há mais de 60 anos, Jacobs (nascido no Brooklyn em 1933), fez seu primeiro filme na região —“Rua Orchard” (1955)— e retratou as estripulias performáticas de Jack Smith pelas ruas em “The Whirled” (rodopiado, 1956-1963), “Little Stabs at Happiness” (pequenas facadas na felicidade, 1958-1960), “Blonde Cobra” (1959-1960) e “Two Wrenching Departures” (duas dolorosas partidas, 2006).

O filme de Paul Strand e Charles Sheeler inseminou outras áreas além daquelas à margem da indústria. Martin Scorsese e Woody Allen, diretores que são tão cinéfilos contumazes quanto são nova-iorquinos obsessivos, deviam ter em mente o curta de 1921 ao retratarem e radiografarem a cidade em “New York, New York” (1977) e “Manhattan” (1979) respectivamente, entre muitos outros filmes que dirigiram.

Mas, talvez, o filme mais apropriado para compor um par com “Manhatta”, no programa duplo de uma sessão perdida na poeira dos tempos de cinematecas, seja a feérica peripécia em Ektachrome de “Go! Go! Go!”, realizado em 1964 pela maviosa fada gorda Marie Menken.

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