Conceito de tecnologia deve ser pensado à luz da diversidade, diz filósofo chinês

Em entrevista, Yuk Hui defende visão mais plural como forma de superar impasses atuais

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Ronaldo Lemos

Advogado, professor das Universidades de Columbia em Nova York e Tsinghua (em Pequim). É fundador do ITS ( Instituto de Tecnologia e Sociedade) Rio. Apresenta a série Expresso Futuro no Canal Futura e é colunista da Folha

São Paulo

[resumo] Um dos mais originais pensadores contemporâneos, o chinês Yuk Hui refuta a ideia ocidental de que a tecnologia é um fenômeno único e universal guiado apenas pela racionalidade. Em entrevista, ele comenta o conceito de tecnodiversidade, tema de livro publicado agora no Brasil, no qual propõe uma visão mais plural do tema, encarando a tecnologia como resultante de conhecimentos e contextos locais variados, o que pode contribuir para formas de pensar que levem à superação de impasses políticos, sociais e ecológicos atuais.

O chinês Yuk Hui tornou-se um dos pensadores centrais para entender o mundo contemporâneo. A originalidade da sua obra consiste precisamente em inaugurar um olhar novo sobre a questão da tecnologia.

Enquanto nós, no Ocidente, nos encantamos com o poder das próprias plataformas tecnológicas que criamos, enxergando-as a partir de ideias reducionistas, como o conceito de singularidade (grosso modo descrito como o momento em que as máquinas adquirem inteligência), Yuk Hui foi para um outro lugar.

Abraçou o conceito da tecnodiversidade, no qual destrói a ideia da tecnologia como um fenômeno universal. Na sua visão, a forma como lidamos com ela é limitante e obscurece nossa relação com o “cosmos” e suas infinitas possibilidades.

Ilustração de Jairo Malta para ilustríssima
Ilustração de Jairo Malta

Nesta entrevista, Yuk Hui comenta seu primeiro livro publicado no Brasil. Intitulado “Tecnodiversidade”, resulta de uma cuidadosa compilação de textos do pensador realizada pela editora Ubu, em contato diretamente com o autor.

A originalidade da sua obra confunde-se com a sua história pessoal. Nascido na China, formou-se em engenharia da computação em Hong Kong. Depois rumou para Londres, onde estudou no prestigioso Goldsmiths College. A partir daí, circulou por várias instituições europeias, incluindo o Instituto de Inovação do Centro Pompidou, em Paris, e as universidades Leuphana, em Luneburgo, e Bauhaus, em Weimar, ambas na Alemanha.

Voltou então para a China, onde passou a editar a coleção de filosofia da mídia e tecnologia da Academia de Ciências Sociais, em Xangai, e a dar aulas na Universidade de Hong Kong.

Homem com cabelo comprido
Retrato do filósofo Yuk Hui - Reprodução

Em 2019 esteve no Brasil para conferências na UFPB, na UFRJ e no ITS Rio. Com isso, Hui tece um diálogo entre o pensamento oriental e o ocidental para enfrentar a principal charada dos nossos tempos: o que fazer com a tecnologia?

De Hong Kong, Hui concedeu a entrevista a seguir via aplicativo de chamada pela internet.

Você ocupa uma posição única como pensador. Nasceu na China, fala mandarim, cantonês, teochew, inglês, francês e alemão, trabalhou em instituições renomadas no Ocidente e no Oriente. Vou começar te perguntando se é mais fácil filosofar em chinês ou alemão? [Risos]. De fato, a filosofia é sobre articulação e elaboração de conceitos cujas possibilidades estão na própria linguagem. Não dá para pensar sem a linguagem e é por isso que, para os gregos, a ideia de logos também significa a capacidade de linguagem.

A língua alemã, assim como o grego antigo, tem a vantagem de permitir a articulação precisa de significados. É por isso que Martin Heidegger disse certa vez que essas duas línguas são as línguas da filosofia.

Já o chinês é uma língua baseada em pictogramas, consistindo em uma forma de pensar conduzida por imagens. No entanto, isso não significa que o chinês seja uma língua imprecisa. Nas línguas europeias a noção de tempo é expressa por meio de tempos verbais. Já no Chinês, o tempo não é expresso em verbos, mas em advérbios.

Ilustração de Jairo Malta para ilustríssima
Ilustração de Jairo Malta

Curiosamente, é no japonês onde podemos encontrar uma combinação interessante de pictogramas (“kanji”) e a conjugação dos verbos. Nosso cérebro é moldado de acordo com a nossa experiência de aprender uma língua, que sintetiza modos diferentes de pensar.

Então, no final, não sei mais em que língua estou pensando. Como nesta entrevista em que estamos nos comunicando em inglês, mas não é realmente inglês que estamos “falando”.

Como o Ocidente e o Oriente percebem a ideia de tecnologia? A tecnologia é um conceito universal? Primeiro, acho que é importante esclarecer o termo universal. No pensamento tradicional, o universal se opõe ao particular, em uma dualidade entre isto ou aquilo. Quando entendemos o universal dessa forma, a afirmação “a tecnologia é um universal” torna-se problemática.

Ou ainda, acreditamos que o progresso da humanidade é definido por uma racionalidade universal, que se concretiza no tempo. No entanto, esse conceito de tecnologia é apenas um produto histórico da modernidade ocidental.

De fato, entre o conceito grego de “technē” e a tecnologia moderna encontra-se uma ruptura epistemológica e metodológica. Não há conceito singular de tecnologia, nem epistemologicamente nem ontologicamente. Podemos no máximo dizer que o conceito de tecnologia foi universalizado através da história da colonização e da globalização.

Arnold Toynbee certa vez perguntou: “Por que o extremo oriente fechou suas portas para os europeus no século 16, mas abriu essas portas para eles no século 19?”. Sua análise é que, no século 16, os europeus queriam exportar tanto a sua tecnologia quanto a sua religião para o Oriente. Já no século 19, sabendo que a religião pode ser um obstáculo, os europeus exportaram somente a tecnologia.

Isso decorre de um modo de pensar em que a tecnologia seria somente um reles instrumento, que poderia ser controlado com um modo de pensar próprio. Os japoneses chamaram essa ideia de “wakon yōsai” (“alma japonesa, conhecimento ocidental”). Os chineses chamaram de “zhōng ti xī yòng” (“adotar o conhecimento ocidental para seu uso prático, mantendo os valores e usos chineses”).

No entanto, olhando retrospectivamente, essa dualidade provou-se insustentável. Nós ainda não entendemos a tecnologia e, por causa disso, ainda não somos capazes de superar a modernidade.

Ilustração de Jairo Malta para ilustríssima
Ilustração de Jairo Malta

Sua obra usa muitos conceitos do antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, como o perspectivismo ameríndio, para construir um entendimento maior sobre a tecnologia. Como o perspectivismo e Viveiros de Castro chegaram ao seu trabalho?Eu admiro o trabalho do professor Viveiros de Castro e o que ele chamou de multinaturalismo é muito inspirador. Ele e seus colegas, como Philippe Descola, têm tentando mostrar que a natureza não é um conceito universal.

Provavelmente, posso dizer que o que eu estava tentando fazer com o conceito de tecnologia é um eco da sua tentativa de longo prazo de articular um pluralismo ontológico. Meu sentimento é que, por causa da orientação e de conflitos de certas escolas da antropologia (por exemplo, entre Claude Lévi-Strauss e André Leroi-Gourhan), a questão da tecnologia não alcançou a clareza que ela merece.

Por isso, o pensamento sobre a natureza de alguma forma deixou esse seu outro aspecto subanalisado. Esse é um assunto que queria discutir com Viveiros de Castro há alguns anos. A novidade é que agora temos toda uma correspondência que trocamos e que será publicada na revista Philosophy Today a partir de abril deste ano.

O Ocidente está fascinado com a ideia de singularidade, que pode ser descrita como o momento em que as máquinas se tornam inteligentes e obtêm primazia sobre a humanidade, levando a um ponto de convergência. Versões dessa ideia aparecem em Ray Kurzweil, mas também no livro “Homo Deus”, no qual Yuval Harari basicamente desiste da ideia de humanismo em prol de uma tecnologia vindoura. Isso faz sentido? Esses discursos em torno da singularidade e do “homo deus” tornaram-se muito populares e perigosos. Eles revelam uma verdade parcial. E, por ser parcial, deixam de fora as questões mais fundamentais sem resposta. Do ponto de vista histórico, o processo de se tornar humano implica a invenção e o uso da tecnologia.

Assim, as teses de que os seres humanos fazem ferramentas e as ferramentas fazem os seres humanos são ambas válidas, como quando a paleontologia tem mostrado, em termos de continuidade e descontinuidade, a trajetória do zinjatropos aos neantropos (Homo sapiens).

O fato de a linguagem simbólica e a arte (como as pinturas rupestres) só terem aparecido entre os neantropos, mas não entre os paleantropos (neandertais), sugere que possa haver uma ruptura cognitiva e existencial. Esta consiste na capacidade de antecipação, de acordo com André Leroi-Gourhan ou, se seguirmos Georges Bataille em seu texto sobre as pinturas rupestres de Lascaux, no sul da França, na capacidade de reflexão sobre a própria morte.

Em outras palavras, a questão da mortalidade condiciona o horizonte de significados que definem o desenvolvimento da arte, da ciência e da política. A introdução da ideia de imortalidade, por meio de noções como a singularidade ou “homo deus”, pertencem a uma época em que a aceleração tecnológica constantemente é um elemento de disrupção dos nossos hábitos, abrindo caminho para a ficção científica tomar conta das nossas imaginações.

O Zaratustra de Nietzsche acabou se tornando, de forma inocente, o porta-voz desse negócio trans-humanista, que promove um otimismo a respeito da superação da humanidade por meio de aprimoramentos na duração da vida, na inteligência e na emoção.

Se for para nos tornarmos “homo deus” ou imortais, então teríamos de reavaliar todos os valores e significados condicionados pela mortalidade. Essas questões permanecem em silêncio no trans-humanismo e, portanto, o trans-humanismo é fundamentalmente uma forma de humanismo e de niilismo.

Para ser possível indagar sobre o futuro do humano ou do pós-humano, teremos de confrontar, em primeiro lugar, um niilismo do século 21. De outro modo, seremos apenas rebanhos participando de campanhas das empresas de biotecnologia e das editoras de livros.

Ainda faz sentido falar em distinções como orgânico e mecânico com o surgimento da tecnologia digital e do virtual?  A distinção entre orgânico e mecânico veio de uma necessidade histórica na Europa, especificamente o declínio no século 17 da filosofia mecanicista e a emergência da biologia no século 18, disciplina que só foi reconhecida no começo do século 19.

No pensamento chinês não é possível identificar uma trajetória similar, ainda que muita gente afirme que o pensamento chinês é orgânico —isso denota uma falta de compreensão sobre o assunto.

No meu livro “Recursivity and Contingency” (recursividade e contingência) —meu esforço de fornecer uma nova interpretação da história da filosofia europeia, desde o começo do período moderno até hoje—, explico que essa distinção era fundamental para os projetos filosóficos de Kant e de idealistas pós-kantianos, como Fichte, Schelling e Hegel.

Falo também como essa distinção foi colocada em questão pela cibernética, assim como da necessidade de formular uma nova condição filosófica para os nossos tempos. É por essa razão que a primeira frase desse meu livro declara que ele é um tratado sobre cibernética.

Há um enorme debate sobre as big techs, grandes empresas de tecnologia como Google, Facebook, Apple, Amazon etc. Na China há um ecossistema diferente, com empresas como Alibaba, Tencent, ByteDance e Baidu. A questão das big techs é a mesma no Ocidente e na China? De fato, o ecossistema chinês que você menciona não é tanto sobre inovação tecnológica, mas muito mais condicionado pelos sistemas social e político. Como consequência, os processos de normalização são diferentes entre si e cada um desses sistemas políticos e sociais.

Por normalização eu me refiro aos meios pelos quais se adquire legitimidade para se transformar em norma social. As pessoas no Ocidente tendem a pensar que os chineses não se importam com a privacidade, mas isso não é verdade. O fato é que na China o processo de normalização é em grande medida determinado pelo Estado e com isso vemos dinâmicas diferentes na recepção e no uso da tecnologia.


No entanto, como no Ocidente, as empresas de tecnologia usam a coleta de dados, construção de perfis e análises de comportamentos de um modo que ultrapassa a capacidade da administração estatal, o que pode se tornar uma ameaça ao poder do Estado. Acho que as acusações recentes de monopólio contra o Alibaba podem servir como um bom estudo de caso para essa questão.

Ao emergir como uma superpotência tecnológica, a China tem sido capaz de criar um modelo diferente de tecnologia e seus dispositivos ou é tudo a mesma coisa sob o sol, no Ocidente e no Oriente? Infelizmente, acho que não estamos testemunhando uma tecnodiversidade no seu sentido real. Certa vez eu fui a Hong Kong e Shenzhen com um grupo de estudantes russos que estava muito interessado em entender o desenvolvimento tecnológico na China.

No entanto, eles ficaram desapontados ao constatar que os aplicativos utilizados pareciam familiares, com a diferença de que a interface estava em chinês. Essa é outra razão pela qual a questão da tecnodiversidade ainda está por ser formulada.

Como o seu trabalho filosófico pode ser traduzido em ação? Existe um programa político que guie sua obra? Eu sou um filósofo, e o que posso fazer dentro da minha capacidade pessoal é formular questões que considero importantes e elaborar sobre a necessidade dessas questões.

Só posso desejar que o que eu tenho pensado possa ter ressonância sobre quem se preocupa com a questão da tecnologia e que possamos pensar juntos como um programa como esse poderia parecer e funcionar.

Se você me perguntar qual será o melhor caminho de começar algo assim, eu diria que precisamos reformar nossas universidades, em especial o sistema do conhecimento, suas divisões e estruturas, formas definidas séculos atrás.

No ano passado escutei sua conversa com Aleksandr Dugin, pensador a quem muita gente atribui, em uma simplificação grosseira, o rótulo de teórico do movimento antiglobalista contemporâneo. O que há de interessante no pensamento de Dugin e como ele se relaciona com o seu? A proposta de Aleksandr Dugin, bem como o legado da Escola de Kyoto, para mim é um assunto muito difícil de tratar. Quando digo difícil, não quero dizer que suas teorias sejam difíceis de entender, mas sim que é difícil desacreditá-los como fascistas e reacionários.

Se quisermos nos aproximar da questão do pluralismo, não podemos evitar as tensões entre essas diferenças. Desde o Iluminismo, a busca pelo universal tem sido central para o pensamento político. Aceitar com facilidade o universal elimina diversidades, reduzindo-as a meras representações, como no caso do multiculturalismo (o que Viveiros de Castro critica com razão).

A recusa fácil do universal em nome das particularidades também justifica o nacionalismo e a violência estatal. Não tenho a impressão de que Dugin ou os filósofos da Escola de Kyoto ignorem essa questão, no entanto tem havido obstáculos para o seu entendimento. Isso é o que eu chamo de “o dilema do retorno para casa” no meu livro sobre a questão da tecnologia na China. Penso que essa tem de ser a questão central da filosofia política no século 21.

Um dos pontos que chamam a atenção em Dugin é que a natureza em si não deveria ser um fenômeno universal. De forma grosseira, a visão dele acomodaria aqueles que acreditam que a terra é plana. No seu trabalho, você diz que a tecnologia não é um conceito universal. Como suas perspectivas se diferenciam? No meu debate com Dugin, ele elogiou o professor Eduardo Viveiros de Castro por sua ideia de multinaturalismo, mas seria inconcebível imaginar o professor Viveiros de Castro dizendo que a terra é plana. A natureza enquanto conceito, como a técnica, é uma construção histórica e cultural (geográfica).

No entanto, isso não significa que é uma construção puramente social e, desse modo, arbitrária. Quando eu digo que a tecnologia não é um universal, isso não significa que a teoria da causalidade aplicada para uma máquina mecânica é arbitrária ou que possamos reverter as causalidades. Rejeitar um conceito universal de natureza e de tecnologia não significa, de jeito nenhum, ser anticiência ou antitecnologia.

Minha sugestão é que, em vez de entender a tecnologia como uma substância universal sublinhada pela racionalidade, ela tem de ser entendida dentro de uma “gênesis”, por exemplo, em justaposição a outras formas de pensar, como a estética, a religião, a filosofia proposta por Gilbert Simondon, tudo sendo histórico e cultural.

Você esteve no Brasil, onde fez conferências na Paraíba e no Rio. Você tem hoje uma rede de interlocutores no país, como o professor Carlos Dowling, Hermano Vianna, Eduardo Viveiros de Castro e eu também. Quais foram suas impressões do Brasil e que papel nos cabe em termos de tecnologia? Foi minha primeira vez na América Latina, e isso me fez ter um entendimento melhor do legado colonial e também da inquietação social e política na região. Fiquei muito tocado com a recepção que tive no Brasil, e vejo que há muitas conversas por vir.

Acho que a América Latina em geral, e especialmente o Brasil, terá um papel muito importante a desempenhar no desenvolvimento de uma tecnodiversidade, a partir das necessidades de descolonização e das características próprias do seu pensamento.

Você mesmo me disse que há mais de uma década houve muitas tentativas no Brasil de articular uma tecnodiversidade [como no trabalho de Gilberto Gil no Ministério da Cultura], incluindo um trabalho sobre direitos autorais e sobre a perspectiva de grupos indígenas. Espero que surjam novos momentos para continuar esses trabalhos.

O seu livro “Tecnodiversidade” acaba de ser publicado no Brasil. É um livro único, no qual você trabalhou diretamente com a editora Ubu para compilar alguns dos seus trabalhos mais importantes, além de escrever uma introdução especial para o volume. O que você achou do resultado? A editora Florencia Ferrari foi muito gentil de ter se oferecido para publicar uma antologia dos meus textos. Tanto eu quanto ela temos de agradecer a você pelo texto de introdução.

Escolhi vários textos políticos e algumas conferências que realizei em Taipei em 2019, junto com o meu antigo orientador Bernard Stiegler. Fiquei feliz que esses artigos foram traduzidos para o português, uma vez que eles dão uma boa impressão da minha trajetória de 2016 a 2020, bem como quais seriam as implicações dos conceitos que venho desenvolvendo.

Uma pergunta pessoal: como você lida com a tecnologia? Você tem um smartphone? Está presente em redes sociais? Fica online por muito tempo ou tem algum tipo de compulsão para checar o celular o tempo todo, como todos nós? Minha primeira formação é como cientista da computação, então não sou realmente um ludita. Estou no Twitter, no Facebook, no WeChat e em outras mídias sociais. Se você quiser entender essas mídias, você tem de utilizá-las. Não pode criticá-las sem ao menos ter um conhecimento do que são, como muitos filósofos ainda fazem hoje.

No entanto, para conseguir me concentrar, somente me permito checar essas mídias sociais durante um período específico do dia. Em geral eu reservo as manhãs para estudar.

Você assistiu ao documentário “O Dilema das Redes”, na Netflix? Qual sua opinião? Assisti só a uma parte, mas, para mim, o problema não é tanto a questão da manipulação, mas sim a falta de alternativas. Em 2012, eu trabalhava no time do Bernard Stiegler em Paris para desenvolver uma alternativa a redes sociais como o Facebook. Seria o que chamei de rede social baseada em grupos, que possibilitaria um design alternativo.

O problema que vejo hoje é que não somos capazes de prover verdadeiras alternativas. Quando você está cansado do Facebook você muda para outro Facebook, que pode ser diferente apenas em sua política de dados e propriedade, mas você acaba fazendo as mesmas coisas lá e sofre dos mesmos problemas nessas novas plataformas. Criar alternativas faz também parte do que chamo de tecnodiversidade.

Quais sãos seus projetos atuais? Está dando aulas online? Como funciona isso para você? Estou aguardando a publicação de meu novo livro, “Art and Cosmotechnics” (arte e cosmotécnica) —espero que ele seja publicado a partir de abril de 2021. A partir daí, vou embarcar em outras aventuras. Atualmente estou dando aulas em Hong Kong.

Por causa da Covid-19, a maior parte tem sido online. É interessante que nesta época digital dar aulas face a face ainda seja considerado pela maioria das pessoas como mais “autêntico” e que ensinar online seja visto como secundário. Ao mesmo tempo, é espantoso que não haja mais ferramentas de ensino digital online e que todas as universidades acabem usando praticamente as mesmas ferramentas. Isso diz muitas coisas.

A pandemia foi um alarme para nos lembrar do nosso lugar na natureza e também no cosmos? Você acha que há alguma reconfiguração no pensamento por causa dela? Espero mesmo que seja um alarme. No entanto, isso não implica uma grande mudança na nossa orientação política. Ao contrário, pode ser o caso de que a recuperação econômica, social ou política apenas leve a formas ainda mais agressivas de exploração. Então, não é o caso de esperarmos o fim da pandemia para mudar algo.

Algumas novas orientações e estratégias têm de ser formuladas desde já. Ainda tenho esperança de que, com a tecnologia digital, possa haver algo que possamos fazer em termos de construir novas instituições e trocas.

A ideia de tecnodiversidade aplica-se às ciências da vida, como a pesquisa genética ou o desenvolvimento de vacinas? Faz sentido pensar em tecnodiversidade nesses casos? Em termos de tecnodiversidade, talvez possamos dizer que haja duas perspectivas, ainda que estejam inter-relacionadas.

Uma é a perspectiva da cultura, que elaborei no meu livro sobre a cosmotécnica, contra o conceito da universalidade da tecnologia. A outra é a perspectiva da epistemologia, como o que eu disse sobre as redes sociais. Diversificação é imperativo, não apenas da perspectiva do mercado, mas também da imaginação do futuro.

Qual o papel da religião no mundo de hoje? Se me lembro corretamente, você estudou em um colégio católico quando jovem. Além disso, a tecnologia é, de algum modo, uma nova forma ou um substituto para a religião? Depois do anúncio de Nietzsche sobre a morte de Deus, vemos que a religião cristã ainda existe, mas Nietzsche não está mais lá. A morte de Deus é para Nietzsche um momento de superar o conceito do humano, para inventar a ideia do “Übermensch”.

Deus é transcendência que não pode ser substituído pela tecnologia em si. No entanto, a fantasia sobre a tecnologia, como, por exemplo, a ideias de “homo deus”, de singularidade e outros termos que invocamos antes podem desempenhar esse papel.

Nosso conhecimento é limitado, muitas coisas são desconhecidas por nós. Com o avanço da ciência e da tecnologia, essas coisas passaram a parecer ainda mais místicas que antes. O desconhecido ocupa o lugar de Deus; alguns continuam a encontrá-lo na religião, alguns na poesia e alguns na arte. Para mim, a questão é qual a relação entre tecnologia e o desconhecido. Esse é o tema chave dos meus estudos no livro “Art and Cosmotechnics”.

Por fim, vivemos uma exaustão de paradigmas para entender o mundo? É necessário construir uma nova linguagem, baseada na ciência da computação, como propõe Stephen Wolfram, para explicar a natureza e o mundo? Ou ainda temos as ferramentas necessárias para isso? A linguagem para apreender as coisas em si, em sua totalidade, é chamada de metafísica. Nesse sentido, a cibernética, que entende o mundo através da retroalimentação de repetições e pela organização da informação, não apenas é metafísica, mas também sua completude, sua realização.

A linguagem cibernética hoje é concretizada em algoritmos, e algumas pessoas podem ser seduzidas pela ideia de que logo será possível decifrar os segredos do Universo, da mesma forma como se aspirou logo depois da descoberta do DNA. E, de fato, alguns biólogos hoje usam uma metáfora linguística para entender o DNA como se fossem algoritmos e informação codificada por meio dele.

No entanto, hoje vivemos em um mundo pós-metafísico, posterior à ideia da morte de Deus e posterior ao fim da metafísica e das batalhas do século 20. Vamos precisar de uma abertura para entender este mundo e procurar um lugar para nós mesmos no cosmos.

Não estou dizendo que não seja promissor entender o mundo através da ciência, ou que deveríamos abdicar da ciência ou da tecnologia. Isso de forma alguma é o que afirmo. Em vez disso, não importa o quão avançado seja nosso conhecimento, devemos sempre lembrar a nós mesmos da nossa própria finitude em face ao mundo. De outro modo, vamos apenas bater em retirada em direção à metafísica.

Algo parecido com o que Rainer Maria Rilke disse nas “Elegias de Duíno”: “Com todos os seus olhos, o mundo natural vê o Aberto. Nosso olhar, porém, foi revertido e como armadilha se oculta em torno do livre caminho. O que está além, pressentimos apenas na expressão do animal; pois desde a infância desviamos o olhar para trás e o espaço livre perdemos, ah, esse espaço profundo que há na face do animal”.

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