Conheça Sindika Dokolo, marchand que impulsionou arte africana e se envolveu no Luanda Leaks

Legado do maior colecionador da África se confunde com herança da família Dos Santos, que comandou Angola

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Mathias Alencastro

Pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento, ensina relações internacionais na UFABC

[RESUMO]Sindika Dokolo, que foi casado com a mulher mais rica da África, tornou-se o maior negociador de arte do continente, levando artistas africanos aos círculos internacionais. Ao mesmo tempo, foi arrastado pelas revelações de desvios do Luanda Leaks. Autor diz que é preciso afastar caricatura de corrupto de país pobre e tratá-lo como personagem único do pós-colonialismo africano.

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Quando morreu em Dubai, em outubro passado, Sindika Dokolo vivia dias de sossego em um ano até então infernal. Em janeiro, a tempestade midiática e judiciária chamada Luanda Leaks abateu-se sob a sua família. As revelações sobre a sua esposa, Isabel dos Santos, estilhaçaram a aura do casal, outrora tratado como realeza nos círculos financeiros da África e da Europa.

Ele e a sua família se refugiaram no emirado, conhecido por oferecer abrigo a bilionários com complicações legais, antes de lá se instalarem indefinidamente depois da explosão da pandemia em fevereiro. Apesar das contrariedades, Dokolo podia se dedicar em liberdade às suas três paixões: os filhos, o mergulho submarino e a coleção de obras de arte.

Dokolo não era só o marido de Isabel dos Santos, filha de José Eduardo dos Santos, presidente de Angola entre 1979 e 2017, e mulher mais rica da África, que dizia, para os aplausos dos cínicos e o sarcasmo dos realistas, ter começado a sua fortuna vendendo ovos nas ruas de Luanda. Ele também era o maior marchand de arte africana.

O empresário e colecionador Sindika Dokolo, morto em outubro de 2020 em Dubai, aos 48 anos - Patricia de Melo Moreira - 15.mai.2015/The New York Times

Nascido em 1972 em Kinshasa, de pai congolês —Augustin Dokolo Sanu foi um “self-made man” que enriqueceu no mercado financeiro— e mãe dinamarquesa —Hanne Taabbel Kruse conheceu o seu marido quando trabalhava na Cruz Vermelha—, Dokolo cresceu entre a Bélgica e a França, estudando em colégios e universidades parisienses. Seu pai se lançara no mercado da arte e introduziu o filho ainda na adolescência nos meandros da atividade.

Em 1999, quando Dokolo se aproximou de Isabel dos Santos, outra africana crescida nas capitais europeias, ele já era um dos mais respeitados colecionadores do continente. Apesar das rivalidades —a República Democrática do Congo e Angola se enfrentam em torno de campos de petróleo e território desde a descolonização—, alianças políticas e familiares são comuns, e a cerimônia de casamento com 10 mil convidados em 2002 gerou um frisson na alta sociedade dos dois países.

Para Sindika, de família sofisticada, mas em dificuldades desde a morte do pai, a aliança com Isabel garantia acesso às infinitas riquezas dos donos de Angola. Em troca, ele abria as portas do mundo da arte para a família Dos Santos. Uma entrada inesperada de capital cultural para um clã poderoso, mas intimamente associado às desgraças do país, designado pela Unicef como um dos piores lugares para ser criança no começo do século 21.

Rapidamente, o consórcio Dokolo-Dos Santos partiu à conquista do mundo. Recém-proprietários de uma joalheria de luxo, a De Grisogono, e de um imóvel interminável em uma das melhores avenidas do Mônaco, o casal alternava sua presença em festas de Cannes e inaugurações dos principais festivais de arte contemporânea.

Enquanto ele ampliava a sua atividade na arte, fundando a Trienal de Luanda e emprestando a sua coleção de 5.000 peças para o primeiro pavilhão africano da Bienal de Veneza, ela avançava sobre as ruínas do capitalismo empresarial português, devastado pela crise de 2008, adquirindo participações importantes nos setores de finanças, energia e telecomunicações.

Naquela época, poucos questionavam a origem das fortunas do casal, sempre impecavelmente elegante e escoltado por uma pletora de assessores.

Era preciso frequentar rodas de conversa de ativistas em salas sem janela, viajar até a fronteira do leste angolano ou, pior ainda, passar horas nas intrincadas bases de dados do Banco Mundial para comprovar que, entre muitos outros exemplos, Isabel dos Santos, antes de empreender no Mônaco, entrara no mercado de diamantes pela mão do seu pai-presidente, que facilitou os seus negócios com a Endiama, a estatal dos diamantes angolana.

Com o tempo, Dokolo e Dos Santos, cientes de que a lua-de-mel com a elite europeia poderia terminar a qualquer momento, passaram a conferir uma conotação política aos seus investimentos.

Em 2016, depois de consolidar o seu império em Portugal, Isabel dos Santos assumiu o comando da Sonangol, a toda-poderosa estatal petrolífera angolana, de modo a assegurar a perenidade do controle da sua família sobre os recursos públicos, em um momento delicado para o vetusto regime, em pleno processo de transição. Ela aproveitou para lançar uma série de transferências de dinheiro dos cofres públicos para entidades privadas que deram origem a alguns dos seus problemas na Justiça.

Nesse mesmo ano, Sindika Dokolo adquiriu a casa do cineasta Manoel de Oliveira na cidade do Porto, onde pretendia estabelecer a sua própria fundação e investir na defesa do patrimônio artístico africano, uma causa nobre, glamorosa e bastante polêmica na altura.

Pouco tempo antes, a falida Grécia entrara com uma ação contra o Reino Unido para a recuperação de peças do Parthenon, em um caso liderado por Amal Alamuddin. George Clooney, à época discreto companheiro da superadvogada, manifestou publicamente o seu apoio à causa. Um ambicioso político londrino chamado Boris Johnson ripostou com uma comparação absurda entre o ator hollywoodiano e Adolf Hitler.

O sonho de Dokolo por fim colidiu com a realidade de Angola, atormentada pelo colapso do preço do barril de petróleo. Em novembro de 2017, semanas depois de tomar posse, o novo presidente, João Lourenço, lançou as diferentes facções do regime contra a família Dos Santos.

Expulsa da Sonangol nesse mesmo mês, Isabel resistiu bravamente até o inesquecível dia 21 de janeiro de 2020, quando os documentos obtidos pelo hacker Rui Pinto e divulgados pelo Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos foram detalhados em uma grande reportagem de um canal de televisão português.

A partir desse momento, o império da família começou a ruir, mas Dokolo continuou levando a vida alegre de milionário apaixonado até o dia em que se afogou acidentalmente durante um dos seus habituais mergulhos nas águas quentes do golfo Pérsico. Ele tinha 48 anos.

O legado de Sindika Dokolo, que deixa quatro filhos, reflete a complexidade da sua trajetória e daqueles que o cercaram. Os arquivos do Luanda Leaks não deixam dúvidas sobre o seu envolvimento na teia de operações financeiras da família Dos Santos. Seu nome consta em empresas, ativos e transações que estão sendo investigados em Portugal e Angola.

Trabalhos seminais sobre a economia política angolana, como “Magnifica e Miserável: Angola desde a Guerra Civil”, de Ricardo Soares de Oliveira, dão conta dessa pilhagem organizada. Durante os primeiros 15 anos do século, a família Dos Santos exerceu total controle sobre o regime e o país cresceu a uma média espantosa de cerca de 12% ao ano, mas os petrodólares raramente chegaram às mãos da população. Hoje, a mortalidade infantil é de 61 a cada 1.000 nascidos, quase o dobro da taxa das regiões menos desenvolvidas do mundo.

Por mais chocantes que sejam, esses números não apagam o fato de que Dokolo teve um papel importante na disseminação do trabalho de artistas confirmados e emergentes, na criação de tendências e na inserção da arte africana nos círculos internacionais. Figuras de primeiro plano, como o sul-africano William Kentridge, e estrelas muito politizadas, como Otobong Nkanga, ou ascendentes, como o anglo-nigeriano Yinka Shonibare, prosperaram graças à sua curadoria.

Dokolo também era muito próximo do colecionador angolano Fernando Alvim, ator central no mundo da arte dos países africanos de língua portuguesa que atuou como curador convidado da 29º Bienal de São Paulo. O jornal The New York Times o descreveu como um “cruzado pelo regresso da arte africana” em obituário. Seria ele o rosto iluminista de uma cleptocracia?

Sindika Dokolo não é o primeiro membro de uma família política a dilapidar recursos do seu respectivo país em nome de um ideal estético. Porém, o brilhantismo torna o colecionador diferente de bufões que agiram na interface do revoltante e do grotesco em países como a República Centro-Africana e a Guiné Equatorial.

Estabelecida em 2013, a fundação que carrega o seu nome conta com uma esquadra de advogados, colecionadores e todo tipo de especialistas que se dedicam a mapear e identificar peças africanas para organizar o seu repatriamento. Entre outros feitos, a sua equipe conseguiu encontrar o paradeiro de máscaras femininas e masculinas de origem chócue, que haviam sido furtadas do Museu do Dundo nos piores anos da guerra civil de Angola.

É possível, no entanto, encontrar contradições até nas melhores páginas da biografia de Dokolo. Dundo é a capital histórica da província da Lunda Norte, que fica nas margens do rio Cuango, onde, no final dos anos 1990, garimpeiros se aglutinavam para extrair pedras sob a mira de soldados e milicianos às ordens de José Eduardo dos Santos, seu futuro sogro.

É impossível separar o legado artístico de Dokolo da herança maldita da família Dos Santos, mas é preciso evitar a armadilha de julgar o seu legado com lentes morais que habitualmente só são usadas na África. Afinal, o mercado da arte é parte integral de processos históricos de acumulação, como a colonização e o imperialismo. Do Louvre ao Metropolitan, museus inteiros são recheados de peças retiradas à força por agentes coloniais e neocoloniais.

Se os marchands deram lugar na era contemporânea a figuras mais policiadas como o “art advisor”, o universo em que eles atuam continua sendo conhecido por oferecer inúmeras oportunidades de engenharia fiscal e lavagem de reputação.

Todavia, raros são os casos que arranham a imagem de um museu ou de um colecionador. Aos olhos da opinião pública, as peripécias com a Justiça de Bernardo Paz, por exemplo, parecem minúsculas ao lado de Inhotim, em Minas Gerais.

Em uma prova de que os fins justificam os meios, a Câmara Municipal do Porto decidiu manter a medalha de ouro da cidade de Sindika Dokolo, atribuída pela realização de uma exposição de arte contemporânea, a despeito das revelações do Luanda Leaks.

Tratar Dokolo como apenas mais um corrupto de um país pobre é uma caricatura impossível. O seu patrimônio artístico jamais teria sido constituído sem a experiência do casal nas altas esferas de poder ocidentais. Sindika Dokolo e Isabel dos Santos devem ser entendidos como personagens emblemáticos de um período único da África pós-colonial, caracterizado pela apropriação de valores nacionalistas por oligarcas globalizados cheios de ilusão, fortuna e impunidade.

Esse ciclo, no entanto, está se encerrando, e Isabel dos Santos vai ter de passar o resto da sua vida se defendendo em investigações. Quanto a Sindika Dokolo, sua história será preservada, pela tragédia da sua morte prematura e pela magia da arte.

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