Derrota de Trump prenuncia ataque inédito e violento da direita radical, diz Benjamin Teitelbaum

Sai no Brasil livro sobre o Tradicionalismo, escola que influenciou Steve Bannon e Olavo de Carvalho

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Marcos Augusto Gonçalves
Marcos Augusto Gonçalves

Editor da Ilustríssima e autor de '1922 - A Semana que Não Terminou' (Companhia das Letras, 2012)

[RESUMO] A derrota de Donald Trump não deve arrefecer o radicalismo de direita nos EUA, onde grupos extremistas ganharam protagonismo político e dão sinais de que se preparam para confrontos mais violentos, avalia Benjamin Teitelbaum, autor de livro sobre o Tradicionalismo, escola filosófica que rejeita a concepção moderna de progresso e influenciou Steve Bannon e Olavo de Carvalho.

Benjamin Teitelbaum, etnógrafo e pesquisador norte-americano especializado em movimentos radicais de direita, diz estar muito preocupado com o futuro. “Temo que possamos ver algo que não vimos no Ocidente há muitos anos: uma direita radical ampla, que se sente encorajada, confiante na extensão de seu apelo e completamente descompromissada com o processo democrático e com a pacificação e a moderação que ele traz.”

Essa movimentação extremista, que se insufla nos EUA e em outros países, estaria dando sinais preocupantes —a invasão do Capitólio é só um deles— de que “prepara o terreno para confrontos mais violentos”.

Steve Bannon e Olavo de Carvalho antes da exibição de documentário sobre o governo de Jair Bolsonaro, em Washington - Joshua Roberts - 16.mar.19

Teitelbaum é autor de “Guerra pela Eternidade”, livro publicado em 2020 em seu país, que chega agora ao Brasil pela Editora da Unicamp. É uma incursão muito bem-documentada, ancorada em farta pesquisa e entrevistas com os personagens envolvidos, sobre o encontro do autoritarismo e do populismo de direita, no poder em diversos países, com ideólogos influenciados por teses extremistas oriundas de filosofias obscuras que pareciam condenadas ao limbo das seitas subterrâneas.

A principal delas, espécie de matriz para pregadores que se batem contra a democracia ocidental, o materialismo capitalista ou comunista e o mundo internacionalizado é o Tradicionalismo —que o autor prefere grafar assim, com T maiúsculo, para sublinhar a diferença em relação ao uso corrente do termo.

Essa escola espiritual e filosófica alternativa, que manteve um grupo eclético, ainda que minúsculo, de seguidores ao longo dos últimos cem anos, veio a se combinar com os nacionalismos autoritários emergentes, delineando “um radicalismo ideológico raro e profundo”, explica o autor.

Seus apóstolos contemporâneos, com reservas e divergências na interpretação e aceitação de alguns princípios, são nomes que passaram repentinamente a frequentar palácios e as páginas políticas, como Steve Bannon, Aleksandr Dugin e Olavo de Carvalho.

Bannon, o propagandista midiático da alt-right, comandou a campanha de Donald Trump à Presidência dos EUA e foi estrategista-mor da Casa Branca; Dugin, o profeta geopolítico da Eurásia e do mundo multipolar, é conselheiro de Putin; Olavo, guru da família Bolsonaro, responde por indicações estratégicas no governo brasileiro —como o chanceler Ernesto Araújo, seu pupilo e ex-aluno. Os três, como mostra o livro, com pormenores ricos e bizarros, se conhecem e já se dedicaram a longas conversas e debates entre si.

O patriarca do Tradicionalismo foi um francês convertido aos islamismo chamado René Guénon, que morreu em 1951, no Cairo. Aderiu ao Islã considerando que seria um entre outros caminhos válidos em busca de um objetivo maior.

Ele e seus seguidores acreditavam que existiu um dia uma religião —“a Tradição, o cerne, ou a Tradição perene”— que se perdeu, deixando fragmentos dispersos de seus valores em diferentes religiões. O pensamento de Guénon, explica Teitelbaum, é estruturado por um entendimento peculiar de tempo e sociedade. A ideia básica vem da crença do hinduísmo de que a história percorre um ciclo de quatro idades: a de ouro, a de prata, a de bronze e a sombria —que antecede o retorno ao primeiro e glorioso estágio.

A idade de ouro corresponde ao poder dos sacerdotes; a de prata, ao dos guerreiros; a de bronze, ao dos comerciantes; e a das trevas, à desordem e à eliminação da espiritualidade. As duas primeiras têm protagonistas guiados por ideais. As seguintes representam a degeneração materialista.

“Conforme o tempo passa, a condição humana e o universo como um todo pioram até um momento cataclísmico, no qual a escuridão absoluta explode em ouro absoluto, e a decadência recomeça.”

Essa concepção circular separa o Tradicionalismo do conservadorismo comum. Ela traz em si a rejeição à ideia moderna de progresso, uma vez que o caminho para superar a era das trevas é aprofundar a decadência, num processo de destruição que levará à renovação do ciclo. “O passado não deve ser superado, nem se deve escapar dele; ele é também o nosso futuro”, resume Teitelbaum no livro.

Depois de Guénon, o barão italiano Julius Evola acrescentou elementos ao pensamento Tradicionalista, acentuando sua inclinação para as políticas de extrema direita: “Além de uma hierarquia com a espiritualidade no topo e o materialismo na base, Evola propôs que a raça também ordenava os seres humanos, com os mais brancos e arianos constituindo o ideal histórico acima daqueles com a pele mais escura – semitas, africanos e outros não arianos. Entre as hierarquias que ele prestigiava estavam, ainda, as que colocavam a masculinidade acima da feminilidade, o Norte geográfico acima do Sul e até uma que prescrevia posturas corporais e olhares, segundo a qual os que olham para cima e adoram o Sol seriam mais virtuosos do que quem olha para o chão.”

Embora os governos autoritários e populistas de direita em cena não possam ser resumidos aos contornos do Tradicionalismo tal como aqui sucintamente descrito, não é difícil perceber no amálgama ideológico que compartilham alguns de seus ingredientes centrais.

As ideias de decadência espiritual do Ocidente, de dissolução das hierarquias nas sociedades de massas, de perda das características comunitárias na globalização, da reusa ao progresso e da busca de um passado mítico, que restaure o primado dos sacerdotes e dos guerreiros, podem ser discernidas no substrato doutrinário de movimentos extremistas contemporâneos —tenham alcançado o poder formal ou atuem como milícias sob peles e chifres, fantasias verde-amarelas, bandeiras separatistas ou paramentos do fundamentalismo religioso. A configuração é complexa e desafia esquemas político-ideológicos consagrados.

Não há dúvida de que a derrota de Trump nas eleições americanas pode ser vista como um triunfo da democracia, e que o governo de Joe Biden poderá ter algum efeito auspicioso no plano internacional, embora provavelmente reduzido. Na avaliação de Teitelbaum, nada mudará, por exemplo, nas relações com a Rússia e outros governantes autocráticos.

Mas o Brasil de Bolsonaro pode ser uma exceção.

“Acho que a questão está mais aberta no caso do Brasil. Os esforços para realinhar a política externa brasileira os EUA e distanciá-la da China foram baseados, em parte, na afinidade pessoal com Trump. Trump, por outro lado, nunca pareceu especialmente interessado no Brasil. Muito do entusiasmo por Bolsonaro parecia vir de Bannon —e isso depois que ele deixou a Casa Branca”, diz. A queda do amigo americano poderia acentuar, de alguma forma, o isolamento do Brasil, que já se desenha no mundo democrático esclarecido.

“Outras nações nas quais Bolsonaro poderia encontrar afinidades pessoais e ideológicas como as que ele esperava construir com Trump —países com administrações populistas de direita como a Polônia, Hungria ou Israel— não constituem de forma alguma um bloco geopolítico. Portanto, prevê-se uma situação de crescente isolamento internacional aproximando-se de Bolsonaro” —talvez com uma retenção subterrânea das relações com a China, conduzida, se não propriamente pelo governo, pelo aparato de Estado.

Na hipótese de desentendimentos mais agudos com a administração democrata que assume na quarta (20), especialmente na agenda ambiental, as coisas, na visão de Teitelbaum, podem se agravar. “Imagine os EUA impondo sanções pela exploração da Amazônia e o que uma economia enfraquecida no Brasil significaria para as chances eleitorais de Bolsonaro”, especula.

O fim da era Trump no poder, contudo, não deverá baixar a fervura do radicalismo de direita que, resignado em décadas passadas a seu confinamento histórico, vê-se agora empoderado, como parte relevante do jogo político “mainstream”.

“A política eleitoral e o processo democrático sempre foram prêmios de consolação para genuínos radicais de direita: como outros fanáticos ideológicos, eles entraram na política sabendo que isso implicaria em concessões e ajustes para permanecerem populares. Eles foram forçados a isso pelo fato de não existirem outras opções, pois na maioria das nações democráticas eram pequenos e marginalizados para encenar qualquer tomada revolucionária ou ganhar apelo de massa ao se apresentarem aos eleitores como realmente são.”

Agora, contudo, a situação mudou. Movimentos como a alt-right participaram da grande coalizão de apoio ao candidato que chegou ao poder na maior potência global em 2016. Ganharam “mais recepção na política e na mídia dominante do que jamais poderiam ter imaginado”.

Das dobras obscuras do sistema, ascenderam ao grande palco iluminado da política. E é desse platô que passam a se expressar. Como reagirão agora, indaga Teitelbaum, “quando acreditam que nosso sistema democrático foi manipulado contra eles e a vitória de seu candidato foi roubada?”.

Certamente não voltarão para casa, esquecer tudo e comer pipoca.

Sim, faz todo o sentido estar preocupado com o futuro.

Guerra pela Eternidade: o Retorno do Tradicionalismo e a Ascensão da Direita Populista

  • Preço R$ 66 (248 págs.)
  • Autoria Benjamin Teitelbaum
  • Editora Unicamp
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