Minha luta é oposta da de Hitler, diz Karl Ove Knausgard

Escritor explica como sua relação com a literatura mudou após publicar série homônima a livro de ditador nazista

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Fernanda Reis

Jornalista e ex-repórter da Folha

[RESUMO]Karl Ove Knausgard fala sobre último livro da série autobiográfica “Minha Luta”, que o projetou como um dos principais autores noruegueses. Em mais de mil páginas, o sexto volume, que acaba de ser publicado no Brasil, reflete sobre escrita, fama, a obra homônima de Adolf Hitler e abre caminho para novas narrativas mais ficcionais.

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À primeira vista, “Minha Luta”, série de seis livros do norueguês Karl Ove Knausgard, tem o mais básico dos enredos: a vida de seu autor. E não se trata de uma vida extraordinária, daquelas que costumam ganhar autobiografias. Knausgard não teve nenhuma grande conquista, não se envolveu em nenhuma história mirabolante, e o único escândalo do qual participou foi justamente a publicação de seus livros.

Na frase que abre o primeiro volume, “A Morte do Pai”, publicado no Brasil em 2013, Knausgard afirma que, para o coração, a vida é simples: ele bate enquanto puder e depois para. O que “Minha Luta” mostra, porém, é que, para a literatura, vale o contrário. Mesmo a mais comum das vidas é cheia de complexidades.

Em quase 4.000 páginas, “Minha Luta” esmiúça dos acontecimentos mais banais e cotidianos —buscar os filhos na escola, ir à uma festa na adolescência ou mesmo defecar no mato— àqueles que normalmente as pessoas só dividem com o terapeuta —as traições, as inseguranças, os arrependimentos.

Como explicar, então, que um relato tão pessoal tenha se tornado um fenômeno internacional? Só na Noruega, 1 em cada 10 pessoas comprou pelo menos um dos volumes. Mundo afora, Knausgard estampou capas de revistas, participou de festivais como a Flip, no Brasil, em 2016, e foi chamado de sensação por veículos como o jornal inglês The Guardian e a revista americana The New Yorker.

Em “O Fim”, volume que encerra a série, publicado em novembro passado pela Companhia das Letras, Knausgard dá algumas explicações possíveis. Enquanto os cinco primeiros livros se debruçam sobre diferentes épocas do seu passado, o sexto figura como um epílogo, uma espécie de making of da empreitada.

Ao longo de 1.056 páginas, Knausgard processa praticamente em tempo real tudo o que aconteceu desde que começou o projeto. Conta ali o que o levou a escrever, como as coisas mudaram de forma ao longo do caminho e de que modo ter virado personagem em um livro afetou as pessoas à sua volta —principalmente a mulher, Linda, protagonista do segundo volume.

Quando o sexto livro começa, Knausgard está próximo de lançar “A Morte do Pai” e envia uma cópia do manuscrito àqueles que aparecem na história. As reações são mistas: há quem fique feliz com a lembrança e quem fique nervoso com o relato, quem lhe peça para omitir algum detalhe e quem lhe dê carta branca.

A única oposição veemente vem do irmão de seu pai. Ele não só acusa o escritor de ter inventado histórias para manchar a reputação da família como ameaça ir à imprensa e à Justiça para tentar impedir a publicação do projeto. Knausgard chega a duvidar de suas lembranças, mas não cogita deixar de lançar o livro. Se a história é sua, por que não teria direito de contá-la?

No entanto, faz uma concessão: eliminar o nome do pai do livro. É nesse ponto que “O Fim” dá uma guinada inesperada. O segundo terço do livro deixa a vida do autor de lado e dá lugar a um ensaio que fala sobre a importância dos nomes, da linguagem e da vida, culminando na análise de outra “Minha Luta”, a de Adolf Hitler. Parece aleatório, mas faz sentido.

Falar sobre Hitler não era o objetivo quando nomeou sua saga “Minha Luta”, diz Knausgard à Folha. “Foi uma provocação. Eu estava muito raivoso quando comecei a escrever e foi um jeito de dizer ‘eu não ligo se vocês gostam ou não’”, conta. “O livro é sobre isso, uma luta. A luta da vida, as pequenas lutas. O título se encaixava, mas de uma maneira irônica, porque minha luta é a oposta da de Hitler. É uma vida pequena, insignificante.”

Quando intitulou o projeto, porém, sentiu que não poderia usar o nome em vão e que era necessário, de alguma forma, falar de Hitler. “Hitler escreveu sobre si, eu estava escrevendo sobre mim. Era interessante nesse sentido”, diz.

Assim, Knausgard começou a ler o texto de Hitler e a escrever sobre ele da mesma forma como escrevia sobre sua própria vida: sem saber aonde chegar, em uma espécie de fluxo de consciência, dedicando a mesma atenção aos acontecimentos grandes e pequenos. “Nunca planejo nada: tento escrever o mais rápido possível, sem olhar para trás.”

“Eu não sabia aonde ir, não sabia o que estava fazendo, uma coisa levou à outra. Para mim, era uma investigação. Não é como se eu tivesse uma teoria sobre nada, estava apenas muito curioso.”

Como análise histórica da vida de Hitler ou do nazismo, o resultado é controverso —o site americano Slate chamou o ensaio de “ruim a ponto de cair o queixo”, criticando a falta de rigor na abordagem de um tema como o Holocausto.

Knausgard diz que o objetivo era olhar para Hitler como um ser humano. Na época em que o alemão escreveu o livro, ele não tinha feito nada e ainda era, de certa forma, inocente. Ao analisar seu texto sob essa lente, afirma, podemos descobrir o que é o mal e como ele aparece no mundo.

Conclusões sociológicas à parte, ao escrever sobre uma história fora da sua, Knausgard explora o papel da linguagem, as histórias que contamos sobre nós mesmos e a necessidade de conexão —temas que se relacionam com a sua luta pessoal.

Hitler, escreve Knausgard no meio de seu ensaio, “percebeu que os sentimentos são mais fortes do que os argumentos, e que a força que reside no ‘nós’, o anseio, o sonho e o desejo de companhia, é infinitamente maior do que a força que reside na consideração por um ‘eles’”.

A linguagem, continua, é uma atividade social que exige um “eu” e um “tu”, que, juntos, formam esse “nós”. Na escrita, é difícil encontrar o limite entre o que está de fato no texto, o que está na voz do autor e o que está nos olhos do leitor. Por meio da literatura, formamos essas pontes com o outro, das quais precisamos.

A certa altura do livro, Knausgard se questiona sobre sua necessidade de escrever. Por que lançar um livro sobre a realidade em vez de simplesmente vivê-la? Quando questionado se hoje, já distante do projeto, ele tem uma resposta, o escritor faz uma longa pausa. “É uma pergunta difícil, porque tem muitas respostas diferentes e todas estão certas”, diz.

Quando escreveu seu primeiro romance, conta, algo aconteceu: o processo de escrita, que antes era sofrido, passou a se assemelhar ao de leitura —ele simplesmente desapareceu dentro do texto. “Estar fora de si, em um fluxo em que você se perde, é incrível, pelo menos para mim. Foi por isso que eu sempre quis ler, era uma forma de escape”, afirma.

Escrever é ainda, segundo ele, uma forma de compreender o mundo e de tentar entender a si mesmo. “É a única forma pela qual consigo fazer isso. Porque você pode sair de seu estado atual, da sociedade em que vive, e, de fora, consegue olhar internamente. A literatura é um lugar de fora onde você pode olhar para dentro. Isso é incrivelmente importante, porque você precisa de distância para se ver, para ver a sociedade, a cultura. É por isso que leio e por isso que escrevo. Para me perder e, assim, me ver e entender as coisas.”

Retrato do escritor norueguês Karl Ove Knausgard - Chester Higgins Jr - 30.abr.2012/The New York Times

De todos os gêneros literários, o romance é aquele que mais permite esse mergulho em si, diz. Por isso “Minha Luta” não virou uma autobiografia ou um ensaio, e sim uma série de autoficção. “Um romance tem emoções, sentimentos, pensamentos, observação, descrição. É sobre teoria, sobre a vida —todos esses elementos trabalham juntos, ao mesmo tempo. Em um ensaio só opera o cérebro, a razão.”

Enquanto um ensaio restringe a experiência da escrita, o romance não tem normas. Nem tudo o que está em “Minha Luta” aconteceu de fato, porque isso seria impossível —mesmo se duas pessoas narrarem uma experiência que aconteceu no dia anterior, os relatos serão inevitavelmente diferentes.

No livro, está a perspectiva de Knausgard, como ele se lembra de ter vivenciado as coisas. É nessa liberdade propiciada pelo romance que se encontra a verdade, diz.

Além disso, por meio da literatura, o “eu” e o “tu” se aproximam. “Você se funde com outra pessoa, com os pensamentos, as palavras e a vida do outro. Ele quase vira você. Aquilo que você lê, de qualquer século que seja, se torna presente. E isso é uma coisa incrível para cacete.”

Embora “Minha Luta” fale de sua vida, não é apenas a história de Karl Ove Knausgard. “Eu achava que todos tinham uma história única e que, quanto mais fundo fosse na minha, menos e menos interessante seria”, diz.

“Foi chocante para mim ver que as pessoas não só leram, mas viram relação com suas próprias vidas. É esse o negócio com esse livro: hoje as pessoas me falam de suas próprias histórias. O livro não é sobre mim. Eu achava que era completamente sobre mim, mas não é.”

Knausgard disse em entrevistas, no passado, que quando um autor escreve sobre alguém, é como se estivesse roubando algo da pessoa. No entanto, ao transformar uma experiência pessoal em literatura, também há um ganho.

Para o autor, é a descoberta de algo dentro de si que desconhecia. Ele diz não ter teorias sobre nada (“Quando algo como a pandemia acontece, jornalistas me ligam para saber o que eu acho. Bem, eu acho o que todo o mundo acha”), mas que algo acontece quando coloca palavras no papel. Na página, aparecem pensamentos que desconhecia e que parecem tão externos a ele que, às vezes, nem se lembra de tê-los escrito.

Para o leitor, é a possibilidade de se reconhecer na experiência do outro, de se sentir compreendido, de ver que, em algum lugar, há alguém que passou por algo parecido.

Sim, “Minha Luta” narra em detalhes refeições feitas por Knausgard, idas ao supermercado e revela até a senha de seu cartão de crédito. Porém, fala também sobre a divisão do trabalho doméstico, a frustração com o trabalho, as dificuldades de comunicação com a família —sobre as pequenas batalhas de todos nós no dia a dia.

Justamente por ser uma vida comum, a empatia é maior.

Ao término da saga, Knausgard diz ter sentido um misto de exaustão e alívio. “Pensei que era o fim, que não deveria mais fazer romances”, conta. “Mas não consegui, preciso escrever.”

Hoje, porém, trabalha no que chama de “romances bem ficcionais”. No ano passado, publicou na Noruega um livro narrado sob o ponto de vista de nove personagens diferentes, no qual um objeto não identificado aparece no céu e coisas assustadoras começam a acontecer.

“É bem mais próximo de Stephen King que de Marcel Proust”, diz ele, referindo-se às comparações que “Minha Luta” recebeu com “Em Busca do Tempo Perdido”.

Durante a pandemia, como muita gente, Knausgard desenvolveu novas obsessões, mas não começou a assar pães ou coisa do tipo, como boa parte das pessoas entediadas em casa. Está lendo bastante sobre a Rússia, cientistas do século 20 e semiótica. “Tenho muitos interesses novos, mas todos relacionados à escrita.”

Em vez de sofrer, como quando escreveu sua série de autoficção, está se divertindo. “Estou trabalhando em outro livro no mesmo universo [do último romance] e depois farei pelo menos mais um, acho. Tem uma mulher de 20 anos, um padre, muitos personagens diferentes. É o oposto de ‘Minha Luta’, de verdade.”

MINHA LUTA: O FIM

  • Preço R$ 164,90 (1.056 págs); R$ 44,90 (ebook)
  • Autoria Karl Ove Knausgard
  • Editora Companhia das Letras
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