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Rosane Borges

BBB não é lugar para redefinir padrões de representação racial

Acreditamos que Lumena destrói imagem de mulheres negras porque o programa é um simulacro ilusório

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Rosane Borges

Jornalista e pesquisadora da ECA-USP

[RESUMO] Autora reflete sobre as novas ordens de representação de grupos marginalizados a partir das polêmicas do BBB 21. Em sua opinião, o programa é uma tentativa fracassada de reverter situações de racismo que têm como característica a ausência de pessoas negras.

Olhe-se para onde se olhe, o debate em torno das novas ordens de representação ganha centralidade inaudita, alcançando todos os perímetros da vida social. Da política institucional, passando por diversas esferas do público e do privado, até alcançar os sistemas midiáticos, presencia-se o esgotamento dos regimes de visibilidade de outrora.

Da forma que o conhecemos, o termo representação deita raízes nas vertentes teatral (o ator/atriz que se apresenta no lugar da personagem, fala por ela e como ela) e jurídica (o advogado que se apresenta em nome de um acusado e fala em seu nome).

São dessas duas raízes que o conceito moderno, eminentemente político, extrai sua seiva: concerne àquele que é escolhido para representar publicamente a vontade, os interesses e os direitos de um outro do qual recebeu o mandato para falar no seu nome.

Os debates inflamados, quase sempre movidos por nitroglicerina pura, ancoram-se diretamente nesse postulado, convertendo as tensões em torno da legitimidade de quem-representa-quem em um desafio de dupla face: ao mesmo tempo que se reivindica a assunção de representantes que sejam legítimos para representar corporeidades excluídas dos regimes de visibilidade (negros, mulheres, indígenas, pessoas trans, lésbicas, gays), defende-se também a inclusão dessas corporeidades no que é designado como comum, no acesso à fala pública, como insistia a feminista e pensadora Lélia Gonzalez. Pela representação, tomamos ciência do que é hegemônico.

Por motivos óbvios, a televisão (minha noção de TV é estendida) está no epicentro deste debate, o que a torna alvo constante de análises cujo diagnóstico flagra a persistência de um racismo de dominação em virtude da presença mitigada ou da total ausência de pessoas negras e de outros grupos raciais não hegemônicos.

O BBB 21 é uma tentativa fracassada (explico por que linhas abaixo) de reverter essa situação: a casa contou inicialmente com sete pessoas negras (até o momento em que escrevo este artigo são seis, depois da saída de Lucas Penteado), ineditismo que atribuiu à esta edição o qualificativo de histórica, uma espécie de linha divisória que abriu caminho para um novo tempo no programa.

O fio condutor deste artigo nos leva a pontilhar um percurso tracejado por algumas questões que apontam para a impossibilidade de o BBB promover representacao e visibilidade (visualidade não é visibilidade), uma vez que se insere em uma moldura em que a tirania, o individualismo e a lacração egoica dá suporte à cena que se pinta à nossa frente.

Um Himalaia de dificuldades

1. Mapa e território, simulacro e simulação

O Twitter não nos deixa mentir: as queixas contra Lumena, a ativista que estaria arruinando a imagem de todas as mulheres negras dentro e fora da casa, é a cantilena que nos persegue do nascer ao pôr do sol. Compramos essa ideia porque acreditamos que a microrrede de intrigas seja um exemplar do que acontece na vida como ela é, a casa seria uma representação do que (sobre)vive fora dela, a cópia fac-similar da realidade.

Recorramos a quem entende do riscado. A palavra simulacro foi minuciosamente examinada pelo pensador francês Jean Baudrillard que, na esteira do mapa do Império, de Jorge Luis Borges (sim, eu sei, um racista), definiu o termo como uma operação que finge uma presença ausente ou uma realidade sem correspondência com a realidade.

O simulacro, para Baudrillard, tem o papel de iludir, pois atribui às imagens que produz um referente real. Lembremos: referir é um ato de remetimento ao mundo. A virtualização da vida cotidiana pelo Big Brother é um autêntico simulacro que impede qualquer possibilidade de representação nos moldes em que descrevemos acima.

Do mapa do Império, aprendemos que mapa não é território, pois não representa tudo de um território, o mapa deve ser autorreflexivo. O que nos leva, então, a fazer coincidir mapa com território, mesmo quando o mapa é uma projeção maldecalcada que finge (simula) se ancorar no real?

2. O império do eu

Um possível endereço de resposta a essas perguntas parece estar no imperativo da fama, da celebridade, que faz de todos nós um potencial brother. Sob esse ponto de vista, poderíamos cogitar que o ideal da representação se equilibra nesse fiapo, em um jogo de projeções individuais.

No entanto, esse fio, que é quase nada, logo se esfarela face à constatação de que representação supõe a interação entre sujeitos. O eu neoliberal que cede ao jogo, que permite e aceita a humilhação, é alguém que está em nome dele próprio, pois não recebeu nenhum mandato para falar em nome de ninguém e, mesmo se tivesse, seria impossível fazê-lo.

Fala, reage e interage com outros eus, todos precificados, confinados em si mesmos, segregados de si mesmos. Estabelecer novas ordens de representação é falar de si onde não há mais si mesmo.

3. Peças de um jogo e não jogadores

Esse eu é tão mais precário e insuficiente para representar uma coletividade porque nem sequer é o jogador da brincadeira, ele é a peça do jogo. O jogador ou jogadores encontram-se nos bastidores ou fora da casa, tramando cada jogada: exposição desumanizante, exaustão, ridicularização, violação, destituição. Quase sempre as peças da engrenagem saem moídas ou avariadas.

Alguns desafios chegam a ter conotação mórbida, assemelham-se a rituais de flagelação. Como então requerer que tal engrenagem ponha em funcionamento um novo contrato social onde a gestão do comum não escorregue para o interesse pessoal? Como avistar representatividade na atmosfera do “salve-se quem puder”?

Acesso e transformação

Provavelmente escaparemos dessa aporia se tivermos energia estratégica para incidirmos nos sistemas de representação por meio do acesso e da transformação, ou seja, por meio da inserção de grupos historicamente excluídos na distribuição do comum tal como o mundo é ao mesmo tempo que se reivindica por mudanças estruturais nas dinâmicas desses sistemas.

A princípio, essa visada bifronte parece subscrever a presença de pessoas negras ativistas em programas como o Big Brother. No entanto, quando o que está em tela é um programa que bloqueia, pela sua própria essência, qualquer possibilidade de sermos sujeitos, de sairmos do eu em direção ao outro, a reivindicação ao acesso torna-se, ao mesmo tempo, inócua e perigosa. bell hooks, uma das principais críticas culturais do nosso tempo, ensina que é preciso criar condições para contextos de transformação:

“A partir de qual perspectiva política nós sonhamos, olhamos, criamos e agimos? Para aqueles que ousam desejar de modo diferente, quem procura desviar o olhar das formas convencionais de ver a negritude e nossas identidades, a questão da raça e representação não se restringe apenas a criticar o status quo. É também uma questão de transformar as imagens, criar alternativas, nos perguntarmos sobre que tipos de imagens subverter, apresentar alternativas críticas, e transformar nossas visões de mundo e nos afastarmos de pensamentos dualistas acerca do bom e do ruim. Abrir espaço para imagens transgressoras, a visão rebelde fora da lei, é essencial em qualquer esforço para criar um contexto para a transformação. E se houve pouco progresso, é porque nós transformarmos as imagens sem alterarmos os paradigmas e os modos de ver.” ("Olhares Negros: Raça e Representação", 2019).

Se é verdade que novas ordens de representação dependem das imagens que circulam e fazem o laço social, as provocações de bell hooks soam como uma convocatória para a deserção. Decididamente Big Brother Brasil não é território nem mapa para a gente projetar mudanças, tampouco alterar os paradigmas.

Ou, mais radicalmente, na trilha da cineasta Nuna Nunes, da qual conheci a referência por meio de outra cineasta, Day Rodrigues: “Não temos que ocupar todos os lugares, porque alguns lugares nem deveriam existir”.

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