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Robert Muggah e Pedro Augusto Pereira Francisco

Conspirações digitais dificultam controle da pandemia no Brasil

Teorias da conspiração exploram medo e raiva e destróem laços afetivos

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Robert Muggah

Diretor de Pesquisa do Instituto Igarapé e especialista em segurança e desenvolvimento

Pedro Augusto Pereira Francisco

Pesquisador sênior no Instituto Igarapé

[RESUMO] Teorias da conspiração se multiplicaram com a popularização de redes sociais, cuja lógica de engajamento privilegia a controvérsia e a polêmica, tornando as plataformas incubadoras perfeitas da desinformação. Para ajudar pessoas envolvidas nessas narrativas, é preciso evitar o confronto e tratá-las com empatia e paciência, afirmam autores.

Quando o presidente Jair Bolsonaro minimizou a Covid-19, os brasileiros ficaram compreensivelmente confusos em relação à gravidade da ameaça. Isso ajuda a explicar, em parte, porque o Brasil está entre os países com as maiores taxas diárias de mortes pelo vírus.

Porém, outro fator relacionado desempenhou papel crucial na disseminação da doença e na crescente resistência às medidas de saúde, como o uso de máscaras e o distanciamento social: conspirações digitais.

Os brasileiros estão entre os mais ávidos produtores e consumidores de mídias sociais e estão sendo alimentados com uma dieta constante de desinformação.

É difícil medir com precisão o elevado volume de conspirações digitais circulando no Brasil. Às vezes, elas transbordam para o mundo "real".

Um exemplo aconteceu durante os protestos pró-Bolsonaro em Brasília, em maio de 2020. Em meio a bandeiras e carreatas, estava a letra Q exibida na janela de um veículo. Até aquele momento, a maioria dos brasileiros não tinha ideia ao que a letra se referia. Os tempos mudaram. Referências ao QAnon agora estão espalhadas por redes sociais.

A versão brasileira do QAnon é assumidamente pró-Bolsonaro. Seus seguidores têm como alvo personalidades populares como Felipe Neto e Xuxa, que são falsamente acusados de promover pedofilia. Partidos políticos de esquerda, ex-líderes do Legislativo e ministros da Suprema Corte também são caluniados.

Em resumo, os oponentes de Bolsonaro são inimigos do QAnon. Em contraste, o presidente é visto como um cruzado travando uma guerra santa contra os crimes sexuais infantis, a corrupção da elite e a disseminação do “globalismo”. A admiração de Bolsonaro por Donald Trump —a figura messiânica do QAnon— dá credibilidade às causas do líder brasileiro.

Uma vez incubada, a versão brasileira do QAnon metastatizou rapidamente, inclusive influenciando as eleições municipais de novembro.

Apoiadores vestem camisetas com o logo da teoria da conspiração QAnon durante comício de Donald Trump em Wilkes-Barre, Pensilvânia - Leah Millis - 2.ago.18/Reuters

Ao menos quatro candidatos que concorriam a câmaras municipais declararam apoio ao Q. Candidatos como Alan Lopes (Rio de Janeiro), Dom Lancellotti (Fortaleza), Daniel Augusto Rocha Carneiro (Belo Horizonte) e Luis Alexandre Mandú (Pindamonhangaba) colocaram citações do QAnon e hashtags em suas redes sociais durante a campanha. Embora nenhum deles tenha sido eleito, eles representam a ponta do iceberg infodêmico.

Embora o Brasil tenha serviços de saúde pública e programas de vacinação exemplares, também é lar de um crescente movimento "antivax". Uma minoria significativa de brasileiros afirma que recusará se vacinar contra a Covid-19, embora o país tenha uma das taxas de infecção mais altas do mundo.

Uma pesquisa do Datafolha revelou que 73% da população está disposta a ser vacinada. Ainda que isso possa parecer bom à primeira vista, é um decréscimo em relação aos 89% de meses antes. Especialistas em saúde pública e imunização estão impressionados com o aumento da desinformação online e a ofensiva do presidente para desacreditar a qualidade das vacinas.

Teorias da conspiração não são novidade no Brasil —elas estiveram profundamente enraizadas na política durante o século 20. No entanto, com a internet, elas passaram a circular na velocidade da luz em plataformas populares de mídia social e aplicativos de mensagens.

Os algoritmos do Facebook, Twitter e YouTube priorizam o engajamento acima de tudo. Quanto mais sensacionalista e polarizadora é a história, maior a probabilidade de ser compartilhada. Até mesmo os esforços para desacreditar notícias falsas podem aumentar sua circulação. Para complicar ainda mais, o chefe dos conspiradores e seu séquito estão inundando ecossistemas digitais com fake news.

Em um mundo conectado digitalmente, praticamente todos estão em risco. O bombardeio implacável de desinformação, especialmente durante a pandemia, significa que ninguém está seguro.

As vulnerabilidades são intensificadas pelos ataques contra a mídia independente. Muitos dos apoiadores de Bolsonaro acreditam que as grandes empresas de notícias e de tecnologia são administradas por uma elite liberal corrupta com a intenção de destruir sua “cultura”. Fóruns digitais como 4Chan, 1500Chan e FavelaChan estão repletos de discussões sobre como a mídia tradicional supostamente trava uma guerra cultural contra os brasileiros conservadores.

Os esforços para desacreditar esses rumores frequentemente desencadeiam um efeito bumerangue, que fortalece a fé entre os que acreditam na tese da guerra cultural.

Uma das razões pelas quais as conspirações online são tão eficazes é porque elas ressoam vieses e preconceitos enrustidos ou explícitos. Os seres humanos são essencialmente programados para negar fatos que não se encaixam em sua visão de mundo.

Considere o caso do enviesamento de âncora, a tendência de as pessoas confiarem fortemente no primeiro conjunto de “fatos” que absorverem sobre um determinado tópico. Esse processo de ancoragem é o motivo pelo qual as pessoas tendem a ter dificuldade em aceitar novas informações sobre tópicos aos quais já têm opiniões formadas. Ao contrário, novas evidências podem na verdade intensificar o viés de confirmação, que é a tendência de abraçar ideias que apoiam a própria crença e rejeitar as que as contradizem.

Outro fator aprazível para as conspirações é a raiva. Emoções relacionadas à raiva, ao medo e à indignação podem interferir na busca de informações e no processamento de ideias complexas. Com efeito, ela causa um curto-circuito no pensamento cuidadoso, deliberativo e racional. Isso explica por que as pessoas costumam tirar conclusões precipitadas quando estão com raiva, mesmo que depois se arrependam de suas decisões.

Estudos mostram que, quando as pessoas estão com raiva, diminuem significativamente a sua predisposição para informações completas e elaboradas. As redes sociais são, em muitas formas, as incubadoras perfeitas da desinformação, exatamente porque prosperam através de controvérsias e polêmicas.

Hoje em dia, a maioria dos brasileiros conhece algum parente ou amigo que caiu na estufa das teorias da conspiração. Histórias de parentes absorvidos pelo QAnon ou por movimentos similares se tornaram comuns.

Na maioria dos casos, há espanto e descrença sobre a rapidez com que a conversão ocorreu. A surpresa costuma ser acompanhada por uma profunda preocupação com os riscos potenciais que os convertidos representam para si próprios e para os outros. Existem maneiras de ajudar as pessoas a escapar da ratoeira da desinformação, mas elas exigem empatia, paciência e resistência.

Qualquer tentativa de ajudar alguém a se afastar da conspiração deve ser guiada pela gentileza. Embora seja muito mais simples tratar os crentes nas teorias como fanáticos, o confronto apenas fortalece a ancoragem e seleção por viéses.

Uma abordagem baseada na empatia e desprovida de condescendência é essencial para construir confiança. Também é útil manter conversas em particular e longe das redes sociais. Isso evita possíveis constrangimentos ou humilhações.

Outra lição para ajudar a afastar as pessoas das conspirações é convergir para áreas de consenso e explorar com tato os pontos de desacordo. Trabalhar com áreas de concordância diminui a temperatura da discussão.

Quando ocorre uma conversa entre pessoas que compartilham um relacionamento mais profundo, refletir sobre memórias e experiências comuns pode restaurar a confiança e evitar um recuo para uma conversa de soma zero. É improvável que uma troca única resolva o problema. Na verdade, pode piorar.

Extrair pessoas do pensamento conspiracionista é normalmente um processo lento. Parte do dano colateral das conspirações é a maneira como elas destroem os laços afetivos. Reconstruí-los pode exigir o mesmo nível de esforço e tolerância que existe em nossos relacionamentos mais próximos.

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