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Dirce Waltrick do Amarante

Discussão sobre racismo em obra de Lobato deveria levar em conta opinião de crianças negras

É necessário avaliar o impacto que determinadas passagens racistas do escritor podem ter sobre os alunos

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Dirce Waltrick do Amarante

Tradutora e professora da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina). Autora, entre outros livros, de "Para Ler Finnegans Wake de James Joyce" e "James Joyce e Seus Tradutores". Organizou e cotraduziu "Finnegans Rivolta", de Joyce

[RESUMO] Em comentário a texto sobre Monteiro Lobato publicado na Ilustríssima, pesquisadora diz que cartas deixam evidente a motivação eugênica e racista que guiou a escrita do romance “O Presidente Negro” e associa a trajetória do escritor como neto de proprietário de terras à caracterização estereotipada do personagem Jeca Tatu. Em vista disso, avalia que os alunos também deveriam ser ouvidos no debate sobre como lidar nas escolas com passagens racistas do “Sítio do Picapau Amarelo”.

Não é nada fácil falar da vida e da obra de Monteiro Lobato, repletas de paradoxos, como bem apontou Cilza Bignotto em seu texto publicado na Ilustríssima. Em razão disso, a pesquisadora adverte para a necessidade de se discutir Lobato além da “epiderme”; é preciso, conclui, entender as “terminações nervosas” e “aumentar e aprofundar o escopo, se desejamos avançar”.

Partido dessa premissa, acredito que a autora poderia ter desenvolvido a sua análise do romance “O Presidente Negro” (1926), escrito, segundo a historiadora Pietra Diwan, “com a esperança de sucesso no ‘estrangeiro’” de se tornar um best-seller, mais especificamente, nos Estados Unidos da América. Um ano após concluir o romance, originalmente intitulado "O Choque das Raças”, Lobato seguiu para Nova York como adido comercial no consulado brasileiro. Mas nem o corpo a corpo ajudou o escritor a lançar seu livro em língua inglesa.

Na terra de Ford, o livro malogrou, o que parece não ter acontecido por aqui. De acordo com Bignotto, o romance foi enaltecido no Brasil, inclusive por um jornal “negro”, “Alvorada” [sic], que destacava “o fato de o ilustre intelectual [...] ter também se ocupado dos negros” e ter doado seu livro à biblioteca da Associação dos Negros Brasileiros.

Obviamente, pode-se pensar em “O Presidente Negro” como uma distopia, alertando para os perigos dos discursos racistas, como destaca Bignotto, que complementa a análise com a tese de que talvez Lobato e a Associação dos Negros Brasileiros o entendessem assim. É possível (por que não?) que tenha sido esse o entendimento da associação, mas certamente não era essa a intenção de Lobato ao escrever o romance - muito pelo contrário.

Numa carta enviada por Lobato a Renato Kehl, médico, intelectual e um dos nomes mais relevantes do movimento eugênico brasileiro, o escritor declara o seguinte: “Renato, tu és o pai da eugenia no Brasil e a ti devia eu dedicar meu Choque [como chamava seu romance], grito de guerra pró-eugenia. Vejo que errei não te pondo lá no frontispício, mas perdoai a este estropeado amigo. [...] Precisamos lançar, vulgarmente, estas ideias. A humanidade precisa de uma coisa só: poda. É como vinha. Lobato”.

De acordo com Pietra Diwan, esse documento pertence a uma coleção de cartas de Lobato do Fundo Renato Kehl, do Centro de Documentação da Fundação Oswaldo Cruz, no Rio. O livro de Lobato foi dedicado, contudo, a outros dois nomes: Arthur Neiva e Coelho Neto, atuantes também na rede de relações eugenistas, destaca a historiadora.

São questões como essas que se colocam ao lado de elogios rasgados ao homem Lobato, autor de livros clássicos para crianças e homem sempre além de seu tempo.

A biografia de Monteiro Lobato talvez possa esclarecer algumas de suas posições. Neto de proprietário de terras, Lobato tinha 6 anos quando veio a abolição da escravatura, em 1888. Possivelmente ouviu muitas histórias do avô, do qual herdou propriedades que lhe permitiram uma vida de conforto.

Desse contato com a vida no campo, nasce o personagem Jeca Tatu, que Edgard Cavalheiro chamou de “vingança do fazendeiro fracassado”.

Em um ensaio intitulado “Monteiro Lobato Hoje: Ponto e Vírgula”, Silviano Santiago recorda que, a respeito de personagem, Sérgio Milliet fincou com precisão o punhal na ferida ao afirmar que “o Jeca Tatu é quase uma vingança pessoal; é o caboclo visto com o olhar azedo do fazendeiro malogrado”. Independentemente disso, o livro “Urupês” (1918), que traz as desventuras desse personagem, virou best-seller e foi lido por aqueles que Lobato “julgava serem os jecas tatus da vida”, de acordo com Santiago.

O personagem Jeca Tatu surge em 1914. Dois anos depois Lobato passou a viajar pelo interior com o diretor do Serviço Sanitário paulista, Arthur Neiva, desenvolvendo um olhar mais “científico” acerca dos problemas médicos e sociais de que eram vítimas os “jecas tatus” de que outrora ele zombava. Lobato mudou então de opinião e seu personagem passou de inferior “a vítima, o paciente esquecido por um governo omisso e irresponsável”, como destaca Diwan.

Quanto ao Saci, mencionado no texto de Bignotto, vale lembrar que nas lendas orais ele não é apenas “maldoso, monstruoso, filho do demônio”, como afirmou a pesquisadora. “Poranduba Amazonense”, de João Barbosa Rodrigues, relata, por exemplo, as diversas metamorfoses pelas quais o mito do Saci passou.

Segundo Rodrigues, “Saci significa mãe das almas, como bem interpretou Baptista Caetano (hang-h-aça), e que concorda perfeitamente com as crenças amazônicas, onde tudo em todos os reinos da natureza tem uma mãe (cy)”. Acredito, aliás, que a disseminação da lenda do Saci (como herói ou não) entre adultos e crianças não se deva tanto ao livro “O Saci” (1921), de Lobato, quanto à vitalidade da literatura oral brasileira, que, como se sabe, inspirou o escritor.

No que diz respeito à obra de Lobato para crianças, talvez devêssemos ouvi-las também para saber o que acham desses livros que leem em casa e na escola. Seria importante, sobretudo, ouvir a impressão das crianças afro-brasileiras para avaliar o impacto de determinadas frases de Lobato, que, mesmo dentro de um contexto, são racistas.

Marilene Felinto, em texto publicado também na Folha, contou a sua experiência traumática com “Negrinha” numa escola pública de São Paulo. A discussão deveria passar por aí, pelas crianças e adolescentes; a nós, adultos, caberia ouvir e contra-argumentar sem impor nossa experiência a elas. Não se pode enfiar Monteiro Lobato nem quem quer que seja goela abaixo dos leitores.

Trago essas questões apenas para examinar outras “terminações nervosas”, numa proposta de diálogo com o texto de Bignotto.

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