Descrição de chapéu Coronavírus

Sidarta Ribeiro discute pesadelo da pandemia e sucateamento da ciência em diálogo ficcional

Personagens também conversam sobre novas variantes do coronavírus e monstruosidade de Bolsonaro

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Sidarta Ribeiro

Neurocientista e fundador do Instituto do Cérebro da UFRN (Universidade Federal do Rio Grande do Norte), é autor de "O Oráculo da Noite: A História e a Ciência do Sonho" (Companhia das Letras)

[RESUMO] Em novo diálogo ficcional, os amigos Sagredo e Simplícia, cujos nomes ecoam personagens de Galileu Galilei, expressam duas reações opostas —uma otimista, outra desesperançada— ao descalabro brasileiro no qual se somam o governo Bolsonaro, cortes de verbas em ciência e educação e a pandemia de Covid-19.

Boteco virtual de sexta-feira, 26 de fevereiro de 2021, Brazil.

Sagredo Minha nega, tá sumida!

Simplícia Ai, nem te conto... Dias depois da nossa última conversa, peguei Covid, 63 dias intubada na UTI... Ainda sinto tontura, fraqueza e raciocínio lento. Sequela geral.

Sagredo Logo você que não larga a máscara e álcool em gel.

Simplícia Pois é... Mas dei mole e tirei a máscara pra cantar parabéns no niver do meu sobrinho... Na nuvem de perdigotos quatro pegaram Covid —e o Tio Horácio morreu.

Sagredo Putz...

Simplícia Um querido. Tô arrasada. Morava em Manaus, veio só pra festa do neto e voltou pra morrer. Não se internou pois os hospitais já tinham virado abatedouros. Mas acreditou na propaganda do governo e se entupiu de cloroquina e ivermectina. Dias de cefaleia, dores, perebas, febre, náusea e vômitos. No final o fígado não aguentou, teve uma morte pavorosa.

Sagredo Sinto muito, Simplícia. Também perdi um amigo maravilhoso para a Covid.

Simplícia Obrigada, Sagredo. Quem era ele?

Sagredo Claudio Maya foi um designer brilhante. É dele o cartaz com uma pomba da paz engaiolada, vencedor do concurso promovido pelo Comitê Brasileiro pela Anistia e pelos jornais Pasquim e Movimento, no final dos anos 70. Era muito amigo do incrível Rogério Duarte.

Simplícia Asssim me perco, é muito nome. Rogério quem?

Sagredo Ah juventude, eterna novidade! Rogério Duarte foi um dos mais criativos artistas gráficos que já tivemos, fundamental para a tropicália e o cinema novo, amigo de Gil, Caetano e Glauber Rocha. Fez aquele cartaz do “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, lembra?

Simplícia Lembro sim, cartaz incrível.

Sagredo Tão incrível quanto o filme, o Claudio Maya e o Rogério Duarte! Na ditadura os dois foram presos e torturados, mas resistiram com dignidade e seguiram suas vidas potentes. Dois bambas que evocam a necessidade de unir ciência e arte nesse momento específico da história.

Simplícia Lá vem você com suas ideias mirabolantes. O que esses dois artistas têm a ver com a ciência?

Sagredo Tudo. Pra começar, ambos lecionaram na Universidade de Brasília (UnB). Rogério era sobrinho do Anísio Teixeira, criador da UnB, construtor da educação pública brasileira e presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) nos anos 50. Claudio, que trabalhou na Fiocruz como jovem designer, era fascinado pela geometria da natureza, um físico amador sem equações, mas transbordante de soluções. Saca o “Quanta”, do Gil? Essa onda.

Simplícia Que viagem, bicho... Meu cérebro tá mole de Covid, não acompanho tanta associação livre. Pra mim tu insistes em ciência porque puxa a brasa pra própria sardinha. Educação e saúde quase levaram um golpe mortal na PEC Emergencial, e a ciência é só a cereja do bolo de merda. Também noto que até agora tu só exaltaste homens brancos.

Sagredo Epa, epa, essa fala é minha! Nessa roda quem mais defende a negritude sou eu.

Simplícia Epa baba, camará! Sei disso não. A preta aqui sou eu. Viva Carolina Maria de Jesus!

Sagredo Mas você quase não fala de racismo.

Simplícia É porque o machismo me incomoda ainda mais. E falo sim, quando há espaço, pois homem branco fala sem parar.

Sagredo Com essa voadora terei que abrir a Witbier caseira, primor de sabor adocicado e opacidade amarelo-palha. Bebe?

Simplícia Não, hoje só pito mesmo, não tô aguentando álcool. Mas não posso deixar de notar que tua sofisticada escolha de cerveja é branca e europeia.

Sagredo Acredito não, vai me tirar assim na caruda? Saiba que as mais antigas cervejas foram encontradas no Oriente Médio e na China, bem longe da Europa.

Simplícia Vai erudito, bebe a bendita! Precisamos mesmo é que o Salvi volte pra animar nosso papo com um pouco de caos.

Sagredo Isso lá é verdade, ele é mestre em bagunçar o coreto. Mas depois que se apaixonou sumiu completamente.

Simplícia Casal lindo! Certíssimos! Pra que falar abobrinha na internet se é possível amar a noite toda?

Sagredo Que casal que nada, menina. Salvi é do poliamor.

Simplícia Sério? Achei eles tão envolvidos... Mas enfim, que aproveitem! Fiquemos nós aqui em quarentena, solitários e entediados, resenhando o fim do mundo enquanto seu lobo não vem.

Sagredo Poderia até concordar contigo se 1) nosso papo fosse entediante e 2) o mundo estivesse realmente acabando.

Simplícia E não tá? Olha o que rolou nos Estados Unidos! Te falei que o Trump ia dar o golpe —e deu mesmo!

Sagredo O que importa é que o golpe fracassou. As instituições resistiram, Biden tomou posse e a nova era já é.

Simplícia Quanta ingenuidade, papi! Trump é uma sombra fascista sobre Biden, mas ambos são falcões ianques, vão sempre usar o “big stick” aqui no quintal. Somos o quarto de despejo deles.

Sagredo Sem nuance a tua análise... Essa equivalência moral não existe. É como comparar Bolsonaro e Lula. Biden já retomou o acordo de Paris e voltou para a Organização Mundial da Saúde. Vai defender a Amazônia e peitar o Bozo.

Simplícia Sem nuance é tu! Esqueceu que quem grampeou a Dilma foi o Obama? Dá uma lida lá nas conversas criminosas da operação Lava Jato! Tem dedo da CIA no golpe milico-pastoral-farialímico que nos vampiriza desde Temer, o vil! Guerra híbrida!

Sagredo Difícil conversar contigo. Dou o desconto da Covid. Ao menos admita que seria muito pior se Trump tivesse vencido.

Simplícia Óbvio, o cara é o anticristo. Mas em termos de império, são só tons de cinza. Nosso lugar no mundo não muda só porque Biden ganhou.

Sagredo Claro que não. Sair do atoleiro depende principalmente de nós mesmos. Quem afunda na areia movediça precisa se mexer com muita sabedoria e agarrar raízes que permitam sobreviver. Por isso precisamos juntar arte e ciência, nossas raízes fundamentais.

Simplícia Pra mim são alhos e bugalhos. Explica melhor.

Sagredo Vamos lá. Primeiro o diagnóstico: à medida que a pandemia piora, o saco cheio com a quarentena cresce. As corporações embarcaram de cabeça na tentativa de normalizar a anormalidade. A volta às aulas é um exemplo dessa estratégia imbecil, que já custou caríssimo à Inglaterra e aos Estados Unidos. Com média móvel acima de mil mortos por dia e com mais de 250 mil cadáveres, nada impede que cheguemos à horrorosa projeção de 1 milhão de mortos, veiculada pelo Átila Iamarino como pior cenário possível.

Simplícia Novamente tu citas um homem.

Sagredo A Natalia Pasternak tem alertado para o perigoso acúmulo de erros no enfrentamento da pandemia. Ainda podemos impedir que o vírus vença!

Simplícia Acúmulo de erros é pouco. O senador Contarato, da Rede, é que pôs o dedo na ferida: Pazuello e Bozo vão ter que responder criminalmente pelos atos intencionais que levaram ao genocídio em curso. Mas e daí?

Sagredo Daí que não sairemos do fundo do poço sem muuuuita ciência. Por décadas fomos líderes latino-americanos na produção de vacinas e campanhas de vacinação. Temos muita tecnologia e pessoal altamente qualificado. Deveríamos estar produzindo vacinas suficientes para todo o povo brasileiro e para exportar. Como chega a essa situação o país de Carlos Chagas, Oswaldo Cruz, Rute e Victor Nussenzweig, Michel Rabinovitch, Carlos Morel, Samuel Goldenberg, Ester Sabino, Amílcar Tanuri, Alicia Kowaltowski, Dario Zamboni? O país da Fiocruz e do Butantan! Que vergonha!

Simplícia Lá vem você com suas listas intermináveis de cientistas mormente brancos e homens. Segue minha lista de artistas e pensadoras negras: Ruth de Souza, Lélia Gonzalez, Sueli Carneiro. Assiste o “AmarElo”, do Emicida, que você entende.

Sagredo OK, mas meu ponto é que não era pra estarmos nesta merda. O que rolou é que nos últimos cinco anos a ciência foi desacreditada e sucateada. Por isso é que nos encontramos de joelhos diante de uma pandemia que pode espiralar muito mais, pois está fora de controle. A vacinação lenta, gradual e insegura tem grande chance de se converter numa usina de seleção de mutações cada vez mais perigosas.

Neste cenário de pesadelo epidemiológico, as diferentes vacinas nunca protegerão contra todas as cepas virais e o processo de massacre dos mais vulneráveis se estenderá por longos anos. Por conta do péssimo manejo governamental e da baixa adesão popular aos cuidados básicos, estamos desguarnecidos em plena peste, desesperadamente tentando obter vacinas e insumos para fazê-las, pessimamente posicionados nesse desprezível mundo novo.

Simplícia Posicionades! As mulheres estão sofrendo mais do que os homens nesta pandemia.

Sagredo Que saco essa patrulha de gênero na linguagem.

Simplícia Que saco essa linguagem patriarcal!

Sagredo Posicionades, tá bem assim?

Simplícia Melhorou. E daí?

Sagredo Daí que esse rebu de horrores não aconteceu por acaso. O Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT), alimentado por impostos pagos pelo setor privado para investimento específico na ciência, vem sendo contingenciado em até 90% desde 2016. A ciência brasileira está na UTI, respira por aparelhos e o oxigênio vai acabar. Precisamos com urgência reverter esse rumo.

Simplícia Parece um xeque-mate da CIA na nossa soberania. O Brasil já era. Nigredo sem luz no fim do túnel.

Sagredo Calma guerreira, há sempre luz no fim do túnel! Nos últimos anos houve intensa articulação para reverter. A SBPC e a Academia Brasileira de Ciências somaram forças com políticos como o senador tucano Izalci Lucas e o ex-deputado petista Celso Pansera para aprovar um projeto de lei que proíbe o contingenciamento do FNDCT. Entretanto, motivado por “forças ocultas”, Bozo vetou justamente o artigo que proibia o contingenciamento dos recursos.

Simplícia Ocultas nada, isso é geopolítica da dominação. Esses entreguistas penduraram o Brasil no pau de arara sem arrego.

Sagredo A desesperança na luta é um grave equívoco, Simplícia. Pense na Batalha de Stalingrado, que por um triz não foi vencida pelos nazistas. A derrubada desse veto é a Batalha de Stalingrado da ciência brasileira.

Simplícia Teu delírio ufanista me dá dó. Tão inteligente e tão iludido! Matar a ciência é a forma mais fácil de escravizar um país a longo prazo. Esse plano construído no império foi implementado pelos mesmos golpistas que seguem governando. E não há como escapar disso. Olha o baile que o Bozo deu nas votações para presidentes da Câmara e Senado.

Sagredo Não se desespere, Simplícia. Há nuances na direita que você menospreza. Quem bailou não foi o Bozo e sim o centrão, com interesses que se sobrepõem, mas não se confundem. Também no centrão existem políticos sensíveis à pressão popular. Veja a trolha que o Daniel Silveira levou.

Se criarmos um movimento realmente amplo para derrubar o veto, se recusarmos como os russos se recusaram em Stalingrado a ceder um milímetro a mais de território, triunfaremos. É preciso convocar todos os nossos budas para vencer a batalha do FNDCT. Nossa vitória será o início da volta por cima. De tanto dobrar à direita, o povo acabará indo de novo pra esquerda.

Simplícia OK, entendi tua ideia. Mas o que nós, pobres artistas, podemos fazer?

Sagredo Muita coisa, mana! A arte é irmã da ciência, as duas habitam o território mágico da criação, experimentação e aprendizado sem fim. A ciência tem grande poder sobre as coisas, mas é a arte quem mais mexe com as emoções. Precisamos da arte para mover a nação em defesa de seu patrimônio científico. Como você diria, precisamos desesperadamente do socorro des artistes.

Simplícia Fazendo o quê? Clicando em abaixo-assinado?

Sagredo Sim, clica aí! Mas o essencial é usar a arte para defender o Brasil. Há duas semanas, Irina Theophilo projetou na lateral de um prédio em Botafogo imagens enormes defendendo o FNDCT. Precisamos furar a bolha. A ciência é de todes.

Simplícia Acho legal essa solidariedade, mas é uma demanda muito setorial.

Sagredo Claro que não! Ciência e arte são bens culturais essenciais, são de interesse universal. Defender o FNDCT é o primeiro passo para retornarmos ao caminho da soberania. Depois de repelir esse ataque lesa-pátria, construiremos a frente única e tiraremos o Bozo nas eleições de 22.

Simplícia Agora delirou de vez, imagina se a esquerda tem chance contra o Bozo... Está fracionada. Haddad e Lula pra um lado, Ciro pro outro, Boulos pra cá, Marina pra lá, Dino e Manu laiá laiá... Nessa eleição vai dar Bozo, Moro ou Huck.

O mais provável é Bozo mesmo, pois os samangos estão se refestelando no uísque 12 anos e não vão querer largar a boquinha tão cedo. Lembra do tuíte do Villas Bôas pra forçar a prisão do Lula? Tá tudo dominado pelas milícias milicas. Quem não está comprado está chantageado, ameaçado ou morto.

Sagredo Tua paranoia beira a cegueira. Não há complô contra o Brasil, só precisamos aprofundar a democracia e corrigir os erros.

Simplícia Respeite os cegos que enxergam na escuridão. Viva Mestre Pastinha!

Sagredo Quem é Mestre Pastinha?

Simplícia Luz da Capoeira Angola, cego no fim da vida, inspiração fundamental para o bacurau que estamos vivendo. Nossa desdita está apenas começando. Só com muita mandinga mesmo, Sagredo... Assim como o vírus vai mutando e sendo selecionado em cepas mais transmissíveis, também o Bozo vai mutando a cada ciclo político para se manter no poder, posando com mais ou menos monstruosidade conforme a ocasião. Com o apoio da elite, continuará a espoliar o povo e sabotar o país. Mamata acima de todos, máfia acima de tudo!

Sagredo Felizmente você se engana, minha amiga. Se a pandemia mostrou que tudo pode ser alterado, menos a sanha do lucro, o grande capital já percebeu que é precisa mudar.

Simplícia É nunca, a predação seguirá intocável. Sabia que as dez pessoas mais ricas do mundo poderiam imunizar toda a população planetária? Mas não vão fazer isso, né? Enquanto o povo morre nas UTIs colapsadas, os bilionários cada vez mais ricos constroem bunkers para fugir do desastre.

Sagredo Mas tudo mudou com a derrota do Trump. Biden vai civilizar o capital e entraremos num período de abundância, desenvolvimento humano e saúde ambiental.

Simplícia Too little, too late. A pandemia saiu do controle, e nem Biden, Merkel ou Putin podem resolver. As mutações do Sars-Cov-2 são selecionadas mais rapidamente do que nossa capacidade de produzir vacinas adaptadas. Fodeu.

Sagredo O pito te transforma em Cassandra.

Simplícia E a cerveja te transforma em Poliana. Aceito o apodo, mas lembre de Troia. Os sinais da hecatombe são claros. Veja a epidemia de suicídios no Japão, em Las Vegas... Imagine os próximos meses... Tá todo mundo pirando, a violência vai crescer.

Pensa no João Alberto, aquele homem negro que ficou famoso porque foi espancado até a morte num supermercado de Porto Alegre. E todos os matáveis dos quais nem ficamos sabendo? Somos campeões mundiais em estupros e mortes violentas de mulheres e crianças. Quase país. País de merda. País sem futuro.

Sagredo Futuro país.

Simplícia Até o Carnaval foi cancelado. Não verás país nenhum. Imagine tudo piorando, ponha enredo, sucessivo...

Sagredo Vou é botar um samba-enredo pra gente ouvir. Quer escolher?

Simplícia Império Serrano, 1969: “Ô ô ô ô / Liberdade, Senhor / Passava a noite, vinha dia / O sangue do negro corria dia a dia / De lamento em lamento / De agonia em agonia / Ele pedia o fim da tirania”.

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