Descrição de chapéu
Claudia Feitosa-Santana

Cores comprovam que graffiti também é arte

Estudo indica que grafiteiros e pintores consagrados produzem obras com estrutura cromática parecida

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Claudia Feitosa-Santana

Neurocientista, arquiteta e engenheira, com mestrado e doutorado pela USP e pós-doutoramento na Universidade de Chicago

[RESUMO] Pesquisa aponta semelhanças entre a estrutura de cores da arte de rua de São Paulo e a de pinturas consagradas, produzidas do Renascimento até meados do século 20. Os resultados evidenciam, segundo a autora, que o graffiti tem atributos comparáveis a obras tradicionais e, por isso, merece ser considerado uma expressão artística. O Dia Nacional do Grafite é comemorado neste sábado (27).

Graffiti é um termo genérico, sendo utilizado para descrever textos, desenhos ou pinturas que são realizados para serem vistos publicamente. Nas últimas décadas, passou a ser um termo quase que exclusivamente relacionado a pinturas em espaços públicos, feitas de forma ilegal ou sob encomenda, por iniciativa pública ou privada.

Na falta de consenso sobre a terminologia mais adequada para descrever esse tipo de expressão artística, vale ressaltar seus outros sinônimos como grafite, pixo, arte pública independente ou, ainda, o mais conhecido deles, arte de rua, termo que também engloba outras expressões artísticas como esculturas e performances urbanas.

Porém, entre os artistas dessa modalidade, os famosos grafiteiros, parece existir um consenso adotando o termo graffiti, sem tradução para o português e sem alteração da grafia para o plural, para nomear suas pinturas em paredes públicas. Em respeito a essa tradição, este artigo segue essa convenção.

As opiniões sobre os diversos tipos de graffiti ainda são bastante divergentes. Opiniões negativas referem-se, em geral, ao pixo realizado em locais públicos, enquanto as opiniões positivas fazem referência ao seu papel de trazer arte para o ambiente urbano e bem-estar para seus habitantes. Para muitos gestores urbanos, o graffiti não é bem vindo, e ações para apagá-los ainda são bastante frequentes.

Já para os acadêmicos, o graffiti é considerado um novo tipo de produção cultural que extrapola os limites da arte tradicional —“o cubo branco do museu”— e faz da cidade —“o cubo cinza da rua”— uma tela em um museu aberto.

Junto à sua presença cada vez mais marcante nas cidades, os valores crescentes de muitas obras de grafiteiros consagrados, como Banksy —cujas obras "Devolved Parliament", de 2009, e "Show me the Monet", de 2019, que foram recentemente leiloadas por US$ 12 e US$ 10 milhões, respectivamente— , passaram a gerar o inevitável debate jurídico sobre quem é o dono do graffiti —o artista grafiteiro ou o dono do muro onde a obra foi feita.

Esse debate expressa a relevância do graffiti na atualidade, considerando aqui também sua legitimação como objeto de pesquisa entre acadêmicos e a presença em jornais científicos dedicados ao assunto, como o Street Art & Urban Creativity, fundado em 2015 em Lisboa.

Segundo Aldo Leopold, o tecido urbano tem um componente essencial do nosso “amor, respeito e admiração pela terra” e “as pesquisas relativas aos componentes sensoriais, experienciais e estéticos da paisagem devem se intensificar” para esse fim, valendo-se, segundo Jane Jacobs, da “ciência e da arte como parceiras essenciais para alcançar o uso viável e equitativo das paisagens em todas as suas formas”. O trabalho de Peter von Tiesenhausen em Demmitt, no Canadá, é um grande exemplo defendido por Jacobs.

Pela presença marcante nas cidades, passa a promover uma mudança social significativa no bem-estar geral que vai além do graffiti, englobando também outras formas de arte urbana que tiveram gênese junto a ele.

Exemplo marcante da transformação social gerada pelo graffiti, a flor gigantesca pintada em um cruzamento de Portland, nos Estados Unidos, rivaliza em termos de impacto com a transformação social gerada pelo presença da escultura "Angel of the North" em Gateshead, na Inglaterra, e o ativismo da jardinagem coletiva crescente em espaços públicos, que veio a ser batizada como jardinagem-guerrilha —inspirada no movimento espontâneo gerado na plantação de repolhos em Wellington, na Nova Zelândia, com duração de seis meses em 1978 e objeto do documentário “Vacant Lot of Cabbages”.

Para além dos aspectos de beleza, o graffiti é um elemento-chave do desenvolvimento urbano contemporâneo, uma constante no tecido urbano e uma voz presente na cidade. Atualmente, o graffiti está no cerne do debate sobre a cidade justa, que se pode entender como um ato de reivindicação por equidade, democracia e diversidade nos espaços públicos.

Esses aspectos do graffiti estão sendo estudados junto a outras formas de arte pública em muitas cidades ao redor do mundo, como, por exemplo, por meio da artopia pública, que visa analisar a arte pública sob um aspecto perceptual de seu público.

Grafite de mulher negra
Grafitti em São Paulo incluído no estudo - Claudia Feitosa-Santana/Arquivo pessoal

Vale ainda destacar a nova norma urbana em Montréal, no Canadá, e em Joanesburgo, na África do Sul, a recalibração da esfera pública com o emblemático monumento "Zumbi" em uma universidade na Cidade do Cabo, na África do Sul, o artivismo urbano das imigrações e migrações nas cidades europeias, como em Atenas, na Grécia, e a negociação da geografia moral na prática artística em Sydney, na Austrália.

A arte associada ao meio urbano tem sido muito mais estudada pelas ciências sociais que pelas ciências exatas, certamente por problemas de difícil quantificação. A arte, é claro, não pode ser simplesmente quantificada, uma vez que é uma experiência multidimensional bastante complexa.

No entanto, a natureza artística do graffiti pode ser estudada quando olhamos para os aspectos visuais que podem ser quantificados, tal qual fazemos na análise de obras artísticas em museus. É possível medir certas propriedades visuais das obras, como a estrutura espacial e a estrutura cromática, buscando as regularidades compartilhadas pelas obras urbanas e tradicionais, que possam estar relacionadas ao seu processo artístico.

Para tal, fotografamos 245 graffiti de São Paulo, distribuídos nas cinco zonas da cidade. Dessa amostra, 228 foram analisados neste estudo: 26 da zona norte, 59 da zona sul, 44 da zona leste, 44 da zona oeste e 55 do centro. Todas as fotos foram realizadas em torno do meio do dia, evitando, ao máximo, as indesejáveis sombras que acabam por inviabilizar uma boa análise. Os locais eleitos para representar a diversidade de estilos foram escolhidos seguindo o conselho de grafiteiros.

Seguindo nosso processo metodológico, ao chegarmos ao local —fosse uma viela, uma rua ou uma avenida—, os graffiti foram fotografados por meu aluno, Carlo M. Gaddi, enquanto eu posicionava os instrumentos necessários para obter as cores com exatidão científica, mantendo a sequência exata em que estavam para evitar nossos próprios julgamentos estéticos e, claro, algumas discussões inúteis. Além disso, não fotografamos as obras acromáticas, uma vez que o estudo se dedica a analisar a estrutura cromática.

Depois de longo processamento das fotografias, suas cores foram analisadas e, então, os dados obtidos comparados com as cores de 44 pinturas mais tradicionais —indo do período renascentista até meados do século 20, em uma abrangência de vários estilos, seja figurativo ou abstrato, seja de artistas anônimos ou consagrados.

Grafite de plantas
Procedimento de aquisição de imagens para o estudo - Claudia Feitosa-Santana/Arquivo pessoal

Quando as cores utilizadas pelos grafiteiros e pelos pintores mais tradicionais são representadas em um espaço onde localizamos sistematicamente a gama de cores, ou seja, o número de cores que são vistas em cada um desses estilos, verificamos que as cores utilizadas pelos grafiteiros são mais saturadas que as dos artistas mais tradicionais, uma vez que a gama de cores do graffiti é muito maior.

Para entender essa diferença, pedimos a ajuda de vários grafiteiros e coletamos amostras dos seus pigmentos para podermos comparar com um banco de dados de pigmentos históricos, comumente utilizados nas pinturas até meados do século 20. Verificamos então que os pigmentos geralmente utilizados pelos grafiteiros são mais saturados que os pigmentos históricos.

A explicação, provavelmente, reside no fato de que os pigmentos sintéticos contemporâneos são mais saturados que os pigmentos que eram usados em pinturas antigas. Analisando essa gama de cores de forma individualizada, ou seja, para cada graffiti e cada pintura, vemos que o graffiti tem área maior e, portanto, representa mais cores, o que se traduz na percepção de maior riqueza cromática.

Se formos considerar ainda uma análise individualizada, mais dois parâmetros nessa gama de cores foram representados: a razão entre as cores, que mede o alongamento da gama (e, portanto, uma forma de quantificar a variabilidade de cores), e a orientação das cores, que mede o ângulo dessa gama que melhor representa a concentração das cores (e, assim, captura o tipo de cores que apresentam maior variabilidade).

Pudemos verificar que graffiti e pinturas têm gamas com alongamentos semelhantes, o que se traduz na percepção de um equilíbrio semelhante entre as cores utilizadas.

Graffiti e pinturas compartilham ângulos muito similares, que se encontram no eixo amarelo-azul do espaço de cores. Contudo, apesar de muito semelhantes, a difusão da distribuição dos ângulos para o graffiti é maior do que para a pintura, o que sugere mais liberdade no uso das cores na arte urbana do que nas pinturas.

Verificamos, portanto, que grafiteiros e artistas mais tradicionais usam cores de forma muito semelhante em suas composições, expressas pelo mesmo equilíbrio entre elas, seguindo as mesmas proporções. Tomados em conjunto, esses fatos sugerem que, em termos de estrutura de cores, o graffiti é comparável a pinturas tradicionais e conhecidas do mundo da arte e, portanto, também merece ser considerado uma expressão artística.

Vale ressaltar, no entanto, que existem algumas diferenças fundamentais entre graffiti e pinturas: o graffiti exibe uma diversidade maior de cores, que são mais intensas, ou seja, são mais saturadas porque grafiteiros estão aproveitando a nova geração de pigmentos artificiais. Dessa forma, as gamas de cores são maiores e os ângulos mais espalhados no graffiti, revelando uma seleção menos concentrada de cores preferidas, sugerindo que os grafiteiros têm mais liberdade em suas escolhas estéticas.

Já nas pinturas mais tradicionais, como já se conhecia, a estrutura cromática carrega regularidades naturais do mundo, que engloba cenas urbanas e da natureza, algo que o estudo verificou também ser realidade no caso do graffiti, uma vez que, tal qual os artistas mais tradicionais, grafiteiros mimetizam, provavelmente de forma inconsciente, a estrutura natural do nosso cotidiano, que tem suas cores próximas do eixo amarelo-azul, que são uma característica do ambiente natural.

No entanto, o graffiti é ainda mais próximo dos padrões naturais do que as pinturas tradicionais, sugerindo, portanto, que o graffiti também esteja trazendo naturalidade para a paisagem das cidades.

O presente estudo foi baseado na análise de uma coletânea do graffiti em São Paulo que, apesar de ser considerada uma das principais cidades para graffiti no mundo, não deixa de ser uma amostra limitada. Portanto, para estimar até que ponto essa amostra pode ser considerada representativa da produção de graffiti em todo o mundo, também analisamos fotos de graffiti encontradas na internet de outras cidades, também classificadas como as melhores cidades de graffiti do mundo, em um total de 434 fotos de Berlim, Bogotá, Los Angeles, Londres, Melbourne, Nova York e Paris.

Os resultados foram bem parecidos aos encontrados na amostra de São Paulo, uma vez que as mesmas tendências foram reveladas. Exercício semelhante foi realizado com pinturas, ao analisarmos 500 obras de diferentes épocas, pintores e estilos de um banco de dados público. Novamente, os resultados se mostraram semelhantes, apoiando a noção de que nossa amostra é representativa tanto para pinturas tradicionais quanto para o graffiti em todo o mundo.

Ao compartilhar suas estruturas de cores com as das pinturas, o graffiti contribui para a expressão artística das paisagens urbanas e, consequentemente, para o bem-estar de seus habitantes. Os resultados aqui relatados são, também, de suma importância para pressionar o Legislativo com políticas públicas que privilegiem e invistam mais no graffiti, trazendo mais arte para nossos museus a céu aberto.

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