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João Cezar de Castro Rocha

Êxito de Bolsonaro na guerra cultural da pandemia levou Brasil a catástrofe histórica

Fabricado em canais alternativos de comunicação, o triunfo bolsonarista gerou o colapso da gestão pública

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João Cezar de Castro Rocha

[resumo] Apoio ao presidente em camadas expressivas da população, a despeito da atuação irresponsável ou mesmo criminosa de seu governo na pandemia, simboliza a vitória do bolsonarismo na guerra cultural, travada em redes sociais e canais alternativos de comunicação que propagam torrentes de notícias falsas, escreve professor. Esse êxito, contudo, acarreta o colapso da gestão pública e leva o Brasil a viver a maior tragédia de sua história.

“Você não sabe o que é caminhar com a cabeça na mira de um HK”
Jocenir e Mano brown

O paradoxo bolsonarista

O fenômeno bolsonarista é condicionado por um paradoxo que tanto assegurou seu êxito eleitoral em 2018 quanto anuncia agora o colapso da gestão pública; ruína tornada tragédia na gestão negacionista da crise sanitária.

Eis o paradoxo: o êxito, incontestável, do bolsonarismo implica o fracasso, incontornável, do governo Bolsonaro. Quanto mais impactante for o triunfo da guerra cultural, tanto mais desastrosa será a administração da coisa pública.

O acerto da hipótese infelizmente se confirma na imagem de um Brasil exausto por tantas vidas perdidas, vidas que poderiam ter sido salvas se a vacinação em massa não tivesse sido sabotada pelo governo federal, que só voltou atrás em um cenário propriamente apocalíptico. No dia 23 de março, ultrapassamos a infame marca de mais de 3.000 mortes de brasileiros em apenas um dia.

(Cada crime uma sentença?)

O paradoxo e sua potência

No momento em que se publicar este texto, teremos superado o trágico número de 300 mil mortes provocadas pela peste da Covid-19. Ao mesmo tempo, surgem novas cepas do vírus, ao que tudo indica de contágio mais célere e de letalidade mais grave. De igual modo, o sistema hospitalar, público e privado, entra em colapso em todo o país.

(O ser humano é descartável no Brasil?)

No entanto, como se a situação estivesse sob controle, o novo ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, anunciado no dia 15 de março, somente foi empossado no dia 23, em uma cerimônia discreta que não constava da agenda oficial, como se o ato em si mesmo tivesse algo de vergonhoso.

Ou seja, por uma longuíssima semana, durante o período mais dramático da crise, o ministro demissionário, o general Eduardo Pazuello, converteu-se em uma incômoda sombra assustada, ao passo que o novo titular da pasta buscava desvencilhar-se de empenhos comerciais.

(Ninguém trabalha no Gabinete de Segurança Institucional? Não se investigou esse “pequeno” contratempo no Gabinete da Surpresa Infinita?)

Ainda assim: apesar dos tropeços não somente irresponsáveis como também criminosos no enfrentamento da pandemia, há uma faixa da população que insiste em apoiar cegamente o governo.

E a turma é eclética: senhores encanecidos fantasiados de soldadinhos de chumbo, senhoras decididas envelopadas em surradas bandeiras, guerrilheiros destemidos do éter, valentões tímidos das redes sociais e, não se esqueça, exóticos empresários tagarelas e elegantes banqueiros muito apaziguados pelo tanto que sempre lucram em qualquer circunstância. Vale dizer, enquanto as UTIs do Copa Star, do Einstein e do Sírio-Libanês estiverem devidamente reservadas.

Como entender esse apoio, que implica a incomum capacidade de deixar de ver a pilha de corpos que se avoluma dia a dia?

A resposta obriga a um reconhecimento inquietante: na guerra cultural da pandemia, se a expressão for aceitável, Bolsonaro está vencendo. Triunfo, bem entendido, fabricado no circuito comunicativo paralelo do bolsonarismo.

Máquina incansável de fatos alternativos, moto-contínuo de notícias falsas, usina permanente de vídeos de impacto: parafernália disseminada em correntes multitudinárias de WhatsApp, em canais de YouTube e por meio de aplicativos como, por exemplo, Mano, que reúne uma constelação de estações de TV e de rádio, todas gratuitas.

Ao escolher qualquer programa, o usuário é literalmente assediado por caixas de diálogo, cujo conteúdo é invariavelmente favorável aos delírios bolsonaristas.

No dia 10 de março, assisti à TV Clima de Ribeirão Preto e fui recebido com uma mensagem ameaçadora: “Para mim é: Jesus no céu e Bolsonaro na Terra. Tamu junto”. No dia 22 de março, me arrisquei na Rede Tiradentes de Manaus. Um usuário, depois de enviar incontáveis mensagens, disse a que veio: “Os governos estaduais, municipais e muitos empresários ligados a eles têm muito a explicar à Justiça, à população e, principalmente, a Deus”.

Em grupos de WhatsApp, um vídeo-tsunami mostra um homem de bem celebrando sua “ressurreição” graças à milagrosa nebulização feita com um comprimido diluído de hidroxicloroquina. Em vista disso, precisamos de hipóteses novas para dar conta da complexidade da midiosfera bolsonarista.

Vamos lá: diante da evidência do fracasso do governo, a guerra cultural radicalizou seus processos. Não mais se trata de esposar teorias conspiratórias ou de papaguear narrativas polarizadoras em busca do novo inimigo de plantão. Não é mais suficiente limitar a pulsão bélica a períodos eleitorais. Pelo contrário, a guerra cultural se converte em um princípio existencial. Não basta o blablablá do STFimpediuopresidentedeagir, do tratamentoprecoce, da cloroquinasimvacinanão, do Bolsonaropaidavacina.

Agora, o caos cognitivo deve ser traduzido em uma forma de vida: ostentar a cloroquina como se fosse uma hóstia profana; não usar máscaras, de preferência em manifestações a favor da intervenção militar, com Bolsonaro no poder, por óbvio; tomar overdoses de ivermectina como se não houvesse amanhã, tampouco sistema hepático; apressar os passos em um arremedo cômico de marcha militar; deixar de ler a “extrema imprensa” e somente se informar com a “mídia independente”; nunca assistir à “Globolixo” em detrimento dos canais confiáveis da rede de youtubers bolsonaristas; confirmar os delírios conspiratórios no eco que encontram em “jornalistas” e “subcelebridades” em programas da mídia tradicional.

(Ratatatá, caviar e champanhe)

A guerra cultural passa a ser a própria realidade para os seus militantes. A palavra torna-se a coisa: o desastre se avizinha.


O bolsonarismo e sua tragédia

Corolário da hipótese: o governo Bolsonaro pretende desidratar o financiamento do Censo do IBGE em uma proporção selvagem, sem paralelo em qualquer sistema político contemporâneo: nada menos que 90% dos recursos destinados à coleta sistemática de referências sobre o país poderão ser cortados.
Metáfora acabada da guerra cultural bolsonarista, que, em sua monomania narrativa, dispensa dados objetivos —afinal, sempre há um inimigo à espreita, não é mesmo? Contudo, como desenvolver um planejamento mínimo da gestão pública sem dispor de informação confiável?

Qual o resultado palpável dessa desconsideração do mais elementar princípio de realidade que guiou todos os pronunciamentos irresponsáveis e negacionistas do presidente?

A ironia bate à porta: recordemos alguns poucos fatos para demonstrar, sem perder tempo com disputa de narrativas, que o bolsonarismo é incompatível com governança —e nem sequer penso no luxo de uma “boa governança”, dada a onipresença paranoica da guerra cultural.

No dia 18 de janeiro, o general Pazuello e sua equipe de especialistas conseguiram a proeza de falhar na entrega de vacinas para 19 estados —muitos governadores e autoridades esperaram por horas em aeroportos porque o Ministério da Saúde não foi capaz de organizar uma planilha de horários de voos! O mestre da logística confundiu-se no preenchimento de um singelo documento em Excel?

Em fevereiro, depois do inaceitável colapso do sistema hospitalar em Manaus, o Ministério da Saúde superou seu generoso histórico de equívocos tontos: 76 mil doses da vacina AstraZeneca/Oxford destinadas ao Amazonas foram enviadas para o Amapá, que deveria ter recebido apenas 2.000 doses. Uma operação de emergência foi necessária para desfazer a troca.

O ex-ministro general apresentou com voz firme e olhar perdido nada menos que quatro planos nacionais de vacinação, com datas propriamente heraclitianas e números infelizmente fictícios. Preciso acrescentar que plano algum foi implementado?

Passemos do levemente pitoresco ao erro mais obviamente criminoso? Nos dias 14 e 15 de janeiro, um cenário de terror se abateu sobre Manaus: o oxigênio acabou nos hospitais da cidade, levando muitas pessoas à morte por asfixia. Cenas chocantes e comoventes de familiares passando dias inteiros para levar para casa balões de oxigênio no esforço de salvar seus parentes dominaram os noticiários.

(Mário de Andrade: Esse homem é brasileiro que nem eu...)

E tudo sempre pode ficar pior no Brasil bolsonarista: 61 bebês prematuros estavam no meio desse caos. O Ministério da Saúde sabia da iminência da falta de oxigênio desde o dia 8 de janeiro. No dia 14, em Manaus, no momento mesmo do desespero, o general Pazuello lançou o aplicativo-guerra-cultural TrateCOV, programado para receitar o kit-guerra-cultural tratamento precoce.

Há mais: em agosto de 2020, o governo cancelou a compra de parte do chamado kit intubação, incluindo sedativos e relaxantes musculares, sem os quais a intubação exige que o paciente seja amarrado à cama, a fim de suportar a dor intensa provocada pelo procedimento particularmente invasivo. A simples ideia produz horror: nessas condições, intubar alguém é uma autêntica sessão de tortura...

A ação do presidente é inqualificável: sabotou a Coronavac e, sem a vacina do Instituto Butantan, quase não teríamos pessoas imunizadas no país; em agosto de 2020, recusou a oferta de 70 milhões de doses da vacina Pfizer; provocou metodicamente aglomerações todo o tempo; recusou-se a usar máscara; mentiu sobre a determinação do STF acerca da competência de seu governo no combate à pandemia; antagonizou prefeitos e governadores no afã de inventar inimigos em série.

Bolsonaro pode imaginar que, na guerra cultural, esteja triunfando. Por isso mesmo, o Brasil vive a pior tragédia de sua história. O bolsonarismo, vale repisar, é incompatível com qualquer princípio básico de governança.

Coda

Numa mímica demoníaca, em sua live em 18 de março, Bolsonaro reproduz o desespero dos que sentem o oxigênio faltar e, emitindo um som gutural, arfa três vezes. Três vezes arfa e na última parece que ladra. Autorretrato involuntário, coincidem o guardador e a coisa guardada. No mesmo CPF, dupla identidade: Cérbero e o Hades.

(Sorri no inferno)

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