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Fabiana Alves Rodrigues

Fim da Lava Jato expõe erro de usar Justiça para fazer política

Dissolução da força-tarefa de Curitiba reflete perda de legitimidade da operação

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Outdoor em apoio à Lava Jato em Curitiba

Outdoor em apoio à Lava Jato em Curitiba  Theo Marques - 18.jul.19/UOL/Folhapress

Fabiana Alves Rodrigues

Juíza federal e mestre em ciência política pela USP, é autora do livro "Lava Jato: Aprendizado Institucional e Ação Estratégica na Justiça" (ed. WMF)

[RESUMO]Dissolução do modelo de força-tarefa em Curitiba não representa o fim das investigações de desvios na Petrobras, mas simboliza forte derrota e o ocaso da estratégia de marketing de que a Lava Jato erradicaria a corrupção no Brasil. Trajetória da operação deixa conquistas a serem preservadas, como a maior eficácia na condução dos processos, e muitos erros, como o descumprimento de regras essenciais do Estado de Direito e a quebra de barreiras entre Justiça e política.

A dissolução da Lava Jato no MPF (Ministério Público Federal) em Curitiba, em 1º de fevereiro, foi interpretada por alguns como o fim da operação. O procurador-geral da República, Augusto Aras, substituiu o modelo de força-tarefa, que em Curitiba era integrada até então por 14 membros, 11 deles com dedicação exclusiva, pela institucionalização dos Gaecos (grupos de atuação especial de combate ao crime organizado), composto na capital paranaense por nove membros, cinco deles dedicados aos casos da Lava Jato, mas apenas quatro com atuação exclusiva.

O que realmente tem fim com essa mudança? A expressão Lava Jato designa pelo menos três fenômenos, e para cada um deles pode ser feita uma análise diferente sob o aspecto de sua duração e dos efeitos esperados após a modificação promovida por Aras.

Não há dúvidas de que o ato do procurador-geral pôs fim à Lava Jato na sua dimensão de força-tarefa —por definição, um agrupamento temporário constituído para realizar determinada missão ou atingir metas sujeitas a um planejamento estratégico.

Esse modelo de mobilização de recursos materiais e humanos foi essencial para os resultados obtidos pela operação, pois permitiu uma vasta produção de investigações e acusações criminais complexas que dificilmente seria igualada pela atuação individual de um membro do Ministério Público.

O fim do modelo de força-tarefa não significa que foram encerradas as investigações e acusações envolvendo desvios da Petrobras, um dos aspectos centrais da Lava Jato, uma vez que esses procedimentos continuam agora conduzidos pelos integrantes do Gaeco. Possivelmente, porém, perdem fôlego diante da redução na estrutura administrativa mantida em Curitiba.

De toda forma, a despeito dos resultados que venham a ser obtidos a partir de agora, o abandono do modelo de força-tarefa, na Lava Jato especificamente, tem um símbolo político forte de derrota da operação ou de reconhecimento da perda de sua legitimidade.

Ocorre em um momento em que os atores da operação são alvo de críticas vindas de pelo menos três frentes: juristas e advogados de defesa de pessoas atingidas pela Lava Jato; aumento da produção acadêmica que aponta desvios e problemas na atuação do sistema de justiça criminal envolvido com a operação; e divulgação progressiva de conteúdo das comunicações nada republicanas dos integrantes da força-tarefa, várias delas confirmando uma relação entre os procuradores e o então juiz federal Sergio Moro que viola as regras de imparcialidade da magistratura.

Além da associação imediata à Petrobras, o nome Lava Jato também designa uma marca poderosa utilizada como marketing político do combate à corrupção e do protagonismo dos atores do sistema de Justiça envolvidos nesse debate. Isso vem sendo corroído ao menos desde a ida de Moro para o cargo de ministro da Justiça do governo de Jair Bolsonaro.

Em primeiro lugar, a vitória do atual presidente é diretamente relacionada aos efeitos da Lava Jato na inviabilização da candidatura de Lula e na corrosão da competitividade do PT nas eleições.

Ainda que esses não tenham sido os objetivos desejados ou previstos pela operação, a Lava Jato abriu as portas para o sucesso eleitoral de políticos extremistas com discursos retóricos antipolítica e antissistema, o que beneficiou até mesmo figuras inseridas havia décadas no sistema político, como Bolsonaro, deputado federal por sete mandatos sucessivos e filiado, de 2005 a 2016, ao partido mais atingido pela Lava Jato, o PP.

Além disso, as progressivas mudanças promovidas pelo governo Bolsonaro para desarmar as instituições de controle contribuíram para arranhar a imagem de Moro, que deixou o governo em abril do ano passado, e, por tabela, de toda a operação.

Destacam-se as mudanças estruturais e nos postos de comando para reduzir a eficiência e aumentar a influência do presidente na performance de instituições como o Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras), a Polícia Federal, a Receita Federal e o Ministério Público Federal.

Neste último caso, Bolsonaro seguiu a estratégia adotada por Michel Temer, que rompeu a tradição iniciada no governo Lula de indicar para procurador-geral o nome mais votado na lista tríplice elaborada pelo órgão de classe dos procuradores da República.

Identificadas as diferenças entre essas dimensões designadas pelo nome Lava Jato, também é preciso reconhecer que um marco simbólico de encerramento da operação, como a dissolução das forças-tarefas, ocorre depois de um processo marcado por muita disputa política, em que a Lava Jato se manteve viva, mas teve alguns membros amputados.

Uma grande operação de combate à corrupção produz resultados que prejudicam alguns grupos e beneficiam outros, o que levou à formação de coalizões de apoio e de repúdio à Lava Jato que não se mantiveram estáveis na trajetória da operação.

Desde os acordos de colaboração premiada do ex-diretor da Petrobras Paulo Roberto Costa, em setembro de 2014, e do doleiro Alberto Youssef, em dezembro de 2014, homologados no STF por terem apontado autoridades com prerrogativa de foro, já havia fortes indicativos de quais nomes da classe política poderiam ser atingidos.

O avanço da operação praticamente sem suspensões ou impedimentos pelos tribunais sinalizou que as possibilidades de prisão eram concretas, em especial após os dois primeiros acordos de colaboração ligados à Odebrecht, assinados no primeiro semestre de 2016.

O impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff talvez possa ser considerado o principal marco institucional na tentativa de dar cabo à Lava Jato, “para poder estancar essa sangria”, “com o Supremo, com tudo”, como explicitou o então senador Romero Jucá em conversa de março de 2016 revelada pela Folha.

Já naquela ocasião, diversos políticos defendiam a marca Lava Jato no debate público, mas já sabiam que eram potenciais alvos da operação. Ao apoiarem a derrubada de Dilma, somavam-se ao grupo dos que se articulavam nos bastidores não só para inviabilizar a Lava Jato, mas também para minar a capacidade de ação das agências anticorrupção do país.

De lá para cá, as disputas associadas à Lava Jato continuaram, até culminar no simbólico fim da força-tarefa do Ministério Público, que ocorre menos de dois anos depois de o Supremo Tribunal Federal finalmente deixar de oferecer apoio irrestrito à operação, quando mudou seu entendimento sobre competência da Justiça Eleitoral nos casos de crimes conexos, suspendeu a criação da bilionária fundação projetada pela força-tarefa e voltou a vedar o cumprimento da pena fixada na condenação antes do trânsito em julgado, retirando um forte incentivo à colaboração premiada.

O saldo atual dessa trajetória de disputas é claramente desfavorável à Lava Jato, mas isso dificilmente vai impedir que a operação deixe alguns legados.

O primeiro deles é a introdução da colaboração premiada na cultura jurídica do país. Abstraídas discussões normativas sobre essa modalidade de Justiça negocial, o fato é que a Lava Jato conseguiu dar efetividade ao uso da delação, o que foi possível pela conjugação de agilidade na tramitação dos procedimentos criminais, divulgação de resultados obtidos a partir das colaborações e supressão do controle desses acordos pelos tribunais, ao prever cláusulas que impedem sua discussão pelos colaboradores.

A Lava Jato também deixa uma lição de aprendizado institucional ao sistema de justiça criminal. Diversas operações de combate à corrupção foram frustradas pelo reconhecimento de nulidades praticadas na tramitação dos procedimentos.

Reverter esse cenário implica reconhecer que menos nulidades tem a ver com esmero do trabalho e respeito às formalidades. Muitos desses vícios foram corrigidos na Lava Jato, o que certamente é um dos fatores explicativos do reduzido grau de sucesso das defesas no questionamento de vícios processuais.

As conversas de membros da operação após ação de hackers, no que ficou conhecido como Vaza Jato, traz de volta o fantasma das nulidades e também mostra que nem sempre é fácil para as defesas comprovar os abusos do sistema de Justiça. Não há atalhos para produzir julgamentos criminais definitivos e efetivos, pois pressupõem dedicação e tramitação sem vícios processuais e sem violação de direitos.

Há um terceiro legado que também entra na conta do aprendizado institucional. A ampla divulgação da operação fez dela um objeto de interesse coletivo, o que agora leva à publicidade de seus abusos, expostos pela divulgação da comunicação entre os membros da força-tarefa.

Algumas práticas possivelmente são recorrentes, como menosprezar os direitos da defesa e a confusão de papéis entre órgãos acusador e julgador. As correções que venham a ser feitas a partir dos abusos identificados na Lava Jato serão válidas para todo o sistema de justiça criminal ou ao menos servem como recado dos tribunais aos operadores das instâncias inferiores.

A divulgação de abusos que decorrem da atuação em zonas com ampla margem de discricionariedade e sujeitas a pouco controle também há de produzir como legado a institucionalização de alguns procedimentos, como as comunicações informais nas cooperações internacionais, agora flagrantemente expostas na Vaza Jato. Sobre esse tema, é difícil não reconhecer um quarto legado de aprendizado institucional: a Lava Jato mostra que cooperação internacional é possível e pode ser ágil.

O final simbólico e desalentador da Lava Jato também é uma boa oportunidade para refletir a respeito do que devemos aprender com sua trajetória e seus resultados. Grandes operações criminais não podem ser a principal ferramenta para atingir os objetivos que toda a sociedade busca: desincentivar e reduzir a corrupção.

O controle criminal por natureza é seletivo, característica que se acentuou na Lava Jato ao concentrar recursos estatais para atingir apenas parcela dos grupos políticos (PT, PMDB e PP) e setores econômicos afetados, quando a própria narrativa da operação apontava corrupção sistêmica. Além disso, a operação produziu de modo artificial uma capacidade estatal que não é passível de reprodução em todo o sistema de justiça criminal, até pela falta de regras que padronizem suas atribuições.

Também deve ser destacado que não há evidências empíricas de que grandes operações policiais produzam efeitos gerais e duradouros de desincentivo à corrupção. Isso pode ser ilustrado pelo cenário pós-operação Mãos Limpas, na Itália, e pela recente divulgação de diversas operações no Brasil envolvendo atos de corrupção supostamente praticados no combate à pandemia de Covid-19.

A Lava Jato certamente ajudou a desnudar, ainda que parcialmente, a relação promíscua entre atores do sistema político e agentes econômicos e como essa relação apaga as linhas divisórias entre patrimônio público e privado. A solução do problema, todavia, passa muito mais pela identificação de causas e fatores de incentivo à corrupção, dentro de um debate público mais amplo sobre reforma política e mudanças institucionais estruturais, que pela persecução criminal, que ganhou uma indevida centralidade diante do protagonismo da operação nos últimos anos, cujos atos foram reportados pela mídia praticamente sem ressalvas, ao menos até o início da Vaza Jato.

Aqui podemos extrair uma outra lição. O apelo público de uma investigação criminal sobre corrupção de alto escalão não pode transformar os veículos da mídia em porta-vozes de delegados, promotores e juízes, como ocorreu. O sistema de Justiça brasileiro está sujeito a poucos mecanismos de controle, e a natureza hermética do vocabulário jurídico dificulta uma real compreensão de suas decisões pela sociedade.

Por isso, o papel da mídia é de evidente relevância. Sua função informativa deve conviver com um jornalismo crítico e investigativo que também exerça seu papel de fiscalizar a atuação dos agentes estatais envolvidos no combate à corrupção.

O fim nada glamoroso da Lava Jato deixa ainda um ensinamento sobre os perigos de se ignorar a fronteira entre Justiça e política. As atribuições institucionais da primeira não incluem o uso da privilegiada posição de poder de seus atores para influenciar o cenário eleitoral, ainda que movidos por alegadas boas intenções.

A Lava Jato burlou regras jurídicas e, com isso, contribuiu para a ascensão da extrema direita ao poder e para desequilibrar a competitividade dos partidos políticos. Também deve ser destacado que a credibilidade do sistema de Justiça depende de uma atuação que siga à risca as regras e os procedimentos que delimitam o campo de ação da atividade punitiva do Estado.

A liberdade de todos só estará assegurada se o Estado agir dentro dos marcos legais. O descumprimento dessas regras fragiliza a democracia não só por materializar violação ao Estado de Direito, mas também deslegitima essa atividade estatal perante a sociedade. Talvez a principal lição deixada pela Lava Jato seja nos mostrar que a Justiça não é palco para se fazer política.

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