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Christian Dunker

Freud explica Bolsonaro na pandemia com conceito de pulsão de morte

No bolsonarismo, menções a tamanho do pênis e homossexualidade têm relação com gosto por armas

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Christian Dunker

Psicanalista e professor titular do Instituto de Psicologia da USP, é autor, entre outros livros, de "Uma Biografia da Depressão" (Planeta) e "Mal-estar, Sofrimento e Sintoma: uma Psicopatologia do Brasil entre Muros" (Boitempo)

[RESUMO]Psicanalista propõe uma leitura do quadro político brasileiro a partir do conceito introduzido por Freud um século atrás. Reação do governo Bolsonaro à pandemia traz a marca de um irracionalismo destrutivo composto de negacionismo delirante, indiferença à dor, retórica paranoica e bravatas de virilidade.

De todos os conceitos propostos por Freud, a pulsão de morte é certamente o mais controverso. Escolas inteiras de psicanálise simplesmente o recusam, pelos mais variados argumentos: paradoxo biológico, contradição antropológica ou expressão biográfica mal-analisada.

A introdução da hipótese da pulsão de morte, no final da obra freudiana, colocou em pé de igualdade sexualidade e hostilidade. Agora, o conflito não é mais entre desejo e autoconservação, mas entre Eros (amor, libido e união) e Tânatos (destruição, agressividade e desunião).

A hipótese freudiana mais especulativa consistiu em dizer que a vida é um parêntesis entre dois estados inorgânicos. Haveria uma tendência de retorno ao estado anterior, que explicaria o aparentemente gosto irracional do humano pela repetição, mesmo quando isso implica dor, desprazer e morte.

Ilustração - Alexandre Teles

Passados cem anos da proposição de Freud, notamos certas semelhanças salientes entre os motivos para introduzir essa hipótese e os descaminhos do governo Bolsonaro, que aparece, para muitos observadores, como errático e contrário a princípios elementares da razão e da ciência, mas também autocontraditório e destrutivo diante de objetivos políticos elementares concernentes à autoconservação do poder.

A pulsão de morte foi introduzida em 1920, em “Além do Princípio do Prazer”, quando a Europa fazia o balanço da Primeira Guerra Mundial, reconhecendo nela uma nova forma de matar. Mais impessoal e industrial, a tecnologia da morte é inflexão negativa e resultado dos próprios progressos da razão.

No plano clínico, a pulsão de morte seria justificada por certos efeitos repetitivos de experiências traumáticas, nos quais, em vez de esquecer o que se passou, o paciente não consegue parar de lembrar e reexperimentar vividamente os sinais de angústia, reencenando assim o pior. Observando que somos todos em alguma medida traumatizados, isso representaria uma força permanente para não abandonar nossos sintomas.

Descendo ainda mais ao nível do desenvolvimento da criança, a pulsão de morte explicaria por que uma parte substancial de nossa cultura, de nosso brincar e de nossos laços sociais dependem de uma certa administração da agressividade e, portanto, da contenção, mas também da participação de nosso gosto por destruir.

A epidemia de gripe espanhola de 1918, que levou uma das filhas de Freud, e o seu diagnóstico de câncer na mandíbula às vezes são usados para criticar a hipótese de pulsão de morte, reduzindo-a ao pessimismo pessoal de seu criador.

Ainda que os termos sejam aproximativos, a emergência do bolsonarismo e, particularmente, sua reação à pandemia de Covid-19, sempre esteve ligada ao trauma —seja o trauma da ditadura militar, com o qual há uma identificação transparente, seja o trauma representado pelo governo Lula, seja o retorno do perigo comunista, estamos sempre na lógica da repetição sem elaboração.

Uma aplicação inovadora da hipótese da pulsão de morte é a análise de grupos e massas em que surgem identificações regressivas, psíquica e cognitivamente, originando uma cultura da pulsão de morte. Orientando a agressividade para o outro, instilando fantasias paranoicas, o funcionamento em massa faz os indivíduos demitirem-se de seus próprios interesses e desejos em troca de acolhimento contra o desamparo, que é um estado psíquico decisivo para convocar a pulsão de morte ou para defleti-la.

As duas massas artificiais em que Freud exemplifica esse funcionamento são a igreja e o Exército. Nestes casos, o manejo da relação entre o eu e o eu ideal, a fraternidade constituída em relação ao líder, substituto do pai, tomado como objeto simultaneamente libidinal e agressivo, exigem a criação e a recriação de inimigos externos e internos.

Chegamos assim a uma curiosa proximidade com duas instâncias mobilizadas pela prática de governo bolsonarista, militar e religiosa, em retórica paranoica de campanha, depois transformada em método de administração, baseado na produção de inimigos e milícias da alma.

Outra função teórica da pulsão de morte é explicar por que muitas pessoas sentem angústia, sem que nada justifique esse estado psíquico. Práticas de autopunição exploram o fato de que, na pulsão de morte, o delito satisfaz a culpa, ele não a cria. Essa foi a estratégia daqueles que, pressentindo a indeterminação no início do governo Dilma, fizeram emergir a retórica da culpa, condensando traumas e lutos nacionais malreconhecidos e elaborados: escravidão, corrupção, desigualdade e privilégio.

Contudo, o que poderia ser objeto e alavanca de transformação, do ponto de vista da pulsão de vida e da simbolização, pode se reverter em repetição sem recordação nem elaboração: tortura, violência, menosprezo e retomada de privilégios ameaçados.

A pulsão de morte não é sinônimo de maldade ou crueldade. Ela se torna perigosa apenas quando é separada, demasiadamente, das pulsões de vida, em uma desfusão que mobiliza processos como idealização, cisão, projeção e narcisismo das pequenas diferenças. Quando idealizamos alguém, como um mito dotado de poderes excepcionais, isso incita a divisão —que predica bons e maus— entre nós e eles.

Uma segunda volta da pulsão de morte ocorre quando depositamos no outro aquilo que não conseguimos admitir em nós mesmos. A projeção do mal no outro, sua punição ou cancelamento, traz um agradável sentimento de purificação. Essa desmistura gera afetos de ódio e crueldade, vividos como ressentimento, ou seja, referidos a afetos passados.

Finalmente, quando substituímos as grandes diferenças, trazidas pela realidade e pelo real, pelas pequenas diferenças, de nosso grupo narcísico, eventualmente digital, fecha-se o ciclo que une a pulsão de morte com o negacionismo delirante. Neste sentido, o vírus não pode ser real, letal e natural, pois isso afeta a função paranoica, o lugar do mito protetor. O fechamento desse ciclo leva à redução do tamanho do mundo à extensão de nosso espelhamento.

Isso nos ajuda a entender por que a política externa do bolsonarismo parece basear-se em uma identificação pessoal com Trump, na redução de nossas pretensões estratégicas e na fetichização de nossa imagem como baluarte imaginário de resistência contra potências comunistas como... a Argentina.

Neste ponto, é preciso registrar um detalhe importante: para que a morte não se torne um temor e para que a vida valha pouco, é preciso a sexualização permanente do discurso em torno das relações de dominação e obediência. Para Wilhelm Reich, em “Psicologia de Massas do Fascismo” (1933), isso explicaria por que os regimes totalitários precisam perseguir minorias e práticas sexuais. Elas são eleitas símbolos do “excesso de prazer”, que lhes teria sido roubado pelo grupo inimigo.

Brincadeiras em torno da homossexualidade, “golden shower”, palavrões, bravatas de virilidade, ilações sobre o tamanho do pênis alheio não são apenas traços da loucura do personagem, mas condição estrutural para que aceitemos a trivialização do acesso a armas. Aquilo que deveria ser percebido como um perigo para a própria pessoa é lido como falo potente, signo de narcisismo exibicionista e virilidade imaginariamente protetiva.

A pulsão de morte coliga forças antissociais como egoísmo dos interesses, moral da sobrevivência, destrato com a palavra, indiferença ao luto e brutalização contra os “fracos”.

Chegamos assim ao enfrentamento da pandemia de Covid-19 pelo bolsonarismo como outra grande aplicação do conceito de pulsão de morte, ou seja, como uma ferramenta para entender por que o aumento do sofrimento não incita em nós um movimento de transformação. Isso ocorre porque, no fundo de todo sintoma, há uma paradoxal forma de satisfação.

Aqui, o circuito da pulsão de morte acopla o sadismo do supereu com o masoquismo do eu. Quando isso ocorre, a vulnerabilidade do outro não gera em nós solidariedade e empatia, mas ódio e desprezo —como se aquele estado de miséria e dependência do outro incitasse um reconhecimento traumático, do qual queremos imediatamente fugir, ou como se cada um que não soube se salvar fosse um fraco pedindo por seu próprio fim.

A separação entre economia e saúde, com a qual o bolsonarismo enfrentou a crise sanitária, surge como um ótimo exemplo da dissociação invertida entre pulsão de morte e pulsão de vida, com o agravante cruel de que a vida está do lado da economia, não do corpo real das pessoas.

Temos então a necropolítica tornada oposta à biopolítica. Nada poderia exemplificar melhor os perigos da dissociação entre pulsão de morte e pulsão de vida. A indiferença diante da perda de vidas é mitigada por números, curvas e interesses.

Assim, passamos do nível tácito, pelo qual um grupo se organiza para eliminar outro, para o nível explícito em que “deixar morrer” gera uma satisfação sádica nos sobreviventes —sobreviventes que, a cada vez, confirmam ser especiais, protegidos por uma força excepcional e delirantemente organizada.

A pulsão de morte desperta a tentação política de começar tudo do zero, negar ao passado qualquer reparação ou dignidade, com exceção do passado que foi ele mesmo negação e destruição. A pulsão está além do princípio do prazer, porque está além da regra utilitarista de otimizar a relação entre meios e fins. Por isso, aparecerá como irracional e despropositada.

Uma verdadeira política pública, seja ela de Estado ou de governo, depende de um compromisso entre Eros e Tânatos, isto é, uma renúncia de satisfação imediata em troca de resultados futuros na realidade, combinada com a força coercitiva do superego.

Quando não conseguimos firmar planos de ação, como em torno da compra de vacinas ou de campanhas sanitárias, porque isso é sentido como limitação de liberdade, ou quando encarnamos o supereu como universalização obscena de nossa própria moralidade, o sacrifício deixa de ser um meio para um fim e passa a ser objeto de sadismo ou masoquismo.

A pulsão de morte, como sucedâneo do conceito lacaniano de gozo, incide no ponto em que o uso se transforma em abuso. Consequentemente, é o abuso de poder e a impotência da autoridade que caracterizam o discurso do bolsonarismo.

Aqueles que se acostumaram com um certo cinismo na distribuição de funções entre moral e economia estão agora surpresos porque a ala ideológico-militar realmente governa. Não há compromisso com reformas, nem com a economia, nem com promessas de campanha, nem com o próprio ministro da Economia, porque o compromisso é uma figura de composição. Ela envolve negociação, troca e mediação. Isso caracterizaria a política como mistura entre exigências da pulsão de morte e pulsão de vida.

Freud descrevia a tarefa do ego como o condutor de um cavalo, dotado de forças muito superiores às suas (o id), tendo que se conduzir entre os percalços e os caminhos da realidade e, ao mesmo tempo, livrar-se de abelhas que representam sua consciência punitiva (o supereu).

O governo Bolsonaro assemelha-se à perda da unidade desse conjunto e à ação dissociada entre Eros e Tânatos: as abelhas picam todos os que se aproximam, os cavalos andam cada qual para o lado que bem entendem, o ego passa o tempo a adular-se diante do espelho de suas multidões ignaras. Enquanto isso, a realidade da Covid-19 pisa em cima de todos nós.

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