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Eduardo Reina

Villas Bôas tenta apagar história ao negar sequestro de crianças na ditadura

Jornalista rebate críticas de ex-chefe do Exército ao livro 'Cativeiro sem Fim'

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Eduardo Reina

Jornalista e autor de 'Cativeiro sem fim' (ed. Alameda) e 'Depois da Rua Tutoia' (11 editora), entre outros

[RESUMO] Autor do livro “Cativeiro sem Fim” contesta crítica do general Eduardo Villas Bôas, ex-comandante do Exército, de que falta isenção e verossimilhança ao trabalho. Para o jornalista, tentativa de refutar a pesquisa, a respeito de sequestros de crianças e adolescentes por militares nos anos 1960 e 1970 no Brasil, explicita o medo da verdade e a intenção de escrever uma narrativa idealizada sobre o período militar.

Pela primeira vez desde que lancei “Cativeiro sem Fim” (ed. Alameda), em 2019, um integrante do Exército comenta a denúncia feita no livro-reportagem, que conta a história de 19 brasileiros e brasileiras, filhos de militantes políticos ou simpatizantes da oposição, que foram sequestrados pelos militares nas décadas de 1960 e 1970 no Brasil.

O general da reserva Eduardo Villas Bôas, em entrevista ao professor Celso Castro publicada no recém-lançado livro “General Villas Bôas – Conversa com o Comandante”, dispara contra a reportagem e expõe claramente todo o esforço das forças militares em direcionar a construção da história do Brasil.

Ele ataca as iniciativas que contribuem para o esclarecimento de episódios escondidos durante décadas, como o sequestro de bebês e crianças pelos militares. Deixa às claras uma prática negacionista e obscura do pensamento de parte dos militares que outrora participaram dos movimentos da ditadura e hoje estão ligados ao poder.

No capítulo 10, o general, que comandou o Exército de 2014 a 2019, critica as políticas de memória, verdade e justiça que ganharam corpo nos últimos anos. No parágrafo que tece comentários sobre o livro “Cativeiro sem Fim”, também revela seu preconceito quanto ao trabalho de jornalistas, pesquisadores, historiadores, antropólogos e de entidades que trazem à tona as crueldades praticadas pelos militares durante a ditadura, fatos que dormiam em sono profundo provocado pela ação e construção de narrativas pelas Forças Armadas.

Esse direcionamento possibilitou a elaboração da história sob o prisma militar, sem diversificar as fontes de informações.

“Recentemente, alguém ligado aos direitos humanos trouxe à tona um tópico sobre o qual nunca ouvi falar, de que cento e tantas crianças teriam sido sequestradas e afastadas dos pais. Essa e outras narrativas, a exemplo de um suposto massacre de índios, na abertura da BR-174, que liga Manaus a Boa Vista, carecem de verossimilhança e contribuem para a falta de isenção na conclusão das apurações. Como você disse, adquirem um caráter de ajuste histórico”, afirmou.

Villas Bôas quer estimular a dúvida nos brasileiros a respeito da verossimilhança das denúncias, apontando suposta “falta de isenção” do livro. Ele se esquece, contudo, de que todo trabalho de pesquisa segue metodologias científicas, e o mesmo se deu na apuração dos fatos denunciados em “Cativeiro sem Fim”.

Gostaria de obter uma explicação de Villas Bôas sobre o que chama de “falta de isenção na conclusão das apurações”. Estão relatadas no livro histórias de 19 pessoas que tiveram suas vidas totalmente transformadas pelo crime de sequestro. Foram retiradas do meio de suas famílias biológicas, levadas para longe dos locais de nascimento e convívio familiar.

Tiveram suas identidades adulteradas. Ganharam documentos falsos obtidos junto a repartições públicas. Tudo isso ocorreu com anuência de uma cadeia de comando militar, seguida pela complacência de funcionários públicos, de cartórios, de hospitais, empresários e outros cidadãos.

No livro agrupei depoimentos em primeira pessoa dessas vítimas da ditadura que ficaram invisibilizadas por meio século. O sequestro foi uma decisão de Estado. Não há discurso que possa justificar a barbárie cometida contra esses brasileiros, que hoje procuram por seus pais biológicos.

Das 19 vítimas, 11 eram ligadas à Guerrilha do Araguaia. São filhos de guerrilheiros com camponesas locais, filhos de agricultores que cooperaram com a guerrilha e até crianças sequestradas por engano pelos militares durante o conflito. Além disso, novos casos surgiram a partir do lançamento da obra, objetos agora de novas apurações.

Villas Bôas comenta também que a divulgação desses casos “adquire um caráter de ajuste histórico”.
Garanto que a exposição dessas duras histórias de vida nada tem de revanchismo ou se precipita ao sensacionalismo histórico. Todos os relatos seguem os mais qualificados preceitos de pesquisa científica.

Passaram por duros crivos de apuração. Todos os depoimentos, fatos e documentos obtidos —vejam bem, documentos— foram checados e rechecados. A busca de mais de uma fonte de informação garantiu isenção à narrativa que caracteriza o caráter histórico-científico da reportagem investigativa.

O livro não faz apologia à ditadura, narrativa que as Forças Armadas tentam construir desde 1964. Possui, contudo, a devida isenção para mostrar histórias de brasileiros e brasileiras invisibilizados à força. Não tenta impor uma versão sobre o passado. Utiliza várias fontes de informação para expor esse crime.

Foram ouvidos vários lados envolvidos, inclusive as Forças Armadas, que preferiram tergiversar e não responder diretamente aos questionamentos deste repórter.

Todos os relatos estão recheados de verdade, de dor. Mostram a violência por que passaram essas vítimas de sequestro quando bebês e crianças. Expõem uma face cruel e sanguinária dos militares que participaram do golpe de 1964 no Brasil. Ajudam a construir a memória brasileira em todos matizes, sem preconceito ou direcionamento. Isso sim é verossimilhança.

O general Villas Bôas vai além na sua análise de informações que diz desconhecer. Antes de falar sobre “Cativeiro sem Fim”, ele é bem claro. Quer que as histórias que por ventura ainda careçam de ser narradas sejam retomadas nas próximas gerações. “Temos esperança de que essas questões fiquem para serem retomadas com maior isenção quando as gerações que os viveram já tenham passado”, afirmou.

Isso sim leva ao registro inverossímil dos fatos da ditadura. É como matar as vítimas pela segunda vez. Pergunto: qual a dificuldade em aceitar hoje o relato de vítimas vivas da ditadura?

Esperar que essas vítimas não estejam mais entre nós para só então divulgar suas histórias revela muito medo de que a verdade apareça. Explicita que o projeto de construção de narrativas sobre a ditadura desencadeado pelas forças militares é manco, baseado somente em fontes que não podem mais contar sua parte na história. Isso sim é direcionamento, falta de isenção.

“Cativeiro sem Fim” mostra uma visão mais complexa da ditadura. Obscura e suja. E dá a partida para que novos fatos e personagens, outrora escondidos, ganhem vida e revelem suas histórias. Está totalmente baseado em fatos reais, em personagens de carne e osso. Um trabalho científico.

A verdade sempre aparece. E incomoda os que têm culpa e cometeram crimes. Contar a verdade é qualificar a democracia.

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