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Alexandre Benoit

Cidades precisam de ação emergencial para evitar colapso urbanístico

Pandemia torna urgente combate à especulação imobiliária e ocupação de imóveis abandonados

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Prédios de escritórios da av. Faria Lima, em São Paulo, refletidos em fachada de vidro  Eduardo Knapp - 24.abr.20/Folhapress

Alexandre Benoit

Arquiteto-urbanista formado pela FAU-USP, é professor associado da Escola da Cidade e pesquisador no GHIPARQ FEC-Unicamp na área de arquitetura moderna brasileira

[RESUMO] Autor sustenta que é preciso ação emergencial para combinar combate à especulação imobiliária, estímulo a fontes renováveis de energia e integração da natureza às cidades no mundo pós-pandemia. Será necessário mais do que nunca reorientar a produção do espaço urbano para o interesse coletivo.

Everybody knows that our cities
Were built to be destroyed

Caetano Veloso, “Maria Bethânia”

Médicos britânicos acreditam que o real impacto da Covid-19 na saúde mental das pessoas ainda não foi dimensionado e poderá se estender por anos, similar em escala e proporção ao que representou a Segunda Guerra Mundial.

Do ponto de vista econômico, já se sabe que os mais pobres serão os mais severamente atingidos. Fala-se também sobre as mudanças na conduta social e na organização do trabalho. Invariavelmente, tais mudanças convergem para o espaço urbano. As cidades ao redor do globo nunca mais serão as mesmas.

A Europa foi onde os governos locais primeiro perceberam que, para enfrentar os efeitos da Covid-19, além de medidas sanitárias, de distanciamento social e de auxílio econômico, seria preciso intervir nas cidades e pensar em seu futuro.

Em Paris, a prefeitura, dirigida por Anne Hidalgo, acelerou a realização da “cidade de 15 minutos”, preconizando deslocamentos de um quarto de hora, em média, ditados por curtos trajetos, a pé ou em bicicleta, e aliados ao transporte público e a toda uma cadeia verde.

Barcelona, com outra mulher à frente do governo, Ada Colau, vem desenvolvendo um ambicioso plano para banir o automóvel individual do centro e mudar a circulação geral em dez anos —reivindica-se a mesma postura que levou o engenheiro Ildefons Cerdà a conter os danos da cidade industrial no século 19.

Conforme observa a arquiteta Olga Subirós em entrevista ao jornal The Guardian, “a Covid mudou o debate sobre o espaço público”, pois agora “não se trata apenas do solo sob nossos pés, mas do espaço ao nosso redor e do ar que respiramos”.

Pensar segundo o raciocínio de Subirós, em metros cúbicos e não mais metros quadrados, relaciona o direito à cidade a uma inevitável reestruturação produtiva com foco em fontes renováveis de energia e redução de poluentes. Na Ásia, esse debate ganha força, a exemplo do Japão, que pretende suspender a venda de novos veículos a gasolina até meados da década de 2030. Nos EUA, são insistentes os apelos por um Green New Deal pós-pandêmico.

Por mais que o futuro das cidades aponte para um caminho sustentável, com áreas livres e favorável ao pedestre, o solo urbano continua sendo um campo em disputa. A moradia, vista pelo capital como mercadoria, é assegurada pelas Nações Unidas como um direito inalienável de todos. Por isso, ela se torna crucial neste momento.

Em Barcelona, há um forte movimento contra o aumento dos aluguéis. De início, a pandemia acelerou despejos e reajustes abusivos, ao passo que o público para aluguéis de temporada desapareceu.

Essa situação vem gerando iniciativas diversas, como a campanha Despejo Zero, cuja adesão abarcou ativistas de cidades como Barcelona, Joanesburgo, Nova York e São Paulo. Até o sedutor modelo da cidade de 15 minutos foi questionado sobre seu caráter elitista —um quarto de hora para quem?

De modo análogo ao debate no campo econômico sobre a taxação de grandes fortunas, surgem propostas que combatem a especulação do solo urbano. Em Berlim, o governo local congelou o preço dos aluguéis em 2019 —a medida, no entanto, foi suspensa neste mês pela Justiça.

Em Lisboa, a prefeitura lançou um programa para converter em moradia social as unidades antes destinadas ao turismo. O município pagaria metade do valor de mercado do aluguel, firmando contratos de cinco anos, renováveis, oferecendo ao proprietário, em troca de um ganho menor, a estabilidade que hoje ele não tem.

No filme “Roma de Fellini”, confronta-se a cidade antiga com a moderna por meio de uma cena de engarrafamento, com o Coliseu ao fundo, como se o edifício de 70 d.C. fosse asfixiado pelos automóveis fumacentos e ruidosos.

Em outra cena, as escavações para o metrô são interrompidas diante da descoberta de um afresco antigo que se desfaz tão logo entra em contato com o ar poluído. Embora seja de 1972, o filme apresenta um atualíssimo discurso acerca do que os europeus buscam erradicar na vida urbana.

Enquanto as cidades do Velho Mundo trazem marcas de séculos e séculos de intervenções, formando um tecido consolidado e consideravelmente equilibrado, as cidades brasileiras, como São Paulo, foram erguidas em questão de décadas, produtos do capitalismo tardio. Não restam reminiscências da “primitiva” povoação jesuítica, tampouco das monumentais ocas.

Ao contrário de Roma, quase tudo foi apagado, inclusive parte da geografia e da natureza. Por aqui, a cidade como bem comum soa uma ideia fora do lugar.

Por outro lado, se pensarmos que hoje o país lidera os índices sombrios da pandemia e que as consequências poderão se estender por anos, o espaço de nossas metrópoles verá a desigualdade, a violência e os demais problemas se aprofundarem ainda mais, levando a um eventual colapso urbanístico —caos que, aliás, já se anuncia nas periferias e zonas mais carentes.

É desalentador que a dimensão urbana da crise tenha sido ignorada entre nós. São Paulo, uma das poucas exceções, apostou na retirada de vagas de automóveis para ampliar áreas de consumo ao ar livre em bares e restaurantes da região central, aos moldes do que fez Nova York.

A iniciativa é como uma gota no oceano. Perde-se a chance de relacioná-la a outras, de grande impacto, como o fechamento definitivo do elevado João Goulart, o Minhocão, e a criação do parque do Bexiga, no terreno contíguo ao Teatro Oficina. Com essas medidas, a prefeitura sinalizaria a multiplicação de “metros cúbicos” livres e públicos em uma região simbólica, altamente adensada e com vocação democrática.

Deveríamos olhar também para as nossas ruínas. Uma delas é a natureza. Se já não é possível sonhar com o bucólico Tietê da vila de Piratininga, podemos compreender o rio como uma vasta infraestrutura latente, que pode oferecer, como demonstra o grupo Metrópole Fluvial, da FAU-USP, coordenado pelo arquiteto e professor Alexandre Delijaicov, uma interligação metropolitana por meio de uma complexa rede de transporte de pessoas e de carga, além de, no futuro, permitir a fruição de suas margens.

Outra ruína paulistana são os imóveis vazios, uma infraestrutura urbana que, como os rios, deteriora-se ano após ano. Antes da pandemia, estimava-se em cerca de 300 mil o número deles, concentrados em regiões centrais, cifra que bastaria para erradicar o déficit habitacional da cidade. Com a crescente implementação do trabalho remoto e o consequente abandono de andares inteiros de escritórios, esse número deve aumentar.

Se 25% dos imóveis fechados fossem de algum modo ativados, fazendo valer a função social da propriedade, como prevê a nossa Constituição, teríamos o maior programa habitacional já feito na cidade. Seria uma medida em caráter excepcional, que funcionaria como poderosa alavanca de desenvolvimento urbano.

Diversas variantes estariam colocadas para gerenciar e reformar essas unidades, desde o aluguel social, como em Lisboa, a desapropriação, como em Barcelona, ou ainda formas híbridas que contassem com a iniciativa privada e subsídios aos inquilinos, abrangendo faixas de renda diversas.

Seu impacto direto no tecido urbano e nos deslocamentos diários, como em metas de uma cidade sustentável e menos desigual, seria dificilmente mensurável, já que não se trataria apenas de mais imóveis disponíveis, mas sim de uma mudança no adensamento de regiões inteiras do tecido consolidado.

Do ponto de vista econômico, o retorno certamente não seria desprezível, potencializando a construção civil, um dos setores da indústria que não pararam durante a pandemia. Todavia, em vez de reafirmar um modelo de cidade esgotado, o dos novos condomínios verticais e shopping centers, outros caminhos seriam descobertos. Como diz a dupla francesa de arquitetos Lacaton e Vassal, laureada com o Pritzker neste ano, não existem lugares vazios na cidade —é preciso reutilizar e transformar.

A crise deflagrada pelo vírus se torna econômica, social, psicológica e, por fim, urbana, acelerando a revisão de tudo o que moldou as cidades no século passado. Uma ação emergencial significa, em todo o mundo, dirigir a produção do espaço urbano para o real interesse coletivo.

Olhar para as nossas ruínas, que são muitas —citamos apenas algumas neste texto—, poderia representar uma ação à altura dos desafios, impactando positivamente o modo de vida de milhões e, assim, a economia do país e a recuperação dos recursos naturais, tão fundamentais.

Do contrário, de acampamentos improvisados, nossas cidades correm o sério risco de vir a ser quimeras de uma exaurida civilização tropical.

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