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Luiz Felipe Panelli

Nova direita não deve aceitar ser chamada de neoliberal

Intelectuais de esquerda tentam impor pecha para desacreditar nascente movimento de direita no Brasil

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Luiz Felipe Panelli

Doutor em direito do Estado pela PUC-SP e membro do MBL (Movimento Brasil Livre)

[RESUMO] Em réplica a ensaio de Christian Lynch, autor questiona a distinção entre liberais democratas e neoliberais no pensamento brasileiro. O conceito de neoliberalismo é falso e foi criado pela esquerda para criticar seus adversários, diz, e a direita atual é infinitamente mais diversa que o bolsonarismo.

O texto do professor Christian Lynch na Ilustríssima de 21 de março é um exemplo de análise técnica bem feita. De fato, a emergência do governo Bolsonaro —primeiro governo declaradamente de direita desde Collor— trouxe à sociedade brasileira algumas indagações que, pela primeira vez em décadas, saíram do campo meramente teórico e doutrinário.

A respeito desse ressurgimento da direita (ou o surgimento de uma “nova direita”), cumpre lembrarmos que as eleições de 2018 tiveram a virtude de trazer à baila a possibilidade de um embate real entre o campo da esquerda, com suas diferentes gradações (e nelas incluímos o PSDB) e o campo da direita, que ainda se mostra doutrinariamente confuso e carente de lideranças autênticas.

Conforme bem identificou o professor Lynch em seu artigo, a aventura bolsonarista, que se provou absolutamente desastrosa em todos os aspectos, é resultado de uma aliança do pensamento liberal com o autoritarismo tosco. Hoje, quando se percebe o fracasso da empreitada bolsonarista —fracasso contabilizado em elevado número de mortos, que é anunciado diariamente, para a angústia de todos— torna-se realmente necessário repensar o campo da direita.

Há, no entanto, alguns aspectos do texto que merecem uma contestação crítica. Sem a menor pretensão de fazer uma análise tão pormenorizada quanto a feita por Lynch, queremos expor algumas discordâncias com suas premissas e conclusões, a fim de contribuir com o debate.

O texto de Lynch distingue duas vertentes do que o pensamento brasileiro chama de liberalismo. Segundo tal concepção, uma das duas vertentes seria a dos liberais clássicos, que aliam um liberalismo no campo econômico (presumivelmente, liberdade de empreender, de trabalhar e poupar) com o liberalismo político, ou seja, instituições que garantam um funcionamento democrático da sociedade, sem concentração de poder e sem apelo ao populismo.

Outra corrente, mais nova e quase antagônica, dita neoliberal, dá atenção muito secundária à questão do liberalismo político, preocupando-se apenas com a livre circulação de capitais, mesmo que isso se dê às custas das liberdade políticas, de uma aliança desastrosa com o populismo e da erosão das instituições.

Primeiramente, há que se questionar a premissa da cisão do pensamento liberal em “clássico” e “neoliberal”. Acreditamos que o chamado neoliberalismo é um conceito falso, criado pela esquerda para criticar de uma só vez todos os seus adversários, que foram forçados a se unir para combatê-la devido à sua hegemonia no período do pós-guerra.

De fato, a Guerra Fria trouxe a ascensão de uma ideologia social-democrata nos países europeus que se mantiveram no eixo ocidental. Esta social-democracia se caracterizava pela liberdade política e econômica, porém com forte presença do Estado no funcionamento econômico a fim de garantir pleno emprego e serviços sociais a todos. Tal esquema tinha por objetivo a pacificação social, impedindo novas convulsões que poderiam dar azo ao radicalismo.

As crises da década de 1970, que incluíram elevação do preço do petróleo, diminuição do poder americano e, de uma maneira geral, um mal-estar econômico, geraram uma onda de contestação do modelo social-democrata, que foi em boa parte desmantelado na década de 1980.

Foi nesta época que a esquerda passou a criticar os chamados neoliberais nos Estados Unidos, que se diferenciavam dos liberais "clássicos" por terem ênfase religiosa (cristinanismo protestante, de vertente neopentecostal) e pregarem uma pauta de costumes conservadora.

Note-se, porém, que o que a esquerda americana chamou de neoliberais era uma aliança de setores antiesquerdistas, e não uma ideologia totalmente coesa. Dentro desta aliança (forjada no seio do partido republicano) estão os liberais “clássicos”, que defendem uma política da prudência, um Estado pequeno e liberdade individual.

Estão também conservadores e religiosos, assim como ideólogos de uma expansão unilateral do poder americano; estes influenciaram o governo de George W. Bush, gerando arrepio nos conservadores “clássicos”. Como toda aliança, reúne ideologias diferentes, com a finalidade de combater outra, mais poderosa, que era a social-democracia e o progressismo.

No campo econômico, tal aliança objetivou impedir uma volta às políticas de bem-estar social, que eram vistas como geradoras de letargia econômica, desemprego e fomentadoras de uma grande e parasitária burocracia.

Assim, contestamos a afirmação feita pelo professor Christian Lynch de que o neoliberalismo (termo ardiloso em que cabe todos os que se opõem à esquerda) seria uma reação conservadora ao ambiente democrático, vendo socialismo onde há democracia. Acreditamos que tal afirmação, que também foi feita, sob diversa roupagem, por outros intelectuais de esquerda, destina-se a desacreditar o nascente movimento de direita no Brasil.

Contestamos também o artifício argumentativo de que a atual direita nada mais é que reflexo de um autoritarismo tosco, enquanto a velha direita, extinta, era formada por intelectuais comprometidos com a democracia.

Rejeitamos tal argumento como falso porque a direita atual é infinitamente mais diversa que o bolsonarismo e, em grande medida, o critica; ademais, a esquerda sempre desmereceu e menosprezou intelectuais da “antiga direita”, como Roberto Campos (chamado pejorativamente de “Bob Fields”) e Merquior (que foi até o fim menosprezado por intelectuais de esquerda).

Há, ainda, dois pontos fulcrais na peleja entre direita e esquerda no Brasil, que não constam do texto do professor Christian Lynch: em primeiro lugar, no Brasil —e na América Latina como um todo— as ideias do Ocidente não chegam em seu estado puro; no mais das vezes, são “filtradas” e adaptadas à nossa sociedade atrasada e intimamente atrelada à estrutura de Estado.

O “liberal” brasileiro muitas vezes era um empresário que demandava diversos favores do Estado e protecionismo a mais não poder para continuar operando sua indústria ou sua agricultura atrasada. Demorou um bom tempo até que a doutrina liberal pudesse se consolidar e se purificar do tropicalismo que a contaminou, e arriscamos dizer que tal processo ainda não se completou.

Em segundo lugar, a esquerda brasileira, desde o surgimento do PCB em 1922, sempre flertou com o autoritarismo e com o totalitarismo. Exemplos abundam: o PCB era um partido alinhado à ortodoxia soviética, o atual PC do B tinha em seu sítio eletrônico diversos documentos louvando ditaduras de esquerda, o PT sempre protegeu e elogiou regimes latinos extremamente autoritários e a esquerda acadêmica chegou a tornar-se caricata por seus ataques à democracia formal e defesa de regimes socialistas decadentes.

Diante da constante ameaça representada pela esquerda à democracia, os liberais brasileiros aceitaram, em alguns momentos, uma aliança diabólica com forças autoritárias, como ocorreu em 1964. Os resultados sempre foram ruins: ditadura, perda de direitos, violação de direitos humanos, perda de liberdade e, paradoxalmente, perda de liberdade econômica, por meio de uma crescente presença do Estado na economia.

Quem ignora que boa parte da estrutura estatal tão aguerridamente defendida pela esquerda atual contra os “privatistas” surgiu no Estado Novo e na ditadura militar?

A nova direita brasileira deve caracterizar-se como uma força profundamente democrática, distanciando-se definitivamente da catástrofe bolsonarista e de qualquer autoritarismo. Ao fazê-lo, porém, é necessário lembrar que a esquerda brasileira sempre atentou contra o regime democrático. Justamente por isso, não convém à nova direita aceitar a pecha de neoliberal que a esquerda quer lhe infligir.

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