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Érica Peçanha

Maior presença de alunos da periferia promove renovação de valores da USP

Plataforma busca dar visibilidade às ações da universidade sobre espaços periféricos

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Érica Peçanha

Antropóloga e pesquisadora do Instituto de Estudos Avançados da USP, é coordenadora da plataforma Conexões USP-Periferias e organizadora do livro "Narrativas Periféricas: entre Pontes, Conexões e Saberes Plurais"

[RESUMO] Conexões USP-Periferias, plataforma desenvolvida em parceria entre o Itaú Cultural e o Instituto de Estudos Avançados da USP, será lançada nesta quinta-feira (27). A iniciativa joga luz sobre o vasto conhecimento produzido pela universidade a respeito das periferias e contribui para a compreensão da presença crescente de sujeitos periféricos no ensino superior, que promove a renovação de valores acadêmicos.

Periferia e universidade são termos em disputa no contemporâneo, e são passíveis de representações distintas, nem sempre positivas e muitas vezes controversas, que vão dos ataques às suas práticas, formas de sociabilidade e de produção de saberes à valorização de suas potências criativas e de inovação social.

Nesse jogo de representações, as periferias são comumente homogeneizadas e visibilizadas pela violência, restrição a direitos, precariedade de infraestrutura e serviços, ainda que nos últimos 30 anos tenham ocorrido fenômenos que diversificaram suas características urbanísticas e geopolíticas.

No processo de produção das cidades e de acúmulo de conhecimento sobre o urbano, por exemplo, as periferias têm merecido destaque também por suas formas particulares de organização social, associativismo, mobilização política e produção cultural —dos clubes de mães e comunidades eclesiais de base às rodas de samba e saraus literários.

A universidade, por sua vez, tornou-se a instituição emblemática do saber ocidental e do projeto racional-científico de modernidade —uma instituição que se constituiu para a formação das elites e classes dirigentes no Brasil, mas que tem assumido diferentes papéis e envolvimentos com a sociedade, a depender do contexto político, dos debates científicos e pedagógicos que a cercam e do jogo de forças entre os agentes que a produzem.

Basta um olhar para a universidade pública brasileira nas duas décadas mais recentes para se perceber como o debate e a efetivação de políticas afirmativas trouxeram à tona uma série de questões. Entre elas, a necessidade de reorganização da estrutura administrativo-institucional, a renovação de currículos e práticas de ensino, o incremento de ações de permanência estudantil e projetos científico-acadêmicos que busquem ser inclusivos para grupos historicamente marginalizados do acesso ao ensino superior.

Como a periferia e a universidade se encontram, para além dessas aproximações?

A plataforma Conexões USP-Periferias fornece algumas pistas para se pensar essa questão. Idealizada por Eliana Sousa Silva em sua atuação como catedrática e professora visitante da USP, tal iniciativa é desenvolvida no âmbito da Cátedra Olavo Setubal de Arte, Cultura e Ciência, uma parceria entre o Itaú Cultural e o Instituto de Estudos Avançados da USP.

A plataforma é resultante de um levantamento das ações de pesquisa, ensino e extensão uspianas com foco nas periferias e favelas, considerando-se as especificidades de cada área do saber e suas maneiras de se relacionar com as realidades empíricas e formulações teóricas em torno de territórios e sujeitos periféricos.

Há mais de 4.000 registros sistematizados até 2019, com destaque para a produção acadêmica (teses, dissertações e relatórios), que soma 3.474 dados e representa cerca de 84% do total. Além disso, há 336 disciplinas (de graduação e pós-graduação), 125 professores especialistas, 101 ações de extensão, 62 coletivos discentes e 35 grupos de pesquisa e estudo.

Pode-se considerar que essa base de dados joga luz a um acúmulo de conhecimentos e intervenções, o que reforça a centralidade da periferia como objeto de reflexão acadêmica, mesmo que essa reflexão coexista com um debate teórico em torno da pertinência do uso ou da capacidade interpretativa do próprio termo periferia para dar conta de alguns processos urbanos no cenário atual.

Ao mesmo tempo, o número de disciplinas e grupos de pesquisa aponta para a oferta de uma formação técnica que dialoga com os contextos periféricos e suas populações, seja a partir de um conjunto de referências bibliográficas que enfocam especificidades desses territórios e sujeitos, seja em atividades de campo que permitem o contato mais próximo com essas realidades.

Mais interessante ainda é pensar a presença de coletivos discentes nessa base de dados. Coletivos são um tipo de entidade estudantil recente na estrutura acadêmica e, de modo geral, constituem-se como espaços de acolhimento e discussão da experiência universitária na inter-relação com questões raciais, de classe, gênero e sexualidade.

No caso dessa plataforma, trata-se de coletivos protagonizados por sujeitos periféricos ou com atuação voltada para o combate às desigualdades que impactam a vida de estudantes negros, mulheres, LGBTQIA+ e moradores de periferias e favelas.

A correlação mais imediata para a existência de dezenas desses coletivos discentes na USP é o número expressivo de pobres e negros que chegaram ao ensino superior a partir de algumas políticas inclusivas e de ação afirmativa, ainda que realizadas bem depois de outras universidades públicas brasileiras.

Ao chegar, esses sujeitos trouxeram junto com seus corpos vivências e demandas que tensionam a universidade acerca dos auxílios oferecidos aos estudantes, seu currículo e perfil do quadro docente, suas práticas de ensino e formas de fazer pesquisa, entre outros aspectos.

É notório, para muitos, que os efeitos que essa presença periférica provoca —dentre eles, essa disputa em torno dos pilares universitários (ensino, pesquisa e extensão) e as gerações de profissionais de alta especialização que se formam no seio das classes populares— estão na base dos ataques em curso ao orçamento e à autonomia administrativa das universidades públicas.

No entanto, é patente, para tantos outros, que são as disputas provocadas pela democratização do acesso ao ensino superior que renovam valores, práticas e micropolíticas acadêmicas. Mais que isso, essa renovação (ainda que polêmica e não consolidada) é que aproxima a universidade brasileira de viradas epistemológicas que valorizam a condição de sujeitos sociais periféricos (em sentido amplo) na construção de referências conceituais e metodológicas distintas daquelas elaboradas por grandes centros de produção de conhecimento – vide a importância das chamadas feministas negras e de teóricos decoloniais para as ciências humanas e sociais, por exemplo.

Um dos pressupostos da plataforma Conexões USP-Periferias é o lugar que a universidade pública ocupa na legitimação de certas práticas, discursos e saberes ao transformá-los em temas de pesquisa e intervenção. Sendo assim, ao mesmo tempo que ela tem o papel de dar visibilidade às produções e ações da USP que contribuem para pensar a periferia sob diferentes perspectivas, também permite o acesso a dados qualificados que podem servir a interesses diversos.

Com lançamento marcado para esta quinta-feira (27), tal plataforma tem potencial para se tornar uma referência para estudiosos, moradores de periferias, ativistas sociais, artistas e formuladores de políticas públicas, embora não tenha a pretensão de alcançar a amplitude dos trabalhos desenvolvidos na USP ou de esgotar as possibilidades de devolutiva do conhecimento produzido sobre as periferias para elas próprias.

A plataforma tem, ainda, no seu embrião, a possibilidade de conectar o que/quem está dentro da USP (estudantes, funcionários, pesquisadores, entidades, recursos, repertórios teórico-metodológicos etc.) e o que/quem está fora (como o público não acadêmico e os saberes gerados pelas periferias sobre o seu território, sua população e até mesmo sobre a universidade). Mas também tem limites em realizar essa conexão que, certamente, são comuns a outros projetos acadêmicos.

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