Obsessão pela própria imagem na tela é efeito colateral do Zoom

Mulheres se cansam mais com videochamadas em razão de 'ansiedade do espelho'

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Teté Ribeiro

Jornalista, é autora de "Minhas Duas Meninas", "Divas Abandonadas" e dois guias de Nova York baseados na série "Sex and the City". Morou em Nova York, Califórnia e Washington entre 2000 e 2010

[RESUMO] Mais de um ano de pandemia e ainda não aprendemos a conviver bem com nossa imagem no quadradinho da tela. Estamos todos exaustos de nossos rostos e desse modelo de interação, que não dá sinais de ir embora tão cedo. Entre desligar a câmera e sumir dos encontros ou deixá-la ativada e olhar obsessivamente para si mesmo, qual a melhor opção?

A nova era das constantes reuniões por Zoom, Teams, Google Meet, Skype ou qualquer que seja o aplicativo usado fez com que todo o mundo passasse muito mais tempo em frente às câmeras do que em qualquer outro período da história. Essa mudança trouxe inúmeras consequências, boas e ruins. E uma sequela inesperada —a obsessão pela própria imagem.

Sim, ganha-se em produtividade ao se ficar mais em casa e menos no trânsito ou nos transportes coletivos. Estudo deste ano conduzido por pesquisadores das universidades Stanford, Instituto Tecnológico Autônomo do México e Hoover Institution com 30 mil trabalhadores norte-americanos concluiu que este ganho foi de 5% durante a pandemia, uma cifra economicamente relevante.

De quebra, o planeta sofre menos. Produzido pela BBC, narrado por David Attenborough e disponível na Apple TV, o documentário “O Ano em que a Terra Mudou” mostra que as águas do rio Ganges, na Índia, ficaram 80% mais limpas, a qualidade do ar em Los Angeles no primeiro ano de pandemia foi a maior em 40 anos e, na China, a emissão de gases tóxicos no ar caiu 50%.

Ilustração de homem abaixado olhando para a tela do seu celular, nela seu rosto refletido com proporções exageradas
Ilustração de Carolina Daffara

Atire a primeira pedra, porém, quem não passou mais tempo no último ano olhando mais para o próprio rosto do que para qualquer outra figura na tela. Até quem não presta muita atenção em fotografias de si mesmo —caso raro, mas há gente assim— relata uma quase impossibilidade de desviar do reflexo de sua face flutuando no monitor em reuniões de trabalho, de pais e professores, de aulas online.

Happy hours, aniversários e outras datas que passaram a ser festejadas em encontros por Zoom caíram totalmente em desuso, em grande parte porque é mais trabalhoso do que o mundo previa relaxar na companhia de outras pessoas quando a própria imagem está ali, exibida, em tempo real.

“A gente sempre se expôs muito, mas não sabia disso até começar a se ver diariamente nesses encontros online”, diz o psiquiatra Alexandre Saadeh, coordenador do ambulatório de identidade de gênero e orientação sexual do Instituto de Psiquiatria do HC. “E as pessoas reagem muito mais com expressões faciais numa reunião digital do que num encontro presencial, em que estão acostumadas a se controlar e não vão arregalar os olhos, coçar a cabeça, fazer uma careta.”

O Zoom não é um espelho normal, nem um espelho digital normal. A réplica que nos confronta nessas plataformas não é a mesma que vemos no banheiro toda manhã ou nas selfies que aprendemos a tirar, em que é possível projetar fantasias e autoilusões.

Não, no quadradinho do Zoom está uma pessoa diferente da que a gente achava que era. Que ri meio estranho, às vezes tem um olho mais aberto que o outro, mexe a cabeça como que concordando com coisas que no fundo não acha legal e deixa transparecer emoções que ficariam bem melhor guardadas.

Impossível deixar de prestar atenção, ou alguma coisa importante pode escapar —e aí está lá, no meio de todo o mundo.

“Esse é um fenômeno neuropsicológico. Nossa autopercepção visual é limitada, ninguém anda com um espelho na frente o tempo todo. A mesma coisa acontece quando a gente escuta a própria voz gravada, nunca é como a gente acha que é, mas é o que as pessoas escutam”, diz Saadeh.

“A gente não é tão bonito quanto gostaria, tão sensual quanto se imaginava e hoje a gente está lidando com o que o mundo já via. Hoje a gente tem noção da imagem que a gente passa”, completa o psiquiatra.

E como é cansativo ter a si mesmo ao alcance dos olhos o dia inteiro. Nem o mais narcisista dos seres humanos aguenta tanta exposição. Essa estranha exaustão se instalou nas nossas vidas como se fosse apenas mais uma consequência terrível da pandemia, mas pode ter mais a ver com nossos ombros, pescoços e rostos, a parte que normalmente aparece nas telas, do que poderíamos imaginar.

A exaustão 2020/2021 já tem até nome: “Zoom fatigue”, fadiga do Zoom. O termo surgiu logo no início da pandemia, foi tema de um TED Talk e ganhou definição psiquiátrica: “O cansaço, a preocupação ou o burnout associado com o uso excessivo de plataformas de comunicação”.

E, como que para ficar mais atual ainda, é, óbvio, pior para as mulheres. Uma pesquisa da Universidade Stanford, na Califórnia, mostrou que 13,8% das mulheres se sentem “extremamente” cansadas depois de uma videoconferência, contra apenas 5,5% dos homens. A culpa? A ansiedade do espelho.

Mas as mulheres não nascem aflitas com sua estampa. Muitas vieram a desenvolver essa agonia depois de entrar no mercado de trabalho. “A cultura empresarial vê a falta de cuidados de uma mulher com a aparência como um problema, mesmo que ela esteja rendendo o mesmo ou até mais do que rendia quando se arrumava para ir ao escritório”, me disse Fabro Steibel, diretor-executivo do ITS (Instituto de Tecnologia e Sociedade) e professor de inovação.

E, como as tarefas domésticas também são culturalmente uma atribuição mais imposta às mulheres, não basta uma blusinha bem passada, uma base e um batom para exibir uma boa imagem. O ambiente na tela, que mostra um pedaço da casa, também conta.

“Se o fundo da tela revelar que tem um monte de roupas jogadas em cima do sofá que está atrás, isso é lido como sinal de descuido”, diz Steibel.

O executivo também alerta para um possível exagero na quantidade de encontros digitais. “É um pouco por causa da lógica de controle dos chefes, ‘se eu te vejo trabalhando, você está trabalhando’.”

No instituto que dirige, no Rio de Janeiro, Steibel tentou dar exemplo para deixar sua equipe à vontade na frente da câmera. “Comecei a não me arrumar de propósito, deixava a barba sem fazer, usava qualquer roupa”, contou. Mas também distribuiu luminárias adequadas para toda a equipe, assim como mesa e cadeira para os funcionários que não tinham escritório montado em casa.

Além disso, adotou regras de etiqueta que, acredita, deviam ser aceitas por todas as pessoas e em todos os lugares em que o digital substituiu o presencial de uma hora para outra.

“Tem que ser totalmente aceitável a pessoa desligar a câmera quando quiser, ninguém precisa se arrumar para fazer uma reunião por Zoom, precisamos da voz, do ouvido e das ideias das pessoas, não das caras. Está todo o mundo em casa, se tem filhos, a criança tem que poder aparecer atrás, fazer barulho, dar um tchau. O cachorro tem que poder latir. Não faz mais sentido seguir a etiqueta de um escritório, essa não é mais a realidade.”

E um dia voltará a ser? Quando acabar a pandemia, ou quando as coisas melhorarem um pouco e houver mais gente vacinada, vamos nos livrar do fardo de ter nossas próprias imagens na nossa frente o dia inteiro? O psiquiatra e o executivo têm opiniões divergentes.

Diz Fabro Steibel: “Vai ficar tudo exatamente como é hoje. Como era antes não vai ser nunca mais, chance zero. Trabalhar remotamente veio para ficar”, ele prevê. Isso, contudo, não significa que teremos de aceitar nossa cara pixelizada para sempre. “Pode ser que a gente passe a usar mais áudio. O Clubhouse (rede social só de áudios), por exemplo, é muito interessante.”

Na visão do doutor Alexandre Saadeh, basta ver o que acontece no mundo inteiro para contrariar, em parte, a tese de Steibel. “Talvez algumas reuniões de trabalho, mais curtas, possam continuar acontecendo digitalmente. Mas o presencial vai voltar. A gente é animal, a gente precisa da interação.”

Se for assim, nossa autoimagem tem a chance de voltar a ser uma bem-vinda ilusão. Uma mistura daquelas caras que a gente treina na frente do espelho com as melhores fotos que já tirou na vida, aquelas que foram parar em porta-retratos pendurados na parede. E que não causam nenhum cansaço, só, talvez, certa nostalgia. E com ela lidamos melhor.

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