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Silviano Santiago

'Pauliceia' de Mário de Andrade faz pensar em mudanças desvairadas do Brasil

Escritor retratou uma composição mais complexa e multiétnica do país, analisa Silviano Santiago

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Silviano Santiago

Crítico literário vencedor do prêmio Camões, é autor de "Uma Literatura nos Trópicos" e do romance "Machado", que ganhou o prêmio Jabuti de livro do ano

[RESUMO] Revisitando ‘Pauliceia Desvairada’, livro de Mário de Andrade que completa cem anos em 2022, crítico literário propõe uma análise sobre os impasses da formação do Brasil como nação independente, destacando como o pai do modernismo configurou em seus poemas uma nova composição, mais complexa e multiétnica, do povo brasileiro

Reunidos e publicados em 1922, os poemas de “Pauliceia Desvairada” são a estrela-guia que encaminha o leitor de hoje para o ano de 1932, quando o governo paulista, em oposição à ocupação provisória da Presidência por Getúlio Vargas, quer assumir o poder central da nação brasileira.

Regional, o projeto visa à governança nacional e favorece uma normatização da legislação e do processo eleitoral que, quando levantada em praça pública, será defendida pelo Estado com unhas e dentes.

Fotografia de Claude Lévi-Strauss mostrando a avenida São João, entre o edifício dos Correios e o prédio Martinelli, que faz parte do livro "Saudades de São Paulo" - Claude Lévi-Strauss/Reprodução

Em meados de 1932, as forças paulistas lideradas pelo general Isidoro Dias Lopes batem de frente contra a Presidência da República e os estados da União que lhe são fiéis. Desde o golpe de 1930, Getúlio Vargas é defensor do processo centralizador e autoritário de urbanização e modernização da sociedade brasileira, método também defendido pelos tenentistas desde as eleições de 1922. Foram eles os articuladores de sucessivas e coesas insurreições políticas.

O cidadão Mário de Andrade, decepcionado com a derrota do ideal de solidariedade nacional que defende, principal chave de leitura da “Pauliceia Desvairada” e de sua correspondência em 1932, se assume separatista.

No dia 6 de novembro de 1932, em carta ao poeta mineiro Carlos Drummond de Andrade, diz não ser mais necessário que o sujeito “descalibrado” se “enfeite” duma “solidariedade” nacional que não existe mais. Opta por solidariedade mais precária e mais imediata. O “coração” do poeta, como o de Charles Baudelaire no diário íntimo, se desnuda. Cito trecho da carta a Drummond:

“Você, Carlos, perdoe um ser descalibrado. Este é o castigo de viver sempre apaixonadamente a toda hora e em qualquer minuto, que é o sentido da minha vida. No momento, eu faria tudo, daria tudo pra São Paulo se separar do Brasil. [...] Jamais me faltou o instinto de solidariedade. Agora falta, abatido por uma solidariedade mais precária. Porém mais imediata: a solidariedade paulista, que compensa tudo, me desfaz numa unanimidade vermelha e inventa a raça. [...] Você, nacionalmente falando, é um inimigo meu agora. Você talvez não sinta isso, eu sinto. [...] Estou nu” (grifo meu).

Paulo Duarte, presente na fundação em 1931 da Liga de Defesa Paulista, um dos núcleos a compor o futuro Partido Constitucionalista, toma o pulso do poeta: “Mário que tinha um encanto especial pelos mineiros, aqui manifesta náusea pelos mineiros; que adorava o Nordeste, xinga o nordestino; que sempre foi um entusiasta do gaúcho, aqui vomita o gaúcho”.

A proposição constitucionalista não foi vitoriosa em fins de 1932. A classe política paulista será gradativamente alijada do mapa do poder nacional. Armando de Sales Oliveira, interventor federal primeiro e em seguida governador eleito, montará uma estrutura de governo regional, paralela à nacional. Por convite do prefeito Fábio Prado, Mário será o responsável pela gerência da cultura. No dia 10 de novembro de 1937, novo golpe institui o Estado Novo.

A desilusão do poeta, reitero, não veio programada na “Pauliceia Desvairada”. A correspondência, no entanto, a registra como a maior decepção em vida do cidadão paulista.

Perseguido pela nova intervenção federal no Governo de São Paulo, o exílio temporário se impõe ao funcionário público municipal e poeta. No dia 14 de junho de 1938, Mário escreve carta ao mineiro Rodrigo Melo Franco de Andrade, então no Rio de Janeiro e às ordens do então ministro da Educação, Gustavo Capanema: “Qualquer coisa serve, quero partir, agora que já ficou provado que não roubei nada nem pratiquei desfalques. Só isso me interessava saber e está provado pela devassa que fizeram”.

Entre a revolta de 1932 e o golpe de 1937, a nação brasileira começa a se modernizar, transitando conflituosamente de uma sociedade dada como atrasada e agrária para uma sociedade dita moderna e industrial.

Ainda conflituosamente, ela transita entre o fortalecimento do poder central, que ganha roupagem ditatorial, e as exigências de alguns interventores federais em dissidência e dos intelectuais e artistas em seus respectivos estados, ou instalados na própria capital federal.

Na prosa literária dos anos 1930, os conflitos anunciados por “Pauliceia Desvairada” —intervenção regional versus centralização— se transformam em dramatização de questões humanas e sociopolíticas. A multidão de imigrantes mediterrâneos, presente no livro, será acrescida pelos retirantes nossos conterrâneos, com destaque para os que chegam de solo batido pelo sol e árido, em nada propício à lavoura e à criação de gado.

Em 1938, Graciliano Ramos, ao dar voz a Fabiano em “Vidas Secas”, complementa a composição do povo paulista levantada por Mário em 1922. No parágrafo final do romance se desenham o presente da família do retirante e o futuro de seus descendentes: “E andavam para o sul, metidos naquele sonho. Uma cidade grande, cheia de pessoas fortes. Os meninos em escolas, aprendendo coisas difíceis e necessárias. Eles dois velhinhos, acabando-se como uns cachorros, inúteis, acabando-se como [a cachorra] Baleia”.

Às boas qualidades dos poemas precursores de Mário de Andrade se somam tanto os predicados da experiência apaixonada de vida quanto da vidência na política do cidadão, falecido prematuramente em 1945.

A revisita à “Pauliceia Desvairada” às vésperas de seu centenário pode motivar posicionamentos menos obscurantistas frente aos graves problemas de governança da nação brasileira, causados direta e indiretamente pelo desmatamento da Amazônia e pela pandemia da Covid-19.

Os poemas de Mário de Andrade visam a (1) clicar em suas várias facetas a paisagem urbana singular da capital paulista, (2) registrar a presença física e a fala de personagens pitorescos do cotidiano citadino, (3) anotar observações poéticas e críticas sobre a emergência no Novo Mundo de uma metrópole regional multiétnica e a se industrializar e (4) expressar evidentes motivações para pequenas revoluções sociopolíticas nacionais, de caráter afetivo e socializante.

O conjunto augura, pois, transformações formidáveis na condução do progresso da capital paulista e da nação. Enunciadas e divulgadas no ápice da política do café com leite e às portas da quebra da Bolsa de Valores norte-americana em 1929, as transformações se ostentam poeticamente como “desvairadas”, já diz o título.

O livro abraça, abençoa e favoriza a população pluriétnica e multicultural, a trabalhar e a se divertir com o sorriso inspirado pelo “friozinho arrebitado”. Cito o poema “Paisagem nº 1”: “Meu coração sente-se muito alegre! / Este friozinho arrebitado / Dá uma vontade de sorrir!”. Em encenação de arlequinada, trabalho e diversão se casam em plena efervescência urbana e ebulição industrial.

Inédito nas representações de país solar, o modelo climático paulista inspira Mário de Andrade a abarcar e a configurar a nova e futura composição do povo brasileiro. Composição complexa, injusta e pluriétnica.

Silenciosamente, o poeta subscreve o verso “Flor amorosa de três raças tristes”, do parnasiano Olavo Bilac, e, de modo radical, questiona o adjetivo —triste— que, nas interpretações do Brasil de caráter elitista, continuará a qualificá-lo desfavoravelmente.

“Pauliceia Desvairada” é batalhador e aposta na vitória da alegria arlequinal sobre a tristeza amorosa. Os losangos coloridos da vestimenta energizam positivamente a flor amorosa de três raças e abrigam a variedade infinita de etnias, presente nas recentes levas de imigrantes camponeses.

O inédito agrupamento humano paulista será capaz de retirar o país das mãos da oligarquia rural, responsável pelo atraso civilizacional que lhe vem sendo atribuído como fatalidade, seja pelo passado colonial genocida e escravocrata, seja com vistas ao futuro pós-colonial. Uma “ode” perde o entusiasmo lírico, tonalidade que vem da Grécia antiga, e passa a expressar o “ódio”. O ódio ao burguês. Na vanguarda, o jogo de palavras, a paródia, fala mais alto.

As tradicionais referências estrangeiras à terra brasileira perdem prestígio em 1922. A luz que faz a estrela-guia brilhar no céu paulista é britânica: “Minha Londres das neblinas frias...”. O adjetivo possessivo, em primeira pessoa do singular, é do agrado do cidadão Mário de Andrade.

Por exigência cristã, Mário assassina o poeta simbolista Stéphane Mallarmé. Nascido em Sint-Amands, na Bélgica, Émile Verhaeren (1855-1916) é o poeta não só de “Les Villes Tentaculaires”, de 1895, como também do pouco lembrado “Les Campagnes Hallucinées”, de 1893.

Não é, pois, gratuita a epígrafe tomada de empréstimo por Mário de Andrade de terceiro livro dele: “Em meu país de fel e de ouro / eu sou a lei”. Tampouco é gratuito o adjetivo desvairada/hallucinée, a qualificar o substantivo pauliceia.

Qual é o peso e o significado do destaque concedido ao dístico alheio e ao adjetivo comum a dois títulos de livros?

Telê Ancona Porto Lopez informa que Mário lê pela primeira vez Émile Verhaeren, “poeta cristão de aspirações socialistas”, por volta de 1910. Era, então, aluno ouvinte no curso de literatura universal oferecido pela Faculdade de Filosofia do Mosteiro de São Bento. O curso era vinculado à Universidade de Louvain, responsável pela formação em direito do poeta belga. No poema de onde Mário extrai a epígrafe, “la loi”, a lei, rima com “la foi”, a fé.

Julgo que a leitura de Verhaeren em 1910 tenha sido um dos alicerces da compreensão que Mário de Andrade teve e vem a ter das mudanças pelas quais a nação brasileira terá de passar logo depois da Primeira Guerra Mundial. Desenhada na cronologia da publicação dos livros do poeta belga, a transição dos “campos desvairados” para as “cidades tentaculares” anuncia, ainda que de maneira duplamente distanciada, a Revolução de 1930. “Les Campagnes Hallucinées” precede de dois anos “Les Villes Tentaculaires”.

O adjetivo “halluciné/desvairado” qualifica originariamente a zona rural europeia face à exigência maior da industrialização urbana das nações do Velho Mundo, a mão de obra (operária).

Ao ser apropriado, traduzido e assumido por Mário de Andrade, esse adjetivo vira um quiproquó fascinante. Ao viajar até o Novo Mundo, entra em evidente contradição com o significado que lhe é dado pelo primeiro usuário.

Passa a qualificar um emergente e progressista centro urbano, ainda que regional. Embora regional, a pauliceia desvairada tem ambição de ser nacional. Urbanismo e industrialização, em sua materialidade, são estruturações alheias a se desconstruir quando apropriadas por um segundo.

Na América do Sul e no Brasil, o adjetivo adequado aos campos europeus estaria a recobrir a emergência desestruturada de uma indústria que, na verdade, está sendo alimentada e sustentada pelos chamados barões do café, associados ao investimento estrangeiro na capital federal e nos centros urbanos, em particular o investimento britânico.

O adjetivo comum, “halluciné/desvairado”, estabelece uma simultaneidade temporal entre o Velho e o Novo Mundo que, na verdade, camufla um distanciamento espacial de dimensão atlântica entre os dois continentes. Tempo e espaço não se comunicam fraternalmente e negam a urgência da cópia fiel de um pelo outro.

Em seu esconderijo interpretativo, o distanciamento espacial inventa um quiproquó poético. Ele dá significado à escrita literária da ambiguidade pós-colonial, expressa pelo poeta paulista desde o título em quiproquó, eleito para o livro de poemas.

Em 1922, a “Pauliceia” poderia ter sido tentacular, e alguns de seus leitores a interpretam assim. Naquele ano, ela é desvairada. A desarmonia entre tempo e espaço pós-coloniais é razão para o anacronismo que o poeta transformará em força semântica original, presente em seus poemas. O anacronismo crítico é a principal forma de resistência política da “Pauliceia Desvairada”. Ele dá a pensar o cá e o lá, para retomar às avessas e em paródia a “Canção do Exílio”, de Gonçalves Dias.

“Pauliceia Desvairada” é, pois, um livro da vanguarda brasileira e pós-colonial. Afinal, em 1922 comemorava-se o centenário da Independência. Sendo pós-colonial e crítico, o Arlequim do livro é alegre, mas não se jacta de ufanista. O que fizemos e fazemos é arlequinada. À sua maneira, Mário é precursor da crítica radical que Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral farão, em 1927, ao Movimento Verde-Amarelo, a se transformar na Escola da Anta.

Recorde-se que, na história do Brasil, a Lei Áurea e a Proclamação da República foram transições históricas, sociopolíticas e econômicas mais empolgantes. Foram mais manifestas que a transição do campo e da lavoura para a cidade e a indústria, respectivamente.

Eram vistas a olho nu pelo cidadão, e ambas são representadas por Machado de Assis em 1904. No romance “Esaú e Jacó” se anuncia o anacronismo crítico no tratamento da condição pós-colonial do Brasil, presente na “Pauliceia Desvairada”. Em matéria de estilo, Mário prefere Euclides da Cunha a Machado, mas, em postura crítica, o mulato se aproxima do pensador preto carioca.

Desde o título do romance machadiano, a vida dos gêmeos Pedro e Paulo, cariocas e briguentos, será apropriadamente hospedada no Pentateuco. Os gêmeos Esaú e Jacó emprestam os respectivos nomes de batismo ao título do romance que narra a vida dos dois cariocas (de novo, o título de obra literária precursora e de alto nível é nosso cúmplice na representação do Brasil pós-colonial na literatura.)

Sendo o fato concreto trabalhado no tempo presente, o romance de Machado de Assis é realista, mas é também histórico por ter sido hospedado pelo autor no Pentateuco e, como veremos, em conto de Voltaire. À semelhança do “Doutor Fausto” de Thomas Mann, romance publicado em 1947, a trama se distancia do contexto que lhe é contemporâneo, a fim de fornecer ao leitor melhor ferramenta de análise.

Esqueçamos passageiramente a sina da Cabocla do monte do Castelo —“os gêmeos hão de subir, subir, subir...”. Lembremos que, no Pentateuco, o primogênito Esaú é desclassificado da condição de patriarca de seu povo pela própria mãe. Ela trapaceia e diz que Jacó, o mais novo, veio ao mundo primeiro.
O falso primogênito Jacó irá, por sua vez, reconhecer Efraim, seu neto e filho de José, como patriarca. Na verdade, Efraim tampouco é o primogênito. É o irmão mais novo de Manassés que, como Brás Cubas, nunca seria um procriador de primeira.

Atenção Gilberto Freyre! Esaú e Manassés, primogênitos, são fraudados no processo sucessório patriarcal. Não podem se valer dos legítimos direitos nem podem ir contra a lei, em combate contra a injustiça sofrida. São ofendidos pessoalmente pelo patriarca então no poder, em atitude manifesta de desobediência à lei universal do patriarcado. Jacó e Efraim são os abençoados.

Em transições sociopolíticas e econômicas formidáveis, os sistemas sucessórios brasileiros funcionam de maneira mais desvairada do que afirma a lei.

O anacronismo crítico de Machado de Assis e de Mário de Andrade não deixa de vaticinar uma das mais apropriadas e perfeitas máximas eurocêntricas de Claude Lévi-Strauss.

Em “Tristes Trópicos”, relato de sua estada em São Paulo para participar do notável projeto educacional do governo de Armando de Sales Oliveira, paralelo ao do governo federal, o etnólogo francês foi sensível ao efeito das transposições literais do Velho para o Novo Mundo.

Lévi-Strauss não escamoteia a avaliação da cópia conforme da Europa no Novo Mundo: “Os trópicos são menos exóticos que antiquados”.

Exótica aos olhos dos primeiros europeus, a antiga colônia portuguesa está se deixando limitar pós-colonialmente por efeitos eurocêntricos radicais, que apontam para a perpetuação ad infinitum dos próprios valores colonizadores. A mera cópia é em si desclassificatória.

A colônia, ainda que já emancipada, continua a perder as qualidades naturais para se tornar uma cópia mais conforme da metrópole. Antes de chegar a ser, já é antiquada. Na nova condição, não é duplamente original. Será duplamente desclassificada nas avaliações civilizatórias. Nem exótica mais é.

Veja-se o caso do encilhamento, acontecido na República Velha, e relatado por Machado de Assis em “Esaú e Jacó”. O desastre financeiro da nação é coincidente com a adoção oficial do estilo art nouveau para a modernização da capital federal.

Essa outra ambiguidade, simultânea no tempo e distanciada no espaço, só será passível de ser lida a partir de um extraordinário achado anacrônico. Machado fez seu romance se hospedar no conto “Cândido, ou o Otimismo” (1759), de Voltaire.

Leia-se o capítulo “Eldorado” em “Esaú e Jacó”. Nele, Machado ri às gargalhadas com Voltaire das fortunas artificiais de alguns cidadãos europeus e brasileiros, causa do otimismo típico dos Pangloss ufanistas.

Cito Voltaire e, ao mesmo tempo, Machado, este em notável anacronismo crítico datado de 1904: “Pessoas do tempo, querendo exagerar a riqueza, dizem que o dinheiro brotava do chão, mas não é verdade. Quando muito, caía do céu”. O dinheiro brotou do chão em Ouro Preto colonial e caiu do céu no Rio de Janeiro republicano e pós-colonial.

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