Descrição de chapéu
Katia Muricy

Roberto Machado abriu clareira na época da ditadura com estudo de Foucault

Morto na última semana, filósofo foi educador no sentido amplo e reinventou relação mestre-discípulo

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Katia Muricy

Professora de filosofia da PUC-Rio, é autora dos livros "A Razão Cética", "Alegorias da Dialética" e "Figuras da Verdade" e coautora de "Danação da Norma"

[RESUMO] Ex-aluna e depois companheira em pesquisas relembra a trajetória acadêmica do professor de filosofia Roberto Machado, que morreu em 19/5, aos 79 anos. De pensamento livre e inquieto, pioneiro no estudo de Foucault e Deleuze no Brasil, encantou gerações de alunos ao estabelecer com eles diálogos de amizade filosófica e deixou obras de relevo como "O Nascimento do Trágico" e "Danação da Norma".

Um professor —assim Roberto Machado definia a si próprio. Não havia aí a modéstia que costuma acompanhar declarações como essa. Poucos, como ele, compreenderam e viveram a altivez imemorial de ser um professor, um “erzieher” —o educador pelo qual reclamava Nietzsche.

Ele, que jamais quis ter qualquer poder na universidade, dignificava com sua autonomia a compreensão mais alta de vida acadêmica. Imediatamente após o anúncio de sua morte, em 19 de maio, uma imensa quantidade de depoimentos emocionados encheu as redes sociais: alunos de filosofia de várias gerações, agora professores, espalhados em todo o país, orientados por ele em suas teses e pesquisas, ou apenas alunos de seus cursos, todos tinham em comum terem sido, em algum momento de suas vidas, profundamente tocados por ele.

Não poucos decidiram a vida a partir de seus cursos ou mesmo em breves encontros: na saída da aula ou da palestra, na conversa assistindo ao pôr do sol na praia de Ipanema.

Roberto Machado durante conferência na Reitoria da UFBA (Universidade Federal da Bahia) - Divulgação/UFBA

Para os amigos mais próximos, a evocação de suas aulas nesses depoimentos trazia o consolo de uma presença palpável, a descrição de uma memória coletiva que corporificava o seu pensamento nos gestos, nas mãos repetidamente lembradas, no sorriso, no surpreendentemente mantido sotaque nordestino, depois de tantos anos no Rio.

Tudo era manifestação de um pensamento em curso —seu jeito de andar, de se mover na sala, de pausar o fluxo da fala. Ou, para os mais íntimos, os seus comentários precisos, acompanhando o gesto de emergir a cabeça da rede, lugar cativo de uma cátedra nordestina que se permitia, quando recebia em casa, nos memoráveis grupos de estudo.

Além da homenagem dessas evocações de que ele, imagino, teria gostado, mesmo não sendo afeito às redes sociais, revela-se uma característica de sua forma de fazer, de viver a filosofia.

Nunca conheci alguém que amasse tão visceralmente a filosofia, em uma relação bem-sucedida, prazerosa, sem rusgas. Nem mesmo a literatura, que o atraía e a qual se dedicava nos seus últimos anos, abalou o prazer da convivência, como muitas vezes acontece com os que procuram conciliar essas paixões.

Na convivência com seus alunos, edificava, no canteiro de obras dos autores estudados, a agilidade viva de uma constante renovação, de uma ágil indagação sobre a arte, sobre a poesia —em uma palavra, sobre a vida. Se podemos falar de uma pedagogia, a sua era uma de mobilidade refratária à estagnação acadêmica.

Movia-se, ao passar dos semestre, por autores —Foucault, Nietzsche, Deleuze, Proust— para deles extrair a chama viva que alimentava o seu pensamento sempre mutante, fiel, no entanto, ao rigor de leitor da velha escola.

Ilustração de Roberto Machado para ilustríssima
Ilustração de Roberto Machado - Jairo Malta

Nessa construção, era-lhe imprescindível a troca com os alunos, talvez transformados em uma entidade única que alicerçava o diálogo de ideias consigo próprio. Ali nasciam seus livros: rigorosos no trabalho conceitual, maduros no convívio dos argumentos. Mais que isso, eram passos no percurso de autonomia e sofisticação teórica do excelente intérprete que era.

Comunicando suas descobertas aos alunos, ouvia a si próprio, passava-as pelo crivo de um rigor implacável, fazia de si o seu próprio mestre. Os livros, foram tantos, eram, ele dizia, um presente para os que não haviam sido seus alunos.

Filosofia era para ele uma “simphilosophie”, uma produção do pensamento entre amigos. Não se tratava de envolver no afeto o duro recheio do trabalho conceitual. Era, antes, tornar o trabalho conceitual um afeto prazeroso e compartilhado, no refinamento das ideias.

No livro “Lições dos Mestres”, George Steiner aproxima a pedagogia filosófica, a dimensão ética e cognitiva do mestre, da arte poética.

A figura mestre-discípulo, nessa afinidade, escapa ao hierárquico formalismo acadêmico e ganha a desenvoltura, salutar para o pensamento, de uma “philia” em que o mestre é o discípulo de si mesmo, ao ouvir-se no silêncio que precede as perguntas dos alunos. Por seus comentários em entrevistas, penso que Roberto, sem tematizar, era consciente desse modo poético de produção de ideias.

Ao longo dos anos, aprimorou sua arte. A sala de aula, no Instituto de Filosofia da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), para onde foi depois de uma demissão absurdamente injusta da PUC, era sempre pequena para a multidão de alunos —prestígio raro, considerando-se os assuntos difíceis e as exigências do professor.

Essa plateia extasiada era ainda mais ampla: fora dos muros acadêmicos, Roberto Machado foi, como educador no sentido amplo que o definia, uma presença formadora na vida cultural da cidade, em especial por sua convivência com artistas e atores, pelo amor ao teatro, quando os seus conhecimentos de estudioso da tragédia encontravam o entusiasmo da encenação de clássicos gregos.

Fui sua aluna nos anos 1970. Jovem professor recém-chegado da Paraíba, onde lecionara, as suas aulas na PUC tiveram um efeito decisivo também na minha vida e na de muitos que fizeram aquele seu primeiro curso. Trazia um pensamento liberador e proporcionou, pela filosofia, que eu emergisse de um mundo sombrio.

Aluna do Instituto de Filosofia da UFRJ, o que significava ter perdido os melhores professores nas cassações do AI-5 e estar à mercê das famigeradas delações acadêmicas, encontrava no belo campus da Gávea uma acolhida inesperada, um lugar ameno no horror do descenso dos movimentos da esquerda, na perda da esperança na luta armada.

Precisava-se de um front de resistência, precisava-se entender, em novas chaves, o que ocorrera de irremediável. Esse exílio no próprio país, essa violência em surdina envenenava cotidianamente, enterrava qualquer energia produtiva na apatia e na perplexidade.

O jovem professor Roberto Machado iria abrir uma clareira com um autor quase desconhecido no Brasil, Michel Foucault. Disciplinados pela militância, mas também pela leitura de Louis Althusser (alguns queimaram a chance de ser professor por participarem de grupos de estudo deste autor), questionava-se a leitura ortodoxa do marxismo e sua apropriação equivocada pela fenomenologia existencialista de Sartre.

Iconoclastas, estávamos prontos para ler Foucault. Também o professor vinha de muitas dúvidas e, a essa altura, poucas certezas. Seus anos de militância e, depois, de estudos na Bélgica e na Alemanha, o aproximaram da vanguarda dos movimentos políticos da juventude europeia e da decepção com as insuficiências teóricas para avaliar a novidade que se vivia. Ele também estava pronto para nós.

A proposta do curso era —Roberto reconhecerá, rindo, muitos anos depois— bastante problemática. Leríamos “As Palavras e as Coisas”, livro de Foucault, de trás para frente, a partir do capítulo 10. O esforço do professor e de seus alunos era memorável.

A rigor, adiantado de seus alunos apenas pela leitura em curso dos capítulos anteriores, mas amparado na sólida formação de seus estudos epistemológicos, no conhecimento de autores como Cavaillès, Canguilhem, Koyré e Martial Guéroult, o professor de olhar penetrante nos intimidava tanto quanto o autor daquele livro improvável que anunciava o fim do homem.

A audácia do curso, que logo fez sucesso entre os professores do Departamento de Letras, mais abertos à filosofia francesa, representa bem o professor que iria, anos depois, empreender o projeto que julgava, juntamente com “O Nascimento do Trágico”, o seu projeto mais ousado: “Danação da Norma”.

Era um projeto ousado por ser trabalho em equipe e, principalmente, por usar o instrumental conceitual —no caso, os estudos histórico-filosóficos de Michel Foucault— com a exigência de produzir um conhecimento novo.

Esse instrumental permitia ampliar uma compreensão mais sutil dos mecanismos de poder da sociedade brasileira oitocentista para além dos limites de análises que os consideravam reflexos de instâncias econômicas, obscurecendo a sua efetiva ação e eficácia política.

Professores e estudantes usam máscaras de Michel Foucault em frente à Reitoria da PUC São Paulo, em protesto contra a decisão da universidade de rejeitar a criação de cátedra dedicada ao filósofo - Ernesto Rodrigues - 20.mai.15/Folhapress

O projeto dava curso a preocupações compartilhadas com Jurandir Freire Costa desde a convivência de ambos em Paris, com os seminários e cursos de Foucault e os debates de grupos de historiadores, como os que pesquisavam o caso, depois famoso, de Pierre Rivière.

Dessas preocupações, nasceram os livros “Danação da Norma – Medicina Social e a Constituição da Psiquiatria no Brasil”, escrito por Roberto e por três pesquisadores, Angela Loureiro, Rogério Luz e Katia Muricy, publicado em 1977, e “Ordem Médica e Norma Familiar”, de Jurandir Freire Costa, publicado em 1979.

Abria-se, com eles, uma vertente nova e imensamente produtiva de pesquisas universitárias sobre aspectos da realidade brasileira inexplorados pela historiografia tradicional ou de orientação marxista.

Também foi ousada a disposição de Roberto de sair do isolamento autoral e propor-se a um difícil trabalho de equipe. Anos depois, gostava de citar, com humorada ironia, a observação de Borges de que escrever em colaboração exige o abandono do eu, da vaidade e, talvez, até mesmo da cortesia.

Durante as pesquisas, o grupo seguidamente se abria para um debate mais amplo, que podia ser com o próprio Michel Foucault, em suas visitas ao Rio, ou com alunos, psiquiatras e mesmo, seguidamente, com pessoas de fora do circuito acadêmico.

Por cerca de cinco anos, trabalhou-se na poeira de arquivos de teses e relatórios médicos, de estatutos de instituições médico-psiquiátricas, discutindo semanalmente os resultados para a composição dos textos definitivos. Era um processo quase impossível, mantido pelo entusiasmo da equipe e, sobretudo, pela batuta do mestre exigente, generoso e sempre estimulante.

Roberto ainda pesquisou, a partir dos pressupostos dessa pesquisa, a dimensão política das campanhas sanitárias contra a febre amarela e a varíola, comandadas por Oswaldo Cruz.

O seu pensamento inquieto, o seu amor à liberdade de dar uma inflexão pessoal própria à filosofia irão depois afastá-lo das questões historiográficas marcadas pela influência de Foucault, com quem passou a manter uma afetuosa amizade. Continuava, no entanto, convencido de que “só se trabalha bem com amigos”.

Na sala de aula, soube inventar um diálogo de amizade filosófica com seus alunos. Desse diálogo, ganhamos os seus impecáveis livros sobre Michel Foucault, Nietzsche, Deleuze e sobre a tragédia. E nós, os amigos, os alunos, esperamos agora um presente, o livro sobre Proust, para ainda não interromper o diálogo e poder compartilhar a sua grande paixão.

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