Diretor de Cannes celebra volta do festival e diz odiar formato virtual

Em entrevista, Thierry Frémaux comenta importância de eventos presenciais, a relação das salas de cinema com as plataformas de streaming e critica governo Bolsonaro

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Ana Maria Bahiana

Jornalista da área cultural e editora-adjunta do site goldenglobes.com, é autora, entre outros livros, de "Nada Será Como Antes - MPB nos Anos 70" (Civilização Brasileira, 1980)

[resumo] Em entrevista, Thierry Frémaux, diretor do Festival de Cannes, comenta a retomada presencial do evento neste ano, após o cancelamento em 2020 em razão da pandemia, diz que odeia o formato de mostras online e que está aberto a propostas de parceria com Netflix e outros streamings, critica o desprezo do governo Bolsonaro pela cultura e compara o cinema ao judô, sua outra paixão.

Thierry Frémaux está muito feliz: o Festival de Cannes, que ele dirige desde 2007, vai voltar neste ano de forma presencial, com sessões de gala, tapete vermelho, paparazzi e um júri liderado pelo cineasta Spike Lee.

De 6 a 17 de julho, a programação normal do festival tomará conta da Croisette, com filmes como o musical “Annette”, de Leos Carax, que abrirá o evento; “Benedetta”, de Paul Verhoeven; e “The French Dispatch”, Wes Anderson. A programação completa foi anunciada nesta quinta (3/6).

Thierry Frémaux está, ao mesmo tempo, triste com a morte de seu mentor, um de seus melhores amigos, Bertrand Tavernier, diretor de, entre outros, “Por Volta da Meia-Noite” (1986) e “Um Sonho de Domingo” (1984).

O diretor do Festival de Cannes, Thierry Frémaux, apresenta versão reduzida do evento em outubro de 2020 - Valery Hache/AFP

Tavernier foi o presidente do Instituto Lumière, na cidade de Lyon, desde sua fundação, em 1982, por dois descendentes dos irmãos Lumière, os pioneiros do cinema. “Foi meu primeiro contato direto com cinema”, diz Frémaux, falando via Zoom de Lyon. “Eu era voluntário, e minha tarefa era carregar aquelas latas enormes de celuloide.” Mais tarde Tavernier daria a Frémaux o posto de diretor do instituto, que ocupa até hoje.

E além de alegria e tristeza existe o judô. Judoca desde criança, Frémaux acaba de lançar um livro sobre o esporte, “Judoka (La Bleue)”. “Eu cheguei à faixa preta, fui mestre de judô na minha juventude”, ele conta. “Achei que estava na hora de compartilhar esta paixão. Quando era estudante da Universidade Lumière, eu me comprometi com treinar judô todo dia, depois das aulas. E ao mesmo tempo me tornei voluntário no instituto. As duas coisas vieram da devoção e da paixão por ambas. Não consigo separar a vida do esporte e a vida do cinema”.

Frémaux completou há pouco 61 anos. Não tem planos de se aposentar, mas diz que, se algum dia deixar a labuta de festival e instituto, vai se tornar “bilheteiro de um cinema pequeno, de bairro”. “Assim eu posso dizer que, finalmente, estou trabalhando em cinema.”

Podemos começar com algo otimista: a volta do Festival de Cannes está garantida? Sim, está! Na primeira semana de julho! Está garantido e, com ele, tenho a certeza de que muitos festivais vão voltar também. Eu costumo conversar com meu amigo Tarantino sobre otimismo —eu digo que ele é pessimista porque é americano, e eu sou otimista porque sou francês [ri muito].

O ano passado foi muito triste por muitos motivos. Não pudemos oferecer nosso festival, e vários outros do mundo tiveram de ser cancelados também. Ir a um festival —para profissionais, para críticos, para jornalistas, para realizadores, especialmente para plateias que gostam de cinema— é algo muito importante.

Muitos optaram por fazer festivais digitais, online, mas Cannes, não. Por quê? Eu odeio a ideia de um festival digital. Odeio mesmo. Não vou criticar quem optou por essa solução, compreendo perfeitamente o que levou a isso, mas para mim é uma contradição.

Um festival de cinema é um ato presencial, é estar junto, é brigar com outra pessoa por causa de um filme, é estar numa mesma sala com dezenas de pessoas durante duas horas, é o momento em que críticos e jornalistas criam o destino de um filme.

Um diretor que ninguém conhece pode se tornar alguém em duas horas. Isso acontece. Aconteceu com Cristian Mungiu. Ele era um desconhecido [o diretor romeno recebeu a Palma de Ouro, prêmio máximo de Cannes, em 2007, pelo filme “4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias”].

E essa é a magia de um festival —depois da exibição, em questão de horas começam os rumores sobre o filme, sobre o realizador. Em duas horas, Mungiu era conhecido por todos. Isso aconteceu com Tarantino. Aconteceu com Almodóvar, com Terrence Malick. Todo ano nós pensamos que a safra foi fraca, mas existe sempre a magia de um festival.

Spike Lee havia sido anunciado como presidente do júri de Cannes 2020 e agora está muito contente por finalmente poder cumprir seu mandato...  É claro que tínhamos que manter Spike e anunciar novamente a presença dele em Cannes! Spike é uma pessoa muito fiel, e tivemos, não sei, talvez umas 25 conversas sobre adiamentos e depois o cancelamento do festival no ano passado. “Não se preocupe. Estou aqui. O festival vai ser em maio. O festival vai ser em junho. Não se preocupe, estou aqui. O festival vai ser em julho, não se preocupe.” [ri muito]

Spike é muito importante para mim, muito importante para o festival. É uma pessoa alegre, uma pessoa que traz alegria a tudo. Teria sido fantástico ter Spike conosco com “Destacamento Blood” (2020) [mais recente filme do diretor], fora de competição é claro, como é a tradição.

Spike é fundamental por vários motivos e, neste momento, ainda mais por ser um presidente negro do júri. O primeiro jurado negro que tivemos foi Ousmane Sembene, o realizador senegalês, em 1967. Sempre temos pessoas negras no nosso júri —eu presto atenção, especialmente, em diversidade.

Diversidade é uma das primeiras obrigações de Cannes. Diversidade no sentido de universalidade —cinema sendo feito em todo canto do mundo, da Ásia, das Américas, da Europa, da África, da Austrália. Eu tenho uma alegria e um orgulho especiais de ter Spike conosco —é um grande diretor e, por si só, representa tudo isso.

Com a pandemia, a necessidade de ficar em casa e o fechamento obrigatório das salas de cinema, o público tornou-se ainda mais voltado para as plataformas digitais, como Netflix, Amazon. Seu ponto de vista mudou com isso? É uma situação complexa. Otimista como sou, acredito que haja um espaço para salas de cinema e para plataformas. Netflix, Amazon e plataformas assim são, para mim, televisão. Uma televisão muito mais sofisticada e elevada, com excelente conteúdo, e uma estratégia mais próxima do cinema do que da televisão.

Mas aqui na França ainda estamos lutando pelas salas de cinema e ainda achamos que é mais nobre exibir um filme numa sala, primeiramente. Meus filhos veem os filmes aos pedaços, param no meio, voltam atrás, mas também vão ao cinema para ver um lançamento.

Na França, quando os cinemas voltaram a funcionar, as pessoas voltaram aos cinemas. Vou dar um exemplo: sou fã de Bruce Springsteen. Eu me considero um dos maiores especialistas em Bruce Springsteen no mundo, tenho um monte de bootlegs, um monte de gravações de shows, um monte de CDs e DVDs de Bruce. Mas nada disso se compara a ver um show de Bruce, ao vivo. Para mim, com o cinema é a mesma coisa.

Qual é sua posição quanto a plataformas digitais e o Festival de Cannes? Nossas conversas com as plataformas online começaram em 2017, e continuamos abertos a propostas. Eu queria os títulos das plataformas em Cannes, mas teriam de ser exibidos em Cannes primeiro. E, é claro, eu sabia que haveria um escândalo por parte dos exibidores franceses.

Mas as regras básicas de Cannes não mudaram —todos os filmes em competição só podem ser exibidos, em primeiro lugar, nos cinemas. Já os filmes fora da competição oficial podem ser filmes da Netflix, por exemplo. Ainda estou tentando convencer o pessoal da Netflix de que podem ter uma vida muito boa e feliz na divisão fora de competição.

Os grandes estúdios sabem disso, preferem colocar um filme fora de competição e ter um grande evento de gala com tapete vermelho. Eles não têm o menor problema de lançar seus filmes fora de competição.

Mas meu amigo Ted Sarandos e a Netflix... eles são competitivos, querem a Palma de Ouro, querem o Oscar, querem o Globo de Ouro, querem prêmios. E eu entendo perfeitamente a posição deles. Cannes é Cannes —não quero me gabar, mas Cannes tem uma qualidade excepcional de seleção. Temos excelentes selecionadores. O gosto de Cannes é muito apurado.

Então pode haver paz entre Cannes, os exibidores e as plataformas digitais? Sim, claro! Não vou dizer que são nossos irmãos, mas digamos que são nossos primos. As plataformas estão fazendo um trabalho maravilhoso de transmissão de cultura. E não apenas por lançar novos títulos, mas por trazer filmes do passado, inclusive filmes clássicos, históricos. Graças a elas, os filmes clássicos não correm perigo.

Aqui na França, a Netflix ofereceu uma retrospectiva de Bertrand Tavernier, em homenagem a ele. E sempre há muitos filmes de Claude Chabrol, muita coisa de Claude Sautet e François Truffaut, alguns Jean-Luc Godard. Até onde posso ver, não há briga entre salas de cinema e plataformas digitais.
E, às vezes, penso no futuro das plataformas. Da mesma forma que o cinema pode estar em risco hoje, talvez as plataformas também estejam daqui a 20, 30 anos.

Além de diretor artístico do Festival de Cannes, você é diretor do Instituto Lumière, de Lyon, dedicado ao restauro e a disseminação de filmes clássicos. Como você vê a questão da preservação hoje?  Melhor do que antes. Uma coisa curiosa: não restauramos filmes no próprio instituto, trabalhamos com laboratórios capacitados. Para mim, tudo é cinema —documentário é cinema, animação é cinema.

Animação é um dos tipos de filmes mais difíceis de restaurar; felizmente a Disney foi a primeira a se dar conta da necessidade do restauro. Seria sensacional se todos os filmes clássicos de animação fossem restaurados, não apenas os da Disney.

Restaurar é apenas uma parte da missão; é preciso restaurar e exibir. Por isso temos em Cannes a seção Cannes Classics e, em Lyon, o Lumière Festival. Recentemente exibimos um documentário restaurado, sobre filme noir.

Uma grande parte dos títulos restaurados e exibidos são europeus e estadunidenses. Pelo que acompanho, é extremamente difícil preservar a memória cinematográfica da América Latina. Temos feito algumas coisas, restaurando parte da história do cinema argentino, recentemente restauramos um filme de Fernando Solanas. Fizemos uma parceria com a Film Foundation, de Martin Scorsese e, através de Olivia Harrison, a viúva de George Harrison, estamos restaurando alguns filmes mexicanos clássicos.

O México tem muitas obras-primas. Alguns de seus principais cineastas contemporâneos, como Alfonso Cuarón, Guillermo del Toro e Alejandro Iñárritu, estão mais ativos no restauro de clássicos mexicanos. Sabemos que Chile, Venezuela, Colômbia têm seu cinema —em todo lugar se encontram obras-primas locais.

Como vê essa mesma questão no Brasil? Um elemento importante para um projeto desses é que ele é um esforço conjunto. Isso quer dizer que precisamos do apoio dos governos locais. Ir falar com o atual presidente do Brasil é muito difícil. E não tenho muita certeza de que ele goste de cultura. E você tem razão —em termos de cinema clássico, a América Latina merece coisa melhor.

O esforço conjunto, como você descreve, está dando certo em outros países além dos que você mencionou? Sim! Nos últimos dez anos, temos filmes restaurados de vários países, exibidos em Cannes Classics e no Festival Lumière. Temos coisas ótimas da Macedônia, de Singapura, da Hungria.

A Hungria está com uma atividade intensa em torno do seu cinema clássico. E aqui devo ressaltar algo importante: sem o apoio de outras entidades, nosso trabalho não seria possível.

A HFPA [Associação de Imprensa Estrangeira de Hollywood, localizada em Los Angeles, que concede os prêmios Globo de Ouro anualmente] é muito importante para nós, apoia nosso trabalho há muito tempo, torna possível o que fazemos pelo cinema clássico.

E por que um livro sobre judô?O judô foi a coisa mais importante da minha infância, assim como o cinema foi a coisa mais importante da minha juventude. Minha família era muito esquerdista e não se importava com esportes. E eu sempre gostei de esportes, o que me alienou de minha família. Ainda mais judô, especificamente, que sempre me atraiu.

O judô me preparou para ser um fã de cinema. Judô e cinema nasceram na mesma época —Jigoro Kano, o criador do judô, pegou vários elementos das artes marciais, editou tudo e criou o judô. Os irmãos Lumière fizeram o mesmo com o cinema. Os esportes falam da história de seu tempo, da alma do seu tempo. O cinema faz a mesma coisa.

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