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Vinicius Marques de Carvalho

EUA tiram desenvolvimentismo do armário para enfrentar China em inteligência artificial

Novo relatório defende conciliar protagonismo do Estado e aposta no livre mercado para acelerar desenvolvimento tecnológico

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Vinicius Marques de Carvalho

Sócio do VMCA Advogados e professor da Faculdade de Direito da USP, foi presidente do Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica)

[RESUMO] Relatório bipartidário produzido nos EUA com o intuito de traçar estratégias para enfrentar os chineses no desenvolvimento de inteligência artificial pode representar um redirecionamento da política industrial da maior potência do mundo, produzindo uma nova articulação entre livre mercado e planejamento governamental.

Na valsa da espiral competitiva entre os Estados, a importante novidade é a publicação de um calhamaço de mais de 700 páginas pela Comissão de Segurança Nacional para Inteligência Artificial (NSCAI) dos EUA.

Esse relatório praticamente sustenta o projeto de lei aprovado recentemente pelo Senado estadunidense que já pode ser considerado, sem exagero, o marco central de um redirecionamento da política industrial da maior potência do mundo.

Muito mais amplo que o projeto de lei e ainda pouco comentado no Brasil, o relatório bipartidário foi coordenado pelo ex-presidente-executivo do Google Eric Schmidt e busca preparar rapidamente os EUA para uma batalha já em curso em torno da dominação sobre o desenvolvimento das plataformas digitais e da IA (inteligência artificial).

Visitante no Congresso Mundial de Inteligência, evento de tecnologias de inteligência artificial realizado em Tianjin, na China - Sun Fanyue - 20.mai.21/Xinhua

O relatório identifica como adversário explícito a China —que, em 2015, começou a desbravar sua “Rota da Seda digital” com investimentos maciços em infraestrutura— no desenvolvimento avançado de tecnologias que incluem sistemas de navegação de satélites, computação quântica e, óbvio, IA.

Desde então, percebendo também a relevância de construção de redes de interdependência econômica, a China vem promovendo uma agenda expansionista no ecommerce e centros regionais de logística, além, é claro, de se esforçar na criação de um ambiente de diplomacia digital e governança multilateral.

A constatação do avanço chinês é o primeiro ato do relatório. Rufam os tambores: “Pela primeira vez desde a Segunda Guerra, a predominância tecnológica da América, coluna vertebral do seu poder militar e econômico, está sob ataque. A China possui o vigor, o talento e a ambição para superar os EUA como líder mundial em IA na próxima década”.

Não por acaso, o relatório é coalhado de referências a uma guerra tecnológica, trata da necessidade de criar uma “estratégia competitiva global”, além de ilustrar, a partir da estratégia chinesa, ameaças às liberdades democráticas —como se uma liderança econômica da China gerasse necessariamente um impulso autoritário em outras nações— e à igualdade de oportunidades (“level playing field”) global.

Convenhamos, embutida em uma retórica de defesa da democracia e contra-ataques cibernéticos, a frase acima produz inspiração suficiente para uma guerra fria tecnológica. Saímos no lucro se só servir para articular uma “singela” estratégia nacional de IA. Ironias à parte, um exemplo mais típico de política industrial em termos de ferramentas, desenho institucional e governança seria improvável.

Com a ambição de apresentar uma proposta de reorganização e reorientação completa da nação para enfrentar o conflito e manter sua posição de liderança em inovação, o relatório propõe medidas de cima para baixo partindo da Casa Branca por meio de um Conselho de Competitividade Tecnológica, que abrangem propostas agressivas de retenção e atração de talentos por meio inclusive de políticas imigratórias; criação de uma infraestrutura de pesquisa e desenvolvimento com recursos computacionais em nuvem e rede de conhecimento aberta; aprimoramento da competitividade via criação de mercados para IA; e, por que não, reconfiguração dos regimes de propriedade intelectual.

Como se não bastasse o exposto acima, o relatório surpreende ainda mais os defensores da cartilha liberal ao usar expressões como “proteção das vantagens competitivas da América”, “modernização dos controles de exportação” e tratamento ao que chama de “U.S. research enterprise” (sistema americano de pesquisa) como um ativo nacional.

Em suma, parece que o Estado desenvolvimentista americano está saindo do armário. A questão é que, como diz Eric Schmidt, defender algo chamado de política industrial nos EUA é como gritar sozinho no oceano —ninguém dá ouvidos.

O paroxismo aqui está no fato de todas essas hipóteses estarem disponíveis no cardápio atual de narrativas de democratas e republicanos.

A despeito da força retórica desses argumentos, aceitar a premissa de que construir uma política industrial é imprescindível significa uma genuflexão à ideia de que é possível a perda de uma guerra econômica para um “statecraft capitalism” (para usar uma expressão da moda) e, portanto, para o planejamento governamental.

Será que não seria o caso de simplesmente esperar para que as reconhecidas e historicamente condenadas ineficiências desse modelo gerassem a sua própria debacle? A resposta novamente vem do ex-diretor-presidente do Google: quem deposita suas possibilidades de vitória apenas nos equívocos estratégicos de seu concorrente está correndo muitos riscos.

O relatório acaba por assumir, talvez de maneira contraintuitiva e certamente improvável, que as políticas orientadas para o livre mercado são de fato uma agenda regulatória que depende de consensos mínimos para se fixar, que o livre mercado não se impõe pela sua superioridade natural e que, na verdade, esses consensos nunca chegaram a se estabelecer, de modo que tanto os EUA como outras nações sempre lançaram mão de políticas conscientes para reforçar sua competitividade global.

Em resumo, política industrial é mais uma questão de “qual” que de “se”. Todo o mundo faz, cada um a seu modo, e quem lidera busca extravasar seu modelo para outras nações. Nunca a frase “a melhor política industrial é não ter política industrial” soou tão démodée.

Ao fim, senso de urgência, pragmatismo e engajamento messiânico na universalização de sua visão de mundo permitem construir narrativas que justifiquem conviver com o paradoxo de que, para garantir a predominância dos seus valores no mundo regido pela IA, os EUA se veem obrigados a abrir mão deles, ainda que temporariamente.

Para além dessa constatação, há ao menos dois desdobramentos do relatório derivados diretamente do seu objeto, a inteligência artificial.

O primeiro, de natureza mais institucional, consiste na possibilidade de as exigências decorrentes da implementação das estratégias de IA obscurecerem as distinções típicas entre as funções e ferramentas tradicionais do Estado regulador e do Estado desenvolvimentista.

Explico. Apesar de o relatório ter uma de suas partes dedicada a medidas de defesa nacional relacionadas à IA, ele é explícito em reconhecer que apenas essa abordagem não é mais suficiente. O sucesso dessa agenda depende de sua extensão e penetração e da colaboração inovadora constante entre centros de pesquisa, empresas e governo.

Os dilemas éticos envolvendo a IA também exigem uma construção mais sujeita à esfera pública. Enfim, essas características podem impulsionar uma política industrial menos hermética e obscura, e, desse modo, mais aberta a métodos de governança típicos de estruturas regulatórias mais sujeitas a controle social.

Serei ainda mais específico, por meio de exemplo em que já se nota essa interação entre política industrial e uma política típica de um Estado liberal regulador.

Uma leitura perfunctória do documento poderia notar a ausência de qualquer menção à política de defesa da concorrência. Nada surpreendente, haja vista a sua identificação com a ideia de um Estado absenteísta que atua de maneira eventual e reativa e nunca estruturante de mercados.

Entretanto, ao aproximarmos a lente, nota-se que o relatório é bastante reticente em apostar no gigantismo das empresas estadunidenses como solução para o “catch-up” tecnológico. Pelo contrário, a ideia é a de que a busca por competitividade no mundo da IA exige apostar em vários cavalos.

Isso fica claro à medida que o relatório identifica as dificuldades de crescimento das startups e o fato de a falta de competição prejudicar a capacidade da indústria de inovar e ser globalmente reconhecida na pesquisa e no desenvolvimento de IA.

O documento vai ainda mais longe ao relacionar competição com desenvolvimento regional. Mesmo reconhecendo que a formação de “clusters” no Vale do Silício impulsiona a inovação ao acelerar o compartilhamento de conhecimento e intensificar a rivalidade doméstica, afirma que essa tendência beneficiou algumas regiões mais que outras e que isso concentra os ganhos do progresso tecnológico em apenas algumas localidades e empresas, prejudicando o potencial de inovação latente no resto do país.

Com essa abordagem mais ampla da competição, com incentivos explícitos à abertura e diversificação, ficam mais compreensíveis as investidas do Congresso e do governo Biden em pressionar por um antitruste com objetivos mais plurais, mais preocupado com o impacto das estratégias empresariais sobre o capital humano, a diversidade e a lealdade do processo competitivo.

Embora seja cedo para certezas, talvez estejamos diante do prenúncio de uma nova conciliação entre política concorrencial e política industrial, ou melhor, entre Estado regulador e desenvolvimentista. Cedo para dizer.

O segundo desdobramento diz respeito aos efeitos das estratégias de IA sobre a relação entre progresso técnico, ciência e desenvolvimento humano. Sei que esse assunto não merece aparecer no final no texto, considerando sua riqueza multifacetada nos escaninhos da filosofia da ciência e da teoria social. Minha preocupação aqui diz mais respeito à manipulação estratégica de uma nova e suposta epopeia humana que se avizinha. E, aqui, um texto de Henry Kissinger cai como uma luva para compor esse enredo.

Em “How the Enlightenment Ends” (como o Iluminismo chega ao fim), Kissinger produziu as justificativas e o repertório dessa nova cruzada geopolítica: “O Iluminismo começou com percepções essencialmente filosóficas propagadas por uma nova tecnologia. Nosso período está se movendo na direção oposta. Ele gerou uma tecnologia potencialmente dominante em busca de uma filosofia orientadora. Outros países fizeram da IA um grande projeto nacional. Os Estados Unidos ainda não exploraram sistematicamente seu escopo completo, como nação, nem estudaram suas implicações, nem iniciaram o processo de aprendizado final. Isso deve receber uma alta prioridade nacional, acima de tudo, do ponto de vista de relacionar a IA às tradições humanísticas”.

O peso agora estaria em saber como e quem controla o controlador. Na visão de Kissinger, enquanto a automação cuida dos meios, atinge os objetivos prescritos racionalizando ou mecanizando os instrumentos para alcançá-los, a IA, ao contrário, lida com fins; ela estabelece seus próprios objetivos. À medida que suas realizações são em parte moldadas por si mesma, a IA seria inerentemente instável. Cabe questionar se essa constatação é de fato inexorável.

Prefiro acreditar que não corremos o risco de regredir ao pré-iluminismo, em que nossa infelicidade era atribuída às profecias, ao jogo de búzios ou às cartomantes. Albert Hirschman constatou certa vez que a ideia de que uma determinada ordem social possa ser a causa da infelicidade humana é algo recente, produto da engenharia humana e não de alguma causa incontrolável como a providência divina, a crueldade de inimigos ou de um dominador injusto.

Se essa constatação, por um lado, abre espaço para a criatividade humana na construção de instituições voltadas para a realização da felicidade coletiva, por outro pode acarretar um certo ceticismo sobre essa capacidade, à medida que se reconhece que as ações humanas podem gerar efeitos não intencionados e desconhecidos e, portanto, invariavelmente desastrosos.

Já não é trivial lidar com essa inconstância que alimenta o que Freud chamou de mal-estar da civilização. Adicionar mais um elemento desestabilizador como justificativa para acirrar os ânimos pode fazer sentido geopolítico, mas não tira de nós a responsabilidade sobre a decisão a respeito de qual será “a lente do século”. Essa responsabilidade continua sendo nossa.

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