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Christian Edward Cyril Lynch

Novela sobre o fim da ditadura, 'Roda de Fogo' parece o Brasil de hoje às avessas

De volta no streaming, trama de 1986 retrata os conflitos da transição da velha ordem militar para a Nova República

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Christian Edward Cyril Lynch

Professor do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), é autor de ‘Da Monarquia à Oligarquia: História Institucional e Pensamento Político Brasileiro (1822-1930)’ (ed. Alameda), entre outros livros

[resumo] Exibida em 1986, e disponível agora no streaming, a novela “Roda de Fogo” retrata, por meio da conversão de seu protagonista à beira da morte, a transição da ditadura para a democracia, cujos impasses se refletem nos conflitos entre os personagens que simbolizam as marcas da velha ordem (assassinatos, tortura, mentiras) e os que expressam as promessas da Nova República (liberdade, justiça, igualdade), analisa cientista político.

Embora gozem de autonomia em relação à realidade, obras de arte são artefatos históricos que exprimem, em maior ou menor medida, a época em que foram produzidas. Este é o caso de “Roda de Fogo”, novela de Lauro César Muniz exibida pela Globo de agosto de 1986 a março de 198, disponível agora no Globoplay.

A trama reflete a transição da ditadura militar para a democracia. O antigo regime é retratado como um período de mentira, assassinatos, tortura, ilegalidade, hipocrisia, suborno. A Nova República surge como uma era de renovação, de abandono de um sistema antiquado de violência, mentira, reacionarismo e autoritarismo de uma classe e de uma geração que caducam. Simboliza a abertura para o outro, a esperança, o liberalismo, a verdade, a justiça, a liberdade de costumes, valores representados pelos personagens mais jovens.

Tarcísio Meira como Renato Villar em ilustração de Alexandre Teles

O enredo é engenhoso. O protagonista, Renato Villar (Tarcísio Meira), é um empresário inescrupuloso e ambicioso. É casado com a socialite Carolina D’Ávila (Renata Sorrah), o que não o impede de ter relações extraconjugais. Ele mantém à distância um filho bastardo, Pedro (Felipe Camargo), fruto de uma ligação na juventude com Maura Garcez (Eva Wilma), que no início da novela está internada numa clínica na Europa.

Os principais conselheiros do grupo econômico de Renato são o advogado Mário Liberato (Cecil Thiré), o político Paulo Costa (Hugo Carvana) e o banqueiro alemão Werner Benson (Carlos Kroeber). O mais rendoso negócio de suas empresas é a evasão ilegal de divisas em dólares para o exterior.

Um dos integrantes do grupo, Celso Rezende (Paulo José), ameaça denunciar o esquema de corrupção e, por isso, acaba assassinado. Ocorre que Celso já enviara um dossiê comprobatório das irregularidades para o juiz Marcos Labanca (Paulo Goulart).

Renato então chantageia o juiz, que repassa o dossiê à sua incorruptível substituta, Lúcia Brandão (Bruna Lombardi). O empresário se aproxima da juíza a fim de seduzi-la e subtrair-lhe os documentos. A história, contudo, passa por uma virada na altura do capítulo 20, quando ele se descobre portador de um tumor cerebral que o matará em no máximo seis meses.

A consciência da finitude desencadeia uma conversão ética, que leva Renato a abandonar sua vilania e a dedicar o tempo que lhe resta para corrigir os erros do passado e viver conforme o que chama “jogo da verdade”.

A mudança política no Brasil é o pano de fundo de toda a trama, evidente metáfora da transição para a Nova República. Não é coincidência que a primeira sequência da novela mostre Renato deixando o Ministério da Justiça em Brasília.

Dentro de uma limusine, esperam-no a esposa Carolina, o chefe da família dela, o general Hélio D’Ávila (Percy Ayres), e Paulo Costa, candidato à Constituinte, que costuram a candidatura do empresário à Presidência da República. As antipatias recíprocas entre os dois patriarcas, Antônio Villar (Mário Lago), pai de Renato, e Hélio, ilustram a complicada relação entre civis e militares dentro de um mesmo bloco de poder.

Todos os personagens em torno de Renato Villar exprimem os valores da alta sociedade dominante sob a ditadura, retratada como tradicionalista e preconceituosa. Este é o mundo dos patrões que não falam com os criados, que desprezam a classe média e que recorrem à corrupção e aos serviços sujos de profissionais do submundo.

O grosseiro ex-policial Anselmo Santos (Ivan Cândido), que serve ao esquema de Renato Villar, é um assassino profissional ligado a grupos de extermínio. Já o refinadíssimo mordomo de Mário Liberato, Jacinto Meirelles (Cláudio Curi), é ex-torturador.

Enquanto a alta sociedade está vinculada ao passado da ditadura militar, o núcleo de classe média representa as aspirações de abertura, liberdade, igualdade e honestidade. Dele fazem parte a juíza Lúcia Brandão; o jornalista Gilberto (Rodolfo Bottino); a secretária Vera Santos (Cláudia Magno), filha de Anselmo; a família abandonada por Renato Villar, chefiada por Joana Garcez (Yara Cortes), dona de botequim e descendente de anarquistas espanhóis; e a filha de Joana, Maura, que participara da luta armada e havia sido presa e torturada.

Enquanto o novo amor de Renato, Lúcia, é uma juíza, Gilberto e Maura são jornalistas. Judiciário e imprensa representam os polos renovadores de verdade e justiça que simbolizam as aspirações dos novos tempos. Helena (Mayara Magri), filha de Renato que se ligará a Gilberto, também é estudante de jornalismo. É desse núcleo que saem os eflúvios progressistas em matéria de ideologia e costumes.

Detalhes da novela sugerem o caráter fáustico do personagem de Renato Villar. Nascido em 1936, filho de um comerciante de vermífugos do interior de Minas, ele se envolveu aos 18 anos com Maura, então uma estudante de classe média de pendor progressista. É de se supor, pois, que compartilhassem as mesmas visões de mundo.

No entanto, com a radicalização política, às vésperas do golpe militar, Renato, movido pela ambição de subir na vida, parece ter feito um pacto com o diabo, de caráter inverso ao que fará 20 anos depois.

Em 1964 ele se separa de Maura e abandona o filho. Casa-se com Carolina para associar-se à tradicional família D’Ávila, cujas relações sociais são a base de seu império econômico. No novo ambiente, Renato se torna a figura autoritária, hipócrita, inescrupulosa que vemos no começo da novela.

Une-se a outras figuras representativas da classe dominante do regime militar: um advogado corrupto (Mário), um político conservador (Paulo) e um banqueiro estrangeiro (Benson). A antiga família, de poucos recursos, e o rebelde filho bastardo se tornam um estorvo para ele.

Por outro lado, alguns sinais sugerem um incômodo ético com essa vida de sucesso, como suas relações extraconjugais, a intervenção em 1970 para salvar Maura dos porões da ditadura e sua resistência em assumir uma candidatura presidencial em 1986.

A conversão radical de Renato Villar diante da consciência da morte próxima se torna mais explicável se for encarada, portanto, como um retorno aos seus valores de juventude. Sem revelar a ninguém sua doença, ele passa a trilhar um caminho da redenção pessoal. Viver conforme a verdade se torna a obsessão de Renato, que procura reconstruir sua vida.

No âmbito profissional, ele renega todas as suas relações de conveniência com seus sócios e cúmplices empresariais na prática de ilícitos. Abandona seu braço político, Paulo Costa, acusando-o de conservador e retrógrado, deixando de contribuir para sua candidatura a deputado constituinte, que acaba derrotada. Despreza seu braço jurídico e principal cúmplice, o advogado Mário Liberato, e chama de “asno” seu braço financeiro com o exterior, Werner Benson.

No campo pessoal, Renato se apaixona por Lúcia Brandão e se separa de Carolina, com quem mantinha um casamento de fachada. Tenta se aproximar da filha e reconhecer legalmente o filho bastardo. Também se abre em longas entrevistas com o jornalista Gilberto, que só poderão ser publicadas dali a seis meses (quando, presume-se, ele já estivesse morto).

O tema da busca pela verdade reaparece em outros personagens. Celso Resende Júnior (Cássio Gabus Mendes) não aceita a versão oficial da morte do pai por acidente; Roberto (Jayme Périard) não aceita o fato de seu pai, o juiz Marcos Labanca, lhe esconder a razão de ter ficado paraplégico.

A reviravolta de Renato Villar no âmbito familiar passa principalmente por resgatar suas relações com o núcleo que renegara depois de 1964. Renato vai à Europa trazer Maura da clínica psiquiátrica na qual estava internada havia 17 anos. A longa cena em que a mãe dela, Joana, chora de sofrimento e de felicidade, ao receber a notícia de que voltará a ver a filha, torturada e exilada, é certamente das mais comoventes de toda a novela.

É este núcleo que melhor representa as dores de quem estava por baixo do regime militar. Enquanto Joana criava sozinha o neto, abandonado por Renato, Maura se submetia a tratamento para superar as sequelas das sessões de tortura. Na primeira cena em que a personagem surge, passeando nos jardins da clínica italiana onde se encontra, ela carrega nos braços “Brasil Nunca Mais”, livro-inventário dos horrores contra os direitos humanos praticados pela ditadura.

Maura representa uma antiga esquerda revolucionária, agora reconciliada com os valores democráticos. “É um Brasil novo que está aí. Parece democracia de verdade”, diz. Ela descreve as eleições para a Constituinte como “um ato de redenção; ver antigos companheiros de luta eleitos”. E conclui, triunfante: “Meu voto foi minha resposta aos meus torturadores”.

Maura e Renato lutam também para resgatar o amor do filho, o problemático Pedro, abandonado por ambos na infância —ele, para subir na vida na alta sociedade; ela, para aderir à luta armada. O rapaz é o símbolo de uma juventude perdida e inconformada, produto dos conflitos entre os extremismos de direita e de esquerda no período posterior a 1964.

O personagem que melhor representa a velha ordem militar, por sua vez, é o general Hélio D’Ávila. Inspirado no presidente João Figueiredo, o patriarca da família D’Ávila é um orgulhoso e intransigente zelador dos valores tradicionais de obediência e hierarquia. Seu apartamento é decorado com esculturas de cavalo e quadros de Napoleão Bonaparte, não faltando sequer uma bandeira do Império no corredor.

Embora seu bordão seja “Eu sou terrível”, seu autoritarismo resvala frequentemente para o ridículo. Nem por isso ele deixa de ser um avô exemplar e de sofrer profundamente com o advento dos novos tempos, que fazem balançar a hierarquia e os valores tradicionais.

Hélio gradualmente perde o controle sobre a vida dos netos, que se envolvem com outros jovens de classe média, por ele considerados indignos de sua gloriosa estirpe. A certa altura seu neto, Felipe (Paulo Castelli), o culpa por não conseguir lidar com a noiva moderninha (Lúcia Veríssimo), por ter sido educado por ele a partir de valores e códigos ultrapassados de conduta.

O general se pergunta então, em um misto de perplexidade e desespero: “O que está acontecendo? O que está acontecendo? A culpa é desses liberalismos, dessa Nova República!”.

A transição do velho para o novo operada pela conversão (ou reconversão) de Renato Villar não pode, claro, ocorrer sem conflitos e resistência. Seu novo sistema da verdade é insuportável para todos os que sempre giraram em torno dele.

Sua esposa tenta evitar sua aproximação com sua antiga família; a filha não aceita a aproximação do pai com o meio-irmão; este se recusa a ser perfilhado pelo pai; e, principalmente, seus sócios conspiram para evitar a divulgação dos documentos comprobatórios de seus negócios escusos.

Símbolos da velha ordem corrupta da ditadura, Mário, Paulo e Benson se juntam contra Renato, desencadeando uma violenta espiral de conflito pelo poder que termina num processo de autodestruição. É como se eles fossem os velhos deuses do Walhalla, que precisassem ser imolados para abrir caminho a uma nova geração guiada pelo igualitarismo, pela modernidade, pela verdade, pelo amor.

Quando Renato, redimido, termina o serviço de implodir a velha ordem, pode morrer em paz. O filho que Lúcia carrega em seu ventre traz também a esperança de um mundo novo e melhor.

Hoje, quando parecemos experimentar a regressão do itinerário político que serve de fundo a “Roda de Fogo”, a novela dá o que pensar. Sugiro a Lauro César Muniz que escreva, não um remake, como anda na moda, mas um prequel da novela, que mostre a juventude de Renato Villar sob o prisma da gestação do ovo da serpente, que levaria à maré montante do autoritarismo e ao colapso do regime democrático em 1964. O grande Lauro faria, mais uma vez, obra de grande atualidade política.

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