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Poetas encontram terreno fértil no Instagram, mas sofrem para romper nicho

Com raízes no concretismo, poesia que incorpora linguagem visual do aplicativo ganha público

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Juli Manzi

Poeta e compositor, é doutor em artes pela Unicamp e professor do Centro Universitário FAAT

[RESUMO] Nos últimos anos, a poesia visual encontrou no Instagram um campo propício para sua criação e veiculação, em um movimento que revela novos artistas, incorpora o concretismo à era virtual das redes sociais —tendo em Augusto de Campos um de seus mais destacados praticantes— e leva inquietação e reflexão política a um ambiente banal e repleto de fotos de pets e pratos de comida.

Explorar criativamente a forma gráfica das palavras e o modo como as letras se apresentam tem sido um desafio realizado por poetas ao longo de séculos, da antiga Alexandria a criações sacras e profanas do mundo medieval, do simbolismo francês às vanguardas formalistas e intuitivas do século 20.

O contraste visual entre o caractere gráfico e o fundo, os diferentes tamanhos e proporções das letras e a distância entre elas, o uso dos vazios da página e os diálogos semânticos entre elementos verbais são alguns dos recursos utilizados.

Os concretistas foram os primeiros a produzir sistematicamente, a partir da década de 1950, esse tipo de poesia no Brasil, que já tinha casos isolados na obra de Jorge Fernandes, Oswald de Andrade, Vicente do Rego Monteiro e alguns outros.

A partir da década seguinte, a produção com características semelhantes cresceu em diversos lugares do país, e despontaram o poema/processo, a poesia-semiótica e uma vasta gama denominada poesia visual, com grande legado impresso, veiculado sobretudo em revistas independentes, exposições ou via arte postal.

Em seguida, essas criações ganharam as telas dos televisores e monitores com a chamada videopoesia, que conta com recursos, sobretudo de animação, analógicos e digitais. Depois, migraram para a internet, onde surgiram muitas páginas dedicadas à poesia digital.

Nos anos mais recentes, as redes sociais trouxeram ambientes propícios para a veiculação desse tipo de poesia de forma simples, autônoma e, aparentemente, democrática.

Os espaços do Instagram são perfeitos para a dinâmica de funcionamento de poemas que expandem sua característica visual, e essa plataforma tem servido como um ótimo cenário para sua exibição. Não se trata de uma nova febre ou fenômeno de público do Instagram, mas de um nicho de produção cultural que ali sobrevive muito bem e cresce.

Uma proliferação de palavras escritas digitalmente das mais variadas formas, com uso de recursos diversos. Letras estáticas e dinâmicas, sequências videográficas de textos, fontes negras sobre fundo branco ou cinza, com cromatismos aqui e ali. A presença marcante do enigma, do insight inteligente, da charada a ser resolvida. Quem passa a primeira vez pelo perfil do poeta Daniel Minchoni no Instagram fica pasmado com esse conteúdo.

Embora estivesse mais envolvido com performances presenciais de poesia, o organizador do Menor Slam do Mundo voltou a fazer experimentos gráficos para a internet depois do começo da pandemia.

“Como performer, eu entendi que o melhor jeito de performar em tempos virtuais era com o corpo do computador, que é nesses tempos o meu corpo mais presente. Passei a refletir que o jeito de ter presença virtual seria usar as ferramentas do celular que estavam à minha mão e retomei os experimentos pensando não apenas como um poeta visual, mas como um performer em estado digital, que não se interessa apenas pelo registro da performance, mas tenta experienciar a mídia da forma mais potente e intuitiva possível.”

O uso do Instagram por poetas que exercitam formas expandidas de poesia está, sem dúvida, na contramão das finalidades originais do aplicativo. “Quando o Instagram foi projetado, estavam pensando nas pessoas compartilharem fotos do cachorro, do novo corte de cabelo, da comida ou da última viagem realizada. Nisso, lá vem o poeta e bota no meio a indeterminação, o estranhamento, a crítica social, o incômodo e outras tantas propriedades que soam como uma espécie de antítese para o uso esperado, prosaico e banal dessas redes sociais”, diz o artista e pesquisador Fabio Fon.

Autor de poemas em diferentes linguagens, Fon observa que é necessário ao poeta considerar as condições técnicas da plataforma. “Outro desafio está na necessidade de se adequar às especificidades técnicas que o meio impõe, como a duração do poema em vídeo e as proporções das imagens, o que muitas vezes significa que criações pensadas em outros meios terão que ser refeitas ou adaptadas.”

Sem dúvida, a poesia no Instagram incorpora características próprias do aplicativo e elementos de sua linguagem. Minchoni fala de “poememes” como a possibilidade de se produzir uma “mensagem mais objetiva, criar interações mais rápidas, fazendo com que um poema fure o medo que se tem da poesia como algo enigmático, a ser compreendido”. “Quando menos a pessoa espera, já percebeu que a poesia pode ser parte de sua vida e algo muito potente, como o prazer pelo conhecimento, o amor à invenção e à criação de linguagem.”

Em um cenário cultural virtual e plural, poetas de outras gerações, décadas e mídias, como Tadeu Jungle, André Vallias e Gastão Debreix dividem o espaço do Instagram com outros mais jovens, como Arthur Moura Campos, Fabio Navarro, Ericson Cruz, Marcelo Sahea, Ana Persona, Preto Matheus, Coletivo Transverso, Paulo Aquarone, Renato Negrão, Anderson Oliveira e Marina Rima.

É nítido que o Instagram agrega público para esse tipo de poesia, mas isso ainda depende muito do percurso dos algoritmos do aplicativo e das razões para as quais são programados. As postagens de poesia, normalmente, não são impulsionadas ou patrocinadas e seguem o caminho dos nichos, como observa a poeta Rita Balduino.

“O que eu percebo é a criação de bolhas de interesse, mas talvez isso seja o natural, à medida que é humanamente impossível acessar tudo o que se publica. As quantidades possíveis através das redes sociais são da ordem das máquinas, não dos seres humanos. Por exemplo, uma única hashtag de poesia concreta tem mais de 40 mil publicações, uma hashtag de poesia visual mais de 200 mil publicações. É impossível visualizar tudo, mas, com certeza, será fonte de extrema ansiedade para quem tentar acompanhar o ritmo dos algoritmos.”

O diálogo, a ampliação de laços e a formação de redes entre poetas também são outros benefícios trazidos pelo Instagram. “As redes sociais e a arte digital, de forma geral, tornam mais proeminente a visualidade da palavra, e o Instagram favorece uma divulgação espontânea dos poemas que amplia o diálogo entre artistas, democratizando a produção”, afirma a poeta Anne Courtois.

Fabio Fon, contudo, relativiza a veracidade dessa democratização. “Esse uso não esperado é aceito pelas plataformas até o ponto no qual seus interesses comerciais não sejam contrariados. O poeta que ultrapassar esta linha será sumariamente censurado, o que significa que este, definitivamente, não é um espaço livre.”

Lucio Agra, professor do Centro de Cultura, Linguagens e Tecnologias Aplicadas da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, diz ver um aumento na produção desse tipo de poesia no Instagram que, segundo ele, possui suas raízes, inegavelmente, no concretismo.

“O que tenho visto é um crescente interesse. Quem porventura dissesse em outros tempos que o que a poesia concreta fez obsolesceu está sendo desmentido. Cada nova volta do parafuso traz insuspeitados movimentos e usos. Naturalmente, não se trata mais da poesia concreta programática, isso nem poderia ser. Trata-se da desassombrada incorporação da poética concreta no dia a dia da expressão artística como mais um traço fundante da criação.”

Concretistas e artistas influenciados pela poesia concreta marcam presença no Instagram. O perfil de Augusto de Campos, um dos pioneiros do movimento, tem quase 30 mil seguidores. Para o curador Daniel Rangel, que trabalhou em exposições em homenagem aos 90 anos de Augusto, o poeta “continua sendo um farol a se seguir, sempre”.

“O perfil dele no Instagram funciona não só como uma plataforma de divulgação dos trabalhos que fez ao longo desses 70 anos de poesia, mas como local de divulgação das novas coisas que vem fazendo nos últimos tempos, com poemas políticos e obras que mostram toda a sua juventude”, afirma.

Curador de exposições individuais e coletivas com a obra de Arnaldo Antunes, Rangel comenta também o perfil do artista: “Ele tem um Instagram que é desses que conseguem falar para além dos conhecidos. A gente acaba no Instagram como dentro de uma bolha, e o Arnaldo consegue furar essa bolha porque tem uma enormidade de seguidores e usa essa plataforma para divulgação de música (discos, lives, recados etc.), mas vem cada vez mais colocando poesia dentro desses conteúdos digitais. O perfil dele é como uma plataforma multidisciplinar em que você ouve música, lê poesia, recebe uma mensagem social, um conteúdo político, e isso tem tudo a ver com o multiartista que ele é”.

Chama a atenção a quantidade de poemas que, em muitos desses perfis, criticam as políticas do governo federal. Esse engajamento lembra o papel desempenhado pela poesia visual como veículo de combate ao totalitarismo durante o período da ditadura militar no Brasil, com muitas obras de resistência publicadas em revistas alternativas e independentes.

“Em um cenário tão aterrorizante como o que estamos testemunhando, somado a um sentimento brutal de opressão vindo de setores poderosos da sociedade, está posto um momento de ruptura institucional e social. A poesia política que trafega nas redes sociais, concorrendo nos nossos feeds com closes de cachorrinhos fofos e fotogênicos pratos de comida, tem o papel de ocupar circuitos de modo imprevisível, confrontando a ideologia dominante do meio”, diz Fabio Fon.

Com uma visão igualmente crítica, Daniel Minchoni adverte: “Receio que muito dessa poesia engajada que temos hoje esteja mais interessada no engajamento dos likes que na inquietude do questionamento político. Quando se trata de temas muito atuais, a chance de ter mais repercussão em um poema ou post gera esse tipo de situação”.

Autor de poemas engajados, ele reconhece a gravidade do momento. “Esse é um dos governos mais horríveis que já tivemos, tanto em matéria de administração e corrupção como gestão da vida e de questões políticas nacionais e internacionais. É lamentável, então acho natural que as pessoas se manifestem contra ele o tempo todo.”

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