Descrição de chapéu África

Por que Frantz Fanon, intelectual das revoluções na África, inspira lutas contra o racismo

Pesquisador discute obra do psiquiatra, que disseca vínculos entre capitalismo, colonialismo e questão racial

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Ilustração de Frantz Omar Fanon para ilustríssima

Ilustração de Frantz Fanon Jairo Malta

Deivison Faustino

Professor do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), campus Baixada Santista, é autor de "A Disputa Em Torno de Frantz Fanon" (Intermeios)

[RESUMO] "Escritos Políticos" e "Por uma Revolução Africana" revelam como Frantz Fanon combinou a análise dos efeitos psíquicos do racismo e do colonialismo com o engajamento nas lutas de libertação dos países africanos nos anos 1950. Intelectual orgânico da Revolução Argelina, o psiquiatra legou um pensamento vivo e voltado para o futuro, que pode iluminar os vínculos entre capitalismo e questão racial e inspirar movimentos emancipatórios.

O livro “Escritos Políticos” é, junto com o célebre e recém-lançado “Por uma Revolução Africana”, um dos mais preciosos registros do pensamento vivo de Frantz Fanon (1925-1961). Elaborados sob o calor explosivo das lutas de libertação da Argélia, os dois livros exprimem o desenvolvimento do pensamento do autor, desde “Pele Negra, Máscaras Brancas” (1952) até seu último livro, “Os Condenados da Terra”, publicado no ano da sua morte.

É verdade que a tese advogada por Cedric Robinson a respeito de uma suposta fragmentação entre um jovem Fanon, supostamente “pequeno burguês fenomenológico” de “Pele Negra”, e um Fanon “maduro” e “revolucionário” de “Os Condenados da Terra” não sobrevive a uma análise dos escritos da curta vida do autor. Ainda assim, é evidente o amadurecimento do seu pensamento durante os dez anos que separam o primeiro do último livro.

Adiciona-se a isso a fama internacional conferida pelo prefácio de Jean-Paul Sartre a “Os Condenados da Terra” entre as décadas de 1960 e 1980 e, sobretudo, o destaque oferecido pelo filósofo francês ao tema da “violência revolucionária” no pensamento de Fanon. Essa pecha lhe reservou um lugar de destaque entre a esquerda revolucionária e/ou terceiro-mundista da época, que, no entanto, resultou em um silêncio impactante a respeito de outros temas presentes em sua obra.

Ocorre que, posteriormente, quando houve uma perda de hegemonia das perspectivas revolucionárias no pensamento progressista, o pensamento de Fanon foi desaparecendo do espectro teórico internacional, e o autor passou a ser lembrado, no máximo, como um político de contribuições marcadas por um tempo e um espaço que já não existiam mais.

Esse ostracismo só foi rompido com a emergência do chamado pensamento pós-colonial no final do século 20, uma vertente que recolocou a questão colonial na ordem do dia. Essa retomada de Fanon, no entanto, efetivou-se a partir de uma inversão na escolha de qual das suas obras seria a mais relevante.

Para o filósofo Achille Mbembe, “se ‘Os Condenados da Terra’ era o livro da época da práxis revolucionária, de ‘Pele Negra, Máscaras Brancas’ pode dizer-se que é um dos livros de cabeceira da viragem pós-colonial no pensamento contemporâneo”.

O sociólogo Stuart Hall chegou a se perguntar, em uma conferência em 1995: “Por que Fanon? Por que agora? E por que ‘Pele Negra, Máscaras Brancas’, na retomada póstuma de Fanon?”. Sua resposta é que o livro tratava de temas amplamente discutidos naquele período, como desejo, subjetividade e identificação.

O psiquiatra e escritor Frantz Fanon
Retrato do psiquiatra Frantz Fanon - Divulgação

O grande problema dessa fragmentação do pensamento de Fanon é que acaba por obliterar justamente sua originalidade e sua radicalidade: seu caráter de oximoro. O termo emprestado da linguística, mobilizado pelo filósofo ganense Ato Sekyi-Otu, tem a pretensão de indicar a síntese dialética de elementos aparentemente contrários, como a subjetividade e a objetividade, a cultura, a economia, o desejo.

A originalidade de Frantz Fanon está em evidenciar os elementos psíquicos, ideológicos e subjetivos que compõem a violência objetiva da dominação e da exploração colonial, mas, sobretudo, ele advoga pela compreensão da centralidade do colonialismo para o movimento desigual e combinado de universalização do capital.

Fanon, testemunha ocular do neocolonialismo, argumentou que a configuração colonial não se limitou aos períodos primitivos de acumulação de capitais, mas persistiu como pressuposto do capitalismo em seus estágios mais avançados.

As conquistas coloniais e a consequente subordinação dos povos não europeus ao capitalismo tiveram como função não apenas a universalização do capital, mas também a criação de zonas “externas” de transferência das principais contradições capitalistas para a sua periferia, permitindo assim uma “gestão” domesticada da luta de classes nos centros.

Leia capítulo de 'Escritos Políticos'

Sem as colônias como principais depositárias das contradições sociais criadas pela ordem do capital, a gestão burguesa da luta de classes nos centros capitalistas não seria possível. Essa transferência, no entanto, seria inviável sem a existência do racismo e um complexo ideológico de dominação com efeitos sobre a psique, a cultura e as formas de existir do colonizado.

São esses dois movimentos que Fanon denuncia não serem entendidos adequadamente pela esquerda democrática e socialista europeia e pelos seus satélites nas periferias capitalistas.

É interessante observar, nesse sentido, que a crítica intransigente de Fanon à esquerda tem como objetivo exigir o melhor dela, e não a ruptura. Ainda assim, é possível perceber, tanto nos “Escritos Políticos” quanto em “Por uma Revolução Africana”, a denúncia do eurocentrismo, que se expressa tanto na importação mecânica de análises europeias para as colônias quanto na sua pretensão de tutelar as lutas antirracistas.

Encontramos em “Escritos Políticos”, portanto, uma ponte fundamental entre o seu primeiro livro, “Pele Negra”, e o último, “Os Condenados”, evidenciando a continuidade de suas preocupações. Se o jovem psiquiatra em formação diagnosticava a interdição colonial do reconhecimento do negro como parte da humanidade e seus efeitos psíquicos, a explosão necessária à “transformação do mundo” ainda não havia acontecido.

Foi apenas com a eclosão das lutas de libertação que seu diagnóstico encontrou um remédio socialmente disponível, que ele acreditava ser final e definitivo. Em “Escritos Políticos” vemos, pois, as entranhas abertas de um colonialismo agonizando diante da luta anticolonial e em via de parir novas sociabilidades. O livro expressa o desenvolvimento de um pensamento vivo diante dos acontecimentos da Revolução Argelina.

Algumas informações históricas e políticas que permearam a redação dos textos de “Escritos Políticos” podem ser úteis. Com exceção do último, todos os capítulos foram originalmente publicados no jornal El Moudjahid, um importante veículo de propaganda revolucionária da FLN (Frente de Libertação Nacional) da Argélia. Fanon atuava como médico-chefe do hospital psiquiátrico de Blida-Joinville quando eclodiu a guerra pela independência da Argélia, cujo marco foi a insurreição de 1º de novembro de 1954.

O psiquiatra, que já havia clamado anteriormente por “uma reestruturação do mundo”, encontrava-se, enfim, diante das possibilidades históricas de cura social para as feridas psíquicas geradas pelo colonialismo. Sem hesitar, tomou partido do processo em curso, primeiro clandestinamente e depois oficialmente, convertendo-se progressivamente em intelectual orgânico da Revolução Argelina.

A FLN, posteriormente renomeada GPRA (Governo Provisório da Republica da Argélia), na melhor definição da palavra “frente”, agregou a vanguarda política e teórica que conduziu a Argélia à sua independência, em 1962, meses depois da morte precoce de Fanon.

Embora não tenha vivido para ver o dia seguinte da revolução e seus desdobramentos, Fanon presenciou as disputas políticas travadas no interior da FLN.

Esse aspecto é decisivo para se contextualizar as posições dos artigos no jornal El Moudjahid. No plano político interno, tratava-se, em primeiro lugar, de afirmar um nacionalismo secular e humanista no interior de uma revolução baseada na identidade muçulmana. O marxismo, “estendido” à situação colonial, foi o instrumento inquestionável que permitiu a análise concreta do colonialismo.

No plano externo, tratava-se de legitimar, tanto para o povo argelino quanto para a comunidade internacional em geral, a necessidade, a viabilidade e a legitimidade da Revolução Argelina.

Nunca será demasiado lembrar que a FLN recorreu à política das armas —e, depois, ao terrorismo— apenas após sucessivos fracassos políticos pelas vias democráticas: todas as tentativas legais de participação argelina na política instituída foram recebidas com violência pelo governo francês.

Um estudo instigante sobre o assunto foi levado a cabo por Walter Günther Lippold. O autor sugere dois elementos fundamentais para a compreensão do contexto do jornal El Moudjahid e das posições de Fanon ali: de um lado, uma confluência anticolonial no plano internacional africano e asiático e, de outro, uma mudança de orientação política que redefiniu o papel da propaganda revolucionária no interior da revolução.

Em relação ao primeiro tópico, pode ser útil lembrar que não apenas a Argélia entrava em guerra contra a metrópole, mas também ela própria se inspirava em recentes derrotas totais ou parciais do colonialismo europeu, especialmente o francês —sobretudo com a Conferência de Bandung, na Indonésia (1955), e os realinhamentos políticos em torno de um projeto terceiro-mundista.

Internamente, a chegada de Fanon à Redação do jornal, após o exílio na Tunísia —ele deixou a Argélia com sua família após romper com a administração francesa do país—, coincidiu com uma mudança de orientação tática nos rumos da revolução: a guinada da ação militar para a ação política, na qual o jornal teria uma função fundamental.

Outra missão importante designada a Fanon era atuar em prol da união dos movimentos anticoloniais do Magreb e da África Subsaariana. O intelectual orgânico da Revolução Argelina não apenas fora delegado em 1958 no Congresso Pan-Africano de Acra como manteve contato com revolucionários como o nacionalista angolano Holden Roberto.

O objetivo do Governo Provisório da Republica da Argélia era criar uma frente subsaariana de solidariedade à luta argelina, mas sobretudo —seguindo uma teoria que lembra a aposta leninista na convulsão social anti-imperialista a partir de seus elos débeis— criar as condições para o fortalecimento das lutas anticoloniais em todo o continente africano.

A perspectiva de emancipação proposta era um internacionalismo que ultrapassasse a dimensão racial, religiosa ou nacional da luta anticolonial em direção a uma solidariedade entre todos os povos submetidos ao imperialismo e ao colonialismo no mundo.

Assim, propunha um eixo Bandung-Acra, que não apenas deslocasse para o Sul o polo Leste-Oeste, apresentado pela Guerra Fria, mas, sobretudo, que identificasse, insuflasse e se deixasse guiar pelos interesses dos “verdadeiros” condenados em sua autodeterminação —os mesmos ignorados pelas teorias e políticas de classe nos centros capitalistas e, principalmente, por seus seguidores eurocêntricos pseudorrevolucionários nos contextos em que o capitalismo se estruturou a partir da colonização.

Essa posição rendeu uma grande receptividade ao pensamento de Fanon em países fora da África, como a Itália e o Irã. Graças ao marxista italiano Giovanni Pirelli, neto do fundador e herdeiro da empresa de pneus, os textos fanonianos encontraram uma calorosa recepção em setores da esquerda italiana, muito antes de serem conhecidos no universo anglófono —Pirelli figura como o idealizador original de “Escritos Políticos”.

Outro exemplo de camaradagem internacional, com grandes implicações políticas, é a relação de Fanon com o intelectual militante da Frente Nacional Iraniana Ali Shariati. O intelectual iraniano traduziu inúmeras de suas obras para o farsi. Em seu tratado “Islamologie”, cita Fanon como um “amigo genial” e “uma das mais belas figuras heroicas daqueles tempos vis”.

Apesar de sua desconfiança “e até oposição” ao nacionalismo islâmico proposto por Shariati, Fanon se tornou uma das principais bases teóricas da Revolução dos Aiatolás no Irã. A tradução do pensamento do psiquiatra martinicano por Shariati teve influência em todo o espectro político iraniano, sendo reivindicado pela direita, pela esquerda, e, principalmente, pelo aiatolá Ruhollah Khomeini, o líder da revolução.

Ao considerar o contexto brasileiro contemporâneo, podemos nos perguntar, como faz a cientista política Jane Anna Gordon: “Qual a relevância de se retomar o pensamento de Frantz Fanon, um revolucionário, em um período em que a revolução não está mais na ordem do dia?”.

A busca por respostas, no entanto, não logrará êxito se não acertarmos as contas com uma série de equívocos que foram cometidos no passado e se repetem em um loop quase infinito.

Em “Escritos Políticos”, assim como em “Os Condenados”, a preocupação com o racismo e a racialização é um elemento inseparável tanto do diagnóstico quanto da profilaxia revolucionária proposta com entusiasmo.

É espantoso —ou previsível, seria melhor dizer— constatar, por exemplo, que a recepção de Fanon pelas esquerdas brasileiras nas décadas de 1960 e 1970 tenha ocorrido sem uma discussão mais cuidadosa, não apenas sobre o estatuto teórico do racismo, mas principalmente sobre sua contribuição para a análise concreta da constituição particular do capitalismo brasileiro.

Foi preciso uma nova geração de intelectuais negros leitores de Fanon, formados nas fileiras do MNU (Movimento Negro Unificado) no final dos anos 1970, para que os temas do racismo e seus efeitos psíquicos e culturais fossem associados ao seu legado teórico, mas essa recepção também não se deu sem perdas.

A retomada contemporânea do pensamento de Frantz Fanon encontra novas possibilidades e caminhos, não menos desafiadores. As mudanças sociais, econômicas e culturais que nos separam do contexto de “Escritos Políticos” são enormes.

Alguns fantasmas enfrentados por Fanon, no entanto, ainda hoje nos assombram: a dificuldade das esquerdas de entender a relação entre capitalismo, colonialismo e racismo; as permanências e atualizações do (neo)colonialismo e suas diversas manifestações de colonialidade do ser, do saber e do poder; as dificuldades de estabelecer uma relação dialética entre a identidade e a diferença em um projeto anti-imperialista e emancipatório; e, sobretudo, o desafio do tempo.

O horizonte temporal defendido por Fanon é o futuro. A luta anticolonial —e antirracista, se quisermos— em sua tarefa de “voltar atrás e apanhar o que ficou perdido” não é, em Fanon, um retorno ao passado pré-colonial objetivamente irreabilitável e, muito menos, um apego a uma ideia metafísica e, portanto, a-histórica de identidade que desconsidera ou invisibiliza, de um lado, as diferenças a ela implícitas e, de outro, aquilo que a experiência humana tem de universal.

Longe de advogar um universalismo abstrato que ignora a importância histórica das lutas antirracistas em uma crítica das desigualdades sociais e econômicas, Frantz Fanon nos instiga a buscar saídas dialéticas emancipatórias atentas às diferenças sociais de gênero, raça, orientação sexual, nacionalidade, religião, entre outras, sem, ao mesmo tempo, se perder ou se reduzir à elas. Esse talvez seja um dos maiores desafios para as atuais gerações no Brasil.


"Escritos Políticos" é publicado pela primeira vez no Brasil

A editora Boitempo lança na quarta-feira (16) a primeira edição brasileira de "Escritos Políticos". O livro reúne artigos jornalísticos de Frantz Fanon publicados entre 1957 e 1960 no jornal El Moudjahid, ligado à Frente de Libertação Nacional da Argélia.

Escritos políticos

  • Preço R$ 49 (160 págs.)
  • Autor Frantz Fanon
  • Editora Boitempo

Por uma Revolução Africana

  • Preço R$ 64,90 (272 págs.); R$ 39,90 (ebook)
  • Autor Frantz Fanon
  • Editora Zahar
  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.