Descrição de chapéu
Jason Tércio

Recém-descoberta, terceira fase de Revista de Antropofagia revela lacunas da história do modernismo

A poucos meses do centenário da Semana de 22, trajetória do movimento ainda está para ser contada

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Jason Tércio

É autor de oito livros, entre eles a biografia de Mário de Andrade, “Em Busca da Alma Brasileira” (Estação Brasil, 2019)

[RESUMO] A poucos meses do centenário da Semana de Arte Moderna, história do modernismo brasileiro ainda está para ser contada de forma ampla e profunda, avalia biógrafo de Mário de Andrade. Recente descoberta de uma terceira fase da Revista de Antropofagia indica o vasto potencial a ser explorado a respeito do movimento dos anos 20 que deixou enorme legado cultural.

Por estranho que pareça, faltando oito meses para a Semana de Arte Moderna completar cem anos (ocorreu em fevereiro de 1922), a história do modernismo brasileiro nunca foi contada em livro, embora seja o movimento cultural mais discutido no país e o que deixou legado mais relevante e abrangente.

A primeira e única tentativa de preencher essa lacuna foi feita em 1958 pelo poeta e jornalista Mário da Silva Brito, com “História do Modernismo Brasileiro”, um esforçado relato, porém restrito aos antecedentes da Semana e com limitação de fontes, basicamente orais e artigos jornalísticos. Ele não escreveu um planejado segundo volume.

A inexistência de uma história do modernismo é, no fundo, sintoma da problemática relação dos brasileiros com seu passado e sua memória coletiva. Por isso, durante muito tempo cristalizou-se no imaginário nacional sermos um povo com “índole pacífica”, que vivíamos em uma democracia racial, entre outras mistificações.

Pesquisas sobre o modernismo começaram a ganhar impulso apenas a partir da década de 1960. O crítico Wilson Martins publicou em 1961 “O Modernismo”, mas advertindo que não era uma história literária do período e sim a história da “ideia modernista”, do processo intelectual de criação.

De lá para cá, temos tido milhares de estudos teóricos, a maioria resultante de atividades acadêmicas em diferentes universidades do país. São textos importantes, alguns publicados em livro, e todos trazendo reflexões que contribuíram para um melhor entendimento do modernismo em seus diferentes aspectos: o pluralismo temático, formal e geográfico, as correlações estéticas dos grupos, o tensionamento político-social do período.

Todavia, o foco principal desses estudos são, naturalmente, as questões teóricas específicas do movimento ou da obra de algum integrante canônico. Interpretações com perspectiva histórica ainda se confinam a capítulos de livros didáticos historiando a literatura brasileira no seu conjunto.

Os eixos temáticos mais valorizados na produção acadêmica são as vertentes estéticas e geográficas do movimento, a participação feminina (Tarsila do Amaral, Anita Malfatti e Zina Aita), as viagens dos modernistas pelo Brasil, sua correspondência passiva e ativa, obras canônicas de autores individuais, a mediação das revistas.

Apesar de vida curta e design gráfico modesto, as revistas foram fundamentais na difusão e consolidação do ideário modernista. Depois da primeira, Klaxon, que durou nove edições, a Revista de Antropofagia foi a publicação mais importante e a mais persistente, responsável em grande parte pela centralidade que essa vertente assumiu no movimento.

Com oito páginas, teve dez edições, entre maio de 1928 e fevereiro de 1929. Reergueu-se no mês seguinte, reduzida a uma página semanal do Diário de São Paulo, com o título Antropofagia - 2ª Dentição. Durou 15 edições, de 17 março a 1º agosto de 1929.

Nenhum estudo sobre o modernismo, nem mesmo Oswald de Andrade em suas inúmeras entrevistas e crônicas, tampouco Raul Bopp nos seus livros sobre a antropofagia, jamais mencionaram uma terceira fase. Por isso, sempre foi ponto pacífico nos estudos acadêmicos que a Antropofagia havia acabado na segunda dentição.

Entretanto, em minhas pesquisas para escrever a biografia de Mário de Andrade (“Em Busca da Alma Brasileira”), lançada no final de 2019, descobri por acaso uma terceira fase da Antropofagia, a qual denominei “terceira dentição”.

Encabeçada por um título em letras minúsculas, antropofagia – órgão dos antropófagos de s.paulo, ocupou mais de uma página de uma revista semanal do Rio de Janeiro, entre 29 de agosto e 5 de dezembro de 1929. Era uma revista de variedades, com 64 páginas e um nome exótico, O Q A, dirigida e editada pelo jornalista Victorino de Oliveira.

A coordenação da página antropofágica era feita por Clóvis de Gusmão, jovem jornalista paraense radicado no Rio, autor de poemas de qualidade duvidosa, modernista entusiasmado e colaborador a partir da segunda dentição.

Quando foi lançada a terceira dentição, Oswald estava em transição política e sentimental. Casado com Tarsila, mantinha uma relação extraconjugal com Pagu (Patrícia Galvão) e começava a se inclinar para a esquerda. No entanto, era ainda ligado, por amizade, ao hegemônico Partido Republicano Paulista, representante das oligarquias mais conservadoras, e apoiava seu candidato à Presidência, Júlio Prestes.

Já havia se passado mais de um ano do lançamento do Manifesto Antropófago, e Oswald estava querendo realizar no Rio, em setembro de 1929, o Primeiro Congresso Brasileiro de Antropofagia.

Na programação, debates de teses sobre impunidade do homicídio piedoso, substituição do Senado e da Câmara por um Conselho Técnico do Poder Executivo, nacionalização da imprensa, organização tribal do Estado, supressão das academias e sua substituição por laboratórios de pesquisa.

Oswald era, antes de tudo, um debochado, e seu maior paradoxo é que ele próprio nunca escreveu nenhum texto antropofágico, exceto o manifesto. A antropofagia, apesar da nobre intenção de retomar “o verdadeiro espírito de brasilidade”, não foi, a rigor, um movimento artístico-literário, e sim um conceito, um rótulo novo, brasileiro, para designar experiências milenares.

Seu postulado —assimilar criticamente as matrizes culturais internacionais para produzir obras originais— sempre foi praticado, no mínimo desde o século 14. Nessa época, os artistas plásticos e escritores da Itália começaram a devorar a cultura clássica da Grécia arcaica e a regurgitaram para criar o Renascimento.

A maior virtude de Oswald foi seu espírito livre e agitado. Graças a isso, a antropofagia persistiu e foi tão voraz que precisou de três dentições.

A terceira transmite uma percepção bem diferente dessa corrente estética, mas tem pelo menos dois pontos em comum com a primeira e a segunda dentições: a irreverência e o ecumenismo intelectual.

Se na primeira edição da Revista da Antropofagia havia a presença do verde-amarelo e futuro integralista Plínio Salgado junto com o comunista Oswaldo Costa, na última fase a mistura era não apenas ideológica, mas também estilística.

Página da Revista de Antropofagia, de 1929
Página da terceira dentição da Revista de Antropofagia, publicada na revista semanal carioca O Q A entre 29 de agosto e 5 de dezembro de 1929 - Reprodução

Coerente com a primeira frase do manifesto —“Só a antropofagia nos une”—, a terceira dentição publicada na revista O Q A incluiu todo tipo de colaborador: o parnasiano Alberto de Oliveira, o ultraconservador Gustavo Barroso, até Coelho Neto (com um soneto!), ao lado de antropófagos de raiz, como Raul Bopp, Oswaldo Costa, Pagu e o próprio Oswald, além de Andrade Muricy e Cecília Meireles, ambos do grupo católico carioca Festa, e modernistas independentes, como Manuel Bandeira, Jorge de Lima, Guilherme de Almeida.

O segundo número teve mais de duas páginas, com poemas de Álvaro Moreyra, prosa do gramático João Ribeiro, Di Cavalcanti escrevendo que “a pintura antropofágica está fadada a vir a ser na mentalidade atual o estigma do talento da minha geração”.

No quarto número Pagu propôs que se comessem os ricos (“O mundo marcha para o primitivismo. Hoje, porém, os sardinhas evolucionam bem rapidamente. São tubarões. Comamos, pois, os tubarões!”).

Os poemas de Oswald ali publicados são inéditos em livro, de acordo com Gênese Andrade, professora de literatura brasileira na Faap e pesquisadora de sua obra. Ela desconhecia essa terceira fase da antropofagia e pretende examinar se textos de outros autores também são inéditos. A única colaboração de Mário de Andrade na edição de 24 de outubro é o poema “preta bem pretinha”, também nunca publicado em livro.

A partir de 5 de dezembro, a revista O Q A teve melhorias gráficas e mudança administrativa. A página antropofágica foi extinta. Não combinava com o perfil do novo diretor e editor, Cândido Mendes de Almeida Jr., que dirigia também a revista Excelsior, ligada à Igreja Católica e que apoiava abertamente o fascismo italiano.

A última edição antropofágica teve, entre outros colaboradores, Renato Kehl, fundador e mentor da eugenia no Brasil, cujo texto dizia que “a antropofagia é o caminho mais curto para a eugenia”.

página da Revista de Antropofagia, de 1929
Página da terceira dentição da Revista de Antropofagia, publicada na revista semanal carioca O Q A entre 29 de agosto e 5 de dezembro de 1929 - Reprodução

Os dez números da terceira dentição constituem uma documentação que pode provocar mudanças em algumas interpretações da antropofagia. De modo geral, a imprensa modernista não era apenas instrumento de propaganda dos respectivos grupos, mas também complemento das suas ideias.

Outros materiais inéditos sobre o modernismo poderão um dia ser encontrados. Três deles, considerados perdidos até agora, são valiosíssimos historicamente: uma carta de Mário de Andrade a um parente, Tio Pio, relatando as primeiras impressões do escritor sobre a Semana de Arte Moderna; outra longa carta, de Anita para Tarsila, sobre o mesmo assunto; e o filme da viagem de Mário à Amazônia com dona Olívia Guedes Penteado, que levou uma câmera.

Portanto, é necessária uma revisão historiográfica e documental para que o país tenha, enfim, uma história do modernismo brasileiro, com base em pesquisas rigorosas, sólida metodologia, documentação inédita, uma abordagem multidisciplinar, não se restringindo à literatura, mas abarcando todas as artes representadas: artes plásticas, música, fotografia (pouca gente conhece as mais de 500 fotos tiradas por Mário de Andrade), incluindo nomes subestimados e esquecidos, como a pintora Zina Aita.

Redescobrir o modernismo e contar a sua história pode nos ajudar a encontrar respostas à seguinte pergunta: por que o país que teve Mário e Oswald de Andrade, Portinari, Di Cavalcanti, Villa-Lobos, Sérgio Buarque, Tarsila, Anita, Câmara Cascudo, Lobato, Manuel Bandeira, Drummond e outros chegou ao fundo do poço atual?

A cultura se modernizou —é diversificada e miscigenada, cosmopolita e nacional, popular e erudita, folclórica e urbana—, mas o Estado brasileiro continua “passadista”, parnasiano. Por isso, o país continua nesse impasse entre a civilização e a barbárie.

Uma das maiores lições da geração modernista foi abrir caminhos em meio a dificuldades políticas, sociais, econômicas e culturais muito piores que as de hoje.

Assim nos legou, direta e indiretamente, os movimentos artístico-literários mais inovadores e consequentes no Brasil: concretismo, cinema novo, tropicália, poesia marginal, vanguarda paulista de Arrigo Barnabé, rock Brasília, mangue beat e até a bossa nova. Tom Jobim já disse em uma entrevista: “Eu vim do Mário de Andrade”.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.