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Piero Sbragia

Documentários dissecam brutalidade da ditadura pelo olhar das mulheres

Lúcia Murat e Carol Benjamin quebram narrativa masculina sobre o período e mostram que horror brasileiro não acabou

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Piero Sbragia

Jornalista, documentarista e mestre em educação, arte e história da cultura. Autor de “Novas Fronteiras do Documentário: entre a Factualidade e a Ficcionalidade” e diretor dos curtas “República das Saúvas” e “Uma Bala”

[RESUMO] "Ana. Sem Título", que estreou nesta quinta-feira (29), e "Fico Te Devendo uma Carta sobre o Brasil" exploram o protagonismo de mulheres durante a ditadura militar e a repressão que sofreram. Para autor, obras revelam um Brasil como projeto de país em destruição, em que o horror permanece no presente.

Há várias conexões, além do tema claro, entre os documentários "Ana. Sem Título", de Lúcia Murat, e "Fico Te Devendo uma Carta sobre o Brasil", de Carol Benjamin: ambos são escritos, produzidos, dirigidos e conduzidos por mulheres.

Essa subjetividade feminina ajuda a quebrar um pouco a narrativa quase sempre masculina sobre a ditadura militar no Brasil. Os dois filmes exploram outras memórias sobre os anos de chumbo, principalmente das vivências da repressão no feminino, uma perspectiva necessária e historicamente com pouca visibilidade.

Manifesto certo incômodo para escrever, pelo meu privilégio de gênero em uma sociedade machista, mas recorro a bell hooks (ela pede que se escreva em minúsculas para destacar o conteúdo e não a pessoa) e a ideia de que nós, homens, somos companheiros de luta das mulheres. É justamente essa experiência de luta compartilhada que reforça o potencial transformador das narrativas femininas sobre a ditadura.

Amelinha Teles, em sua “Breve História do Feminismo no Brasil”, lembra que as mulheres militantes políticas entre 1964 e 1985 subverteram a ordem patriarcal vigente. Torturadores e agentes da repressão odiavam mulheres que fugiam do estereótipo da submissão, da dependência masculina e da incapacidade de tomar decisões sozinhas.

Em 10 de dezembro de 2014, a presidenta Dilma Rousseff (PT) recebeu o relatório da Comissão Nacional da Verdade. No capítulo 10 do primeiro volume, existem centenas de denúncias da prática de violência sexual contra mulheres sequestradas e torturadas. Na lista de torturadores, há 377 homens e nenhuma mulher.

Lúcia Murat, que foi uma das vítimas, fez parte da seleção oficial da 44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo em 2020 com "Ana. Sem Título", filme que nasce justamente da necessidade de investigar, descobrir e revelar mulheres protagonistas no período da repressão.

O roteiro foi construído, entre documentário e ficção, a partir de cartas trocadas entre artistas mulheres da América Latina. A voz da diretora, que costura a narrativa, lembra que os responsáveis pelos crimes hediondos no Brasil nunca foram julgados, condenados ou presos.

A primeira parada é em Cuba. Imagens do presente evocam o texto do passado, escrito pela protagonista Ana em 1968, sobre a importância de tratar a criatividade como uma questão social e não individual. “Necessitamos de um povo criativo para enfrentar as adversidades”, diz ela.

Próxima parada: Buenos Aires. As cartas revelam a preocupação das mulheres em ficarem unidas durante a “extrema situação política”, seja nas afinidades ou mesmo nas divergências. Belo exercício de empatia e diálogo. Quem de nós hoje, nesse Brasil com pandemia e pandemônio, preocupa-se em ter afeto com quem pensa diferente?

A atriz e poeta Roberta Estrela D’Alva personifica Ana, a brasileira que é descrita nas cartas como “provocadora”. As intervenções artísticas feitas por Roberta no filme são impactantes. A liberdade das mulheres era um perigo aos regimes totalitários, já que subvertiam a ordem patriarcal, sedimentada nas bases da ideologia ditatorial/militar.

Em quase 200 anos de existência, o Exército Brasileiro nunca teve uma mulher no comando. Inclusive, só na década de 1980 as mulheres passaram a ser admitidas no Exército. A primeira turma de mulheres só foi efetivamente matriculada em 1992 na Escola de Administração do Exército, em Salvador, na Bahia. Por que os militares têm tanto medo das mulheres?

Na ditadura militar, todo brasileiro era suspeito ou subversivo em potencial até provar o contrário. Muitos eram detidos sem que a família sequer soubesse o motivo, caso de César Benjamin. Preso aos 17 anos de idade, sendo que mais de três anos em solitária, César é o fio condutor de "Fico Te Devendo uma Carta sobre o Brasil", menção honrosa no 25º Festival Internacional de Documentários É Tudo Verdade. É a estreia de Carol Benjamin, filha de César, como diretora de longa-metragem.

A experiência pessoal e singular da família ajuda a tirar das sombras aquilo que os porões da ditadura militar tentam esconder. O pai prefere não se envolver no filme da filha. Ao tornar pública essa história, silenciada ao longo de décadas, Carol encontra uma maneira de enfrentar a persistência do silêncio como ferramenta de apagamento da memória. A narrativa é poderosa.

Quem protagoniza a história? Carol, a filha diretora com perguntas sobre o passado? César, o pai em silêncio? Ou Iramaya, a avó da diretora que sempre foi a guardiã das memórias e narrativas do filho preso?

"Fico Te Devendo uma Carta sobre o Brasil" não é um documentário com respostas, mas essencialmente um filme com —e sobre— questionamentos, não apenas de uma família dilacerada por um silêncio ensurdecedor, mas de um Brasil como projeto de país em destruição.

Nunca foi tão importante ser documentarista. Nossa crise, como nação, não é só política e econômica. É essencialmente existencial. O horror não faz parte apenas do passado. O horror está no presente!

Além de resistir e lutar, não podemos mais permitir que o passado seja usurpado de nós. Somente assim poderemos compreender o que se passa hoje, neste Brasil negacionista, cheio de ódio e desigualdades.

Ao final de "Fico Te Devendo uma Carta sobre o Brasil", Carol Benjamin reflete sobre o silêncio como a borracha da memória, como um grande pacto de esquecimento. “Moram nos silêncios as raízes das grandes mágoas familiares, destruindo pontes entre as pessoas e seus afetos”. Hoje somos governados pelos ressentimentos e frustrações, no plural mesmo.

Grande parte dos registros das atividades de tortura, sequestro e extermínio, praticadas pelos militares durante a ditadura, foram destruídos. A sociedade civil, até hoje, não tem acesso a todos os arquivos da repressão, como se o Brasil tivesse trancado o passado dentro de si.

Tudo o que vivemos não pode ter sido em vão. Não dá mais para falar de repressão, tortura, ditadura e ignorar as novas e necessárias narrativas sobre o passado, principalmente sob o olhar das mulheres.

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