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Marcelo Pimentel Jorge de Souza

Generais arrastam Forças Armadas para a política e governam o país com 'partido militar'

Se ocorrer instabilidade entre jovens oficiais, será antes pelo exemplo de comandantes que por influência de Bolsonaro

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Bolsonaro cumprimenta Villas Bôas

Ilustração de Edson Sales sobre foto de Pedro Ladeira 11.jan.2019/Folhapress

Marcelo Pimentel Jorge de Souza

Mestre em ciências militares pela Eceme (Escola de Comando e Estado-Maior do Exército) e oficial da reserva do Exército

[RESUMO] Autor argumenta que "partido militar", grupo informal e coeso, com ambições políticas, liderado por generais formados na década de 1970, governa hoje o país. Comandantes instrumentalizam e arrastam as Forças Armadas para a política pelo exemplo sobre os subordinados, e só a disciplina interna ou a imposição do poder civil poderá reestabelecer a muralha de apartidarismo e constitucionalidade que ora desmorona.

"A Marinha do Brasil, o Exército Brasileiro e a Força Aérea Brasileira pertencem ao povo.” Esta frase é a espinha dorsal da nota assinada pelos comandantes das Forças Armadas e pelo general ministro da Defesa em 7 de julho. Manifestavam “repúdio veemente” a um representante do povo, o senador presidente da CPI que apura eventuais responsabilidades de um governo chefiado e ocupado por militares da ativa e da reserva —todos subordinados aos signatários da nota.

Um dos focos da CPI é a gestão da crise sanitária pelo Ministério da Saúde, dirigido, durante a maior parte da pandemia, por oficiais da ativa do Exército, que tiveram suas nomeações para cargos civis idealizadas, autorizadas ou consentidas pelo comandante da respectiva Força, provavelmente avalizado pelo Alto-Comando, no primeiro semestre de 2020.

Pouco destacada no debate nacional, a nota constitui mais uma evidência de que o Brasil vive nova versão de fenômeno sócio-histórico originado no Império e que se imaginava superado pela consolidação do Estado democrático de Direito fundado pela Constituição de 1988 —promulgada no mesmo ano em que o atual presidente deixava a carreira militar para começar sua trajetória política. A própria eleição do capitão-deputado para o cargo que lhe dá autoridade suprema sobre as Forças Armadas é um sintoma, não sua causa.

O fenômeno é composto de três elementos que interagem. O primeiro é a politização das Forças Armadas, processo caracterizado pelo ativismo militar de natureza política, partidária ou não, em proporção extravagante ao mero exercício de direitos políticos individuais.

O segundo, espécie de corolário do anterior, é a militarização da política e da sociedade, que vem adotando práticas, códigos e valores militares, sempre em medidas que vão além do contato funcional entre os “mundos” civil e militar.

Como dinamizador de ambos os processos, dando-lhes direção e sentido, o último elemento: a ação de um grupo informal, coeso, hierarquizado, disciplinado, com características autoritárias e pretensões de poder político —até de natureza hegemônica—, dirigido por oficiais-generais formados durante os anos 1970, o período mais duro do regime autoritário.

São exatamente os que ocuparam ou ocupam os principais cargos políticos do governo e dos quais o brasileiro conhece por nome e sobrenome, menos pelo que falam sobre defesa nacional e mais pelo papel político e até partidário que exercem.

Embora o “partido militar” (“partido fardado” ou “partido dos militares”) não se confunda com as Forças Armadas, ele as instrumentaliza como principal referência para conquistar e se manter no poder. Este é o principal objetivo prático da militância partidária.

A presença no governo de 14 dos 17 generais que integravam o Alto-Comando do Exército em 2016 —todos formados na Aman (Academia Militar das Agulhas Negras) nos anos 1970— é apenas uma das inúmeras situações que demonstram esse fenômeno. Percebendo-o, será possível analisá-lo de modo que a sociedade civil, as instituições de Estado e a política se posicionem adequadamente diante de seu retorno.

Assim como um partido formal, o partido militar apresenta características que o identificam como um grupo político, ainda que não tenha registro. A informalidade e o fato de ter chegado ao poder sem ruptura política, como nas ocasiões anteriores, talvez contribuam para dificultar a sua percepção.

O partido militar não deve ser confundido com uma mera ala militar, em oposição à ala ideológica, no governo do capitão com vice general. É bem mais que isso: há dois anos e meio, o Brasil possui, de fato, um governo militar —ou um governo de generais— controlado pelo partido militar.

Ainda que assuma papel central e catalisador do fenômeno, o presidente não é a figura dirigente do partido. A direção é composta por um núcleo restrito de militares, que controla, orienta e gerencia o governo, o presidente e as narrativas sobre seus papéis políticos.

Para tanto, o grupo usa conexões com meios de comunicação tradicionais e ferramentas de redes corporativas e pessoais para conduzir a percepção que a população tem da realidade —a narrativa dominante—, cujo controle, uma vez perdido, pode dificultar a conquista e a manutenção do objetivo comum a todo partido: o poder.

Alguns integrantes desse núcleo exercem ou exerceram os cargos mais próximos ao presidente —de vice-presidente, ministros e presidentes de estatais— e são responsáveis, como uma verdadeira direção partidária, pela distribuição de poder, que se materializa na nomeação de militares para ocuparem a cabeça, o tronco, os membros, as entranhas e a alma da máquina pública.

Generais da “geração 1970” reabilitaram a imagem do capitão Bolsonaro nos quartéis. Eleito o colega, ingressaram por vontade própria, em massa, no governo mais militarizado desde a ditadura (1964-1985).

É equivocado considerar as camadas intermediárias e subalternas de militares como os principais alvos ou vítimas da ação política imprópria do presidente sobre as Forças Armadas. Também é improcedente apontar riscos dessas camadas hierárquicas, desbordando a cadeia funcional de comando, agirem em uma ruptura institucional promovida ou incentivada pelo capitão-presidente.

Generais e coronéis politizam os militares e as Forças Armadas ao mesmo tempo que militarizam a política e a sociedade. Desta vez, não há nem sequer a desculpa de que o fazem provocados pelas “vivandeiras alvoroçadas”, expressão empregada pelo marechal Castello Branco em agosto de 1964 ao referir-se aos civis que reclamavam de seu governo excessivamente militarizado.

São generais e coronéis, não capitães, que se colocaram como protagonistas políticos dentro e fora do governo. São generais, não sargentos, que protagonizam as principais crises governamentais e até mesmo atos de indisciplina. Mesmo que ocorra instabilidade entre capitães, será antes pelo exemplo da alta oficialidade que pela alegada penetração do presidente nessas camadas. Por enquanto, a juventude militar tem uma noção muito clara da disciplina e do espaço institucional que deve ocupar.

Também é falha a argumentação de que a imagem das Forças Armadas não se associa fortemente à do governo pelo fato de os militares ocupantes de cargos políticos estarem majoritariamente na reserva. Militares inativos não são como quaisquer outros profissionais aposentados, mas servidores sujeitos às normas éticas e a situações que os tornam referência para militares da ativa e da reserva.

Não se pode esquecer que brado oficial do Exército foi empregado como slogan eleitoral da chapa militar à Presidência em 2018 sem qualquer objeção do comando e que generais da reserva atuaram como verdadeiros cabos eleitorais dessa e de outras candidaturas de oficiais das Forças Armadas.

As inúmeras evidências da existência do partido militar podem ser apresentadas segundo categorias presentes nos partidos políticos formais: memória histórica e vocação institucional, base ideológica, pautas corporativas e de interesse específico, direção partidária encarregada da distribuição de poder, controle do governo, quadros partidários e formação de lideranças, base eleitoral e militante.

A politização dos militares não se confunde com a mera expressão pessoal de opiniões políticas, que sempre houve, nem com a ocupação de alguns cargos por militares na reserva em administrações governamentais, absolutamente normal se relacionada a funções afins à profissão.

O fenômeno se caracteriza pela postura da grande maioria dos integrantes das Forças Armadas diante do quadro político. Sob o exemplo de generais, militares parecem comportar-se como militantes de um verdadeiro partido político.

Além da ascensão profissional da “geração 1970” ao generalato a partir dos anos 2000 —e ao Alto-Comando a partir da década seguinte—, algumas situações podem balizar análises mais detalhadas do processo: as eleições presidenciais de 2010 e 2014; a Comissão Nacional da Verdade, pelo flagrante descontentamento de alguns comandantes; a participação das Forças Armadas na Missão das Nações Unidas para Estabilização no Haiti; e o excessivo emprego das Forças Armadas em operações de GLO (Garantia da Lei e da Ordem), uma decorrência da experiência no Haiti que incentiva a militarização da segurança pública.

Independentemente das motivações e causas do ressurgimento do fenômeno, o protagonismo político de militares ativos e inativos é impróprio e arriscado. Divisões típicas da política podem refletir nas próprias instituições, gerando cisões que prejudicam o cumprimento de suas missões constitucionais. Não se resolvem polarizações, próprias da legítima luta política, aderindo a um polo nem agindo fora das atribuições institucionais, por melhores que sejam as intenções.

Além disso, o Estado confere arcabouço legal e institucional para o poder (político) civil —responsável pela supervisão do poder militar— encaminhar soluções às crises do país, e não há cabimento em interpretações equivocadas da Constituição que se referem ao poder moderador das Forças Armadas.

Se a sociedade identifica militares na direção política do país, é possível que uma eventual insatisfação com o governo comprometa os fundamentos de Forças Armadas de qualquer nação: a confiança e o respeito da sociedade independentemente de posições políticas, partidos, crenças religiosas, visões ideológicas ou classes sociais. Não é se declarando “pertencentes ao povo” —um equívoco teórico e um perigo institucional— que as Forças Armadas cumprem a missão que o povo lhes impôs na Constituição.

É necessário reconhecer que as Forças Armadas empreenderam um sensato afastamento da política e de governos nas últimas décadas, ocupando os espaços institucionais que dão sentido à missão. É nesses espaços que militares devem ser valorizados pela sociedade que integram e a que servem. Foram as lideranças que arrastaram as Forças Armadas da política para o quartel —pelo exemplo.

Entretanto, é inevitável constatar que algo vem mudando. Hoje, não é difícil perceber que militares voltaram a movimentar-se na direção da política e de governos, comprometendo os alicerces da muralha que deve manter as Forças Armadas de países livres e democráticos em seu espaço institucional: neutralidade política, imparcialidade ideológica, isenção funcional, apartidarismo, profissionalismo e constitucionalidade.

Da mesma forma que foram as lideranças, pelo exemplo, que conduziram as Forças Armadas a seu lugar devido nos 30 anos seguintes ao fim da ditadura, têm sido as lideranças, também pelo exemplo, que vêm arrastando milhares de militares para a política e para os governos e, com isso, transpassando essa muralha.

​“A palavra convence, mas o exemplo arrasta”

Esta conhecida máxima sintetiza o fundamento pedagógico do aprendizado militar. É o exemplo que define o “ethos”, qualifica o valor moral da tropa e permite ao comandante —em todos os escalões— exercer sua liderança. O exemplo é um fator importante na produção do poder de combate, que transformará a eficiência operacional em luta e esta, na desejada vitória —não na política, na eleição ou em governos, mas em quartéis, campos de instrução e teatros de operações.

O exemplo é a ferramenta para a obra conjunta de militares e civis na reparação da muralha. Quando os generais saírem da política e de governos, o coronel, o capitão, o sargento e o soldado sairão também. Isso deve ser feito de cima para baixo na escala hierárquica e por disciplina intelectual consciente do cumprimento das normas existentes, que definem a impropriedade da vinculação das Forças Armadas com a política e dos militares com governos.

Há menos de um ano, um general da ativa, ocupante de cargo de natureza civil e política no governo, declarou que seu papel era de mera obediência pessoal ao presidente: “É simples assim: um manda e o outro obedece”. Não há dúvidas de que ordens devem ser cumpridas, especialmente quando se trata do militar em relação à autoridade militar, afinal, a palavra convence.

Dessa forma, seria simples que generais e coronéis inativos cumprissem a norma escrita e desvinculassem suas designações hierárquicas de suas posições políticas ou ideológicas, conforme determina o Estatuto dos Militares. Hoje, mais que o descumprimento dessa norma em redes sociais, por exemplo, chama atenção a falta de ação das autoridades encarregadas de impor a disciplina entre os militares.

É simples cumprir normas. Difícil, lamentável e preocupante é vê-las descumpridas impunemente e, pior, por quem deveria zelar pelo seu cumprimento e dar exemplo. Tudo isso sem causar nenhuma indignação cívica, ação jurídica ou política.

É saindo da política e de governos por disciplina intelectual consciente ou por imposição do poder civil que os militares e as Forças Armadas refundarão os alicerces da muralha.

Como é o voto que lastreia o poder civil nas democracias, ele deve ser, também, o principal instrumento para sustar o fenômeno dinamizado pelo partido militar. O voto fundamenta, quase sempre, o melhor caminho para resolver problemas políticos.

Nesse sentido, há três categorias de votos que podem contribuir, desde já, para resolver essa questão: o voto de parlamentares, para estabelecer limites claros na participação de militares na política; o voto de juízes, individuais ou colegiados, para fazer cumprir as normas eventualmente desrespeitadas por militares; e o voto do eleitor, para escolher projetos em que o papel dos militares é executar políticas em suas áreas de atuação —e não formular políticas de governo.

A geração de jovens oficiais mira seus chefes, interpretando suas decisões, avaliando suas posturas e seguindo o exemplo de suas condutas, muito mais poderoso que meras palavras. Do que fizerem chefes na ativa e ex-chefes na reserva agora dependerá o que o tenente de hoje fará quando for general em 2050.

Comandará uma divisão dando exemplo a seus subordinados para cumprir o dever ou chefiará o Ministério da Saúde ou a Casa Civil formulando e executando políticas excêntricas ao dever militar?

Emitirá ordens do dia sobre as batalhas vencidas ao longo da história ou sobre o golpe de 1964 e a ditadura, chamando-os de marcos da democracia, como aconteceu em 2020?

Assinará ordens de operações para o cumprimento da missão constitucional das Forças Armadas ou notas oficiais repudiando falas de deputados e senadores, como fizeram generais em setembro de 1968 e julho de 2021?

Osório, vitorioso comandante da Força Terrestre durante a Guerra da Tríplice Aliança, pode ser inspiração para atuais e futuras lideranças.

Guiando pessoalmente seus subordinados em uma operação em 1866, como exemplo que arrastou seus comandados à vitória no combate, o general fez questão de consignar essas palavras em sua ordem do dia: “É fácil a missão de comandar homens livres, bastar mostrar-lhes o caminho do dever”.

Osório demonstrou que o dever militar é simples: “A palavra convence, mas o exemplo arrasta”.

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