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Lucas Bulgarelli

Saída do armário de Eduardo Leite é tão política quanto homofobia de Bolsonaro

Para entender declaração do governador, é preciso analisar elaboração de identidades políticas LGBTQIA+ de direita

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Lucas Bulgarelli

Doutorando em antropologia social na USP e diretor do Instituto Matizes

[RESUMO] Questionar em 2021 se o governador do RS tem pretensões políticas ao se assumir gay é como questionar se Bolsonaro lucra politicamente ao ser homofóbico. A resposta às duas perguntas é sim. Para entender o significado do anúncio de Eduardo Leite, é preciso encarar o modo como a elaboração de identidades políticas LGBTQIA+ de direita tem ocorrido recentemente.

Quando o governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite (PSDB), anunciou sua homossexualidade durante entrevista concedida a Pedro Bial, havia na declaração ao menos duas razões que permitem entender o episódio como político.

A primeira remete a um mote de luta conhecido entre militantes LGBTQIA+: toda saída do armário é um ato político. Para que pessoas LGBTQIA+ pudessem se reconhecer em identidades como gay, lésbica, bissexual, trans e travesti, foi necessário antes afirmar politicamente cada uma dessas categorias. O ato de se assumir de certa maneira recompõe até hoje a mesma lógica da afirmação sexual que fundou o movimento homossexual brasileiro: para existir, é preciso estar visível.

Já a segunda razão deriva de um contexto mais recente. Foi possível acompanhar nos dias seguintes à declaração uma proliferação de posicionamentos favoráveis e contrários à atitude de Leite, que iam das direitas às esquerdas.

Enquanto alguns consideravam corajosa a decisão do chefe do Executivo de um estado que havia demonstrado nas urnas em 2018 sua preferência por Jair Bolsonaro, outros criticavam justamente o fato de ter sido Leite um importante apoiador da campanha do atual presidente, mesmo quando já era de conhecimento público o uso político da perseguição a pessoas LGBTQIA+ de que se valia então o candidato do PSL.

Para que Leite pudesse se assumir hoje como governador gay, o que foi necessário ter acontecido antes?

Há 40 anos, tal declaração seria impraticável. Os discursos mais difundidos em torno da homossexualidade ainda a definiam como doença, desvio moral ou pecado. O preconceito e a discriminação contra pessoas LGBTQIA+ estavam presentes tanto em práticas cotidianas como em violações do Estado, responsável pela perseguição e pelo desaparecimento de ativistas homossexuais durante a ditadura civil-militar brasileira (1964-1985).

Para que a homossexualidade ganhasse significado, foi necessário dotá-la de legitimidade política e social. Esses foram os esforços de pessoas como Jovanna Cardoso, Indianare Siqueira, João Silvério Trevisan, James Green, Keila Simpson, João W. Nery, Marisa Fernandes, Brenda Lee, Katia Tapety, Fernanda Benvenutti, entre outros que, como eles, ajudaram a inscrever no vocabulário político e social as identidades sexuais e de gênero que hoje conhecemos.

Se, nos anos 1980, pessoas LGBTQIA+ eram forçadas a mentir sobre sua orientação sexual ou sua identidade de gênero no trabalho, na família e entre amigos, e se viam vítimas de rondas policiais noturnas que invadiam bares, restaurantes e clubes exigindo carteira de trabalho como prova correção (aconteceram muitas prisões por suposto crime de vadiagem em casas noturnas frequentadas por homossexuais), as décadas seguintes ofereceram condições um pouco mais favoráveis para que os movimentos de defesa da diversidade sexual e de gênero pudessem demandar visibilidade, respeito e direitos.

De lá para cá, o que acompanhamos foi uma progressiva expansão dos debates sobre o tema na sociedade brasileira. Isso ocorreu por meio da constituição de políticas sociais e também por um amplo —porém incompleto— processo de conscientização sobre a necessidade de valorização da diversidade sexual e de gênero como premissa democrática para a convivência entre cidadãos.

A criação de políticas públicas de maior alcance, como o Brasil sem Homofobia (2004), e a consolidação de mecanismos de articulação de direitos como os conselhos, conferências e coordenadorias LGBTQIA+ foram alguns dos caminhos trilhados por movimentos sociais que possibilitaram inserir o debate sobre as sexualidades na agenda política e na arena pública.

A proliferação de festivais, exposições e circuitos artísticos e culturais sobre sexualidade em países como EUA e Reino Unido, em que também circulavam empresários e artistas brasileiros, propulsionou o surgimento de um incipiente mercado GLS (gays, lésbicas e simpatizantes) no Brasil ao longo dos anos 1990.

Bares, casas noturnas, restaurantes, hotéis e viagens destinadas a pessoas LGBTQIA+ se multiplicaram, atraindo diferentes públicos que passaram a acessar e a se identificar com um universo formado não apenas por direitos e demandas políticas, mas por hábitos, estilos, modos de expressão, vocabulários e tendências. Em outras frentes de articulação, constituíam-se as paradas do orgulho LGBTQIA+, marco internacional da luta pela visibilidade e respeito dessas identidades.

A afirmação política da diversidade sexual e de gênero não ocorreu, portanto, espontaneamente. Para que hoje possamos tratar a sexualidade como um tema político, foram investidos esforços de militantes e coletivos em diferentes momentos nos últimos 40 anos.

Não à toa, parte das críticas direcionadas a Leite questionaram se sua declaração seria motivada meramente por cálculo político ou eleitoral. Conforme aumentava a repercussão do episódio, no entanto, tornava-se cada vez mais evidente que essa não deveria ser uma pergunta, e sim uma premissa.

Questionar em 2021 se um político eleito e provável presidenciável tem pretensões políticas ao se assumir gay em um programa de televisão a que milhões de brasileiros assistem é como questionar se Bolsonaro lucra politicamente ao ser homofóbico. A resposta às duas perguntas é sim.

Ilustração - Bartolomeu

A polêmica em torno da saída do armário anunciada por políticos distantes ou até contrários à defesa dos direitos da população LGBTQIA+ não é nova. O episódio, na verdade, compõe o último capítulo de um debate cada vez mais incontornável: o que acontece quando políticos invocam sua orientação sexual ou identidade de gênero sem necessariamente defender os direitos LGBTQIA+? E quando expressões, argumentos e ideias forjadas por movimentos sociais progressistas e de esquerda passam a navegar pelo vocabulário de políticos de direita?

Um dos capítulos anteriores foi divulgado por esta Folha ainda em 2018, quando soubemos por meio de pesquisa Datafolha que 29% das pessoas LGBTQIA+ pretendiam votar em Bolsonaro. De saída, o número revelava aquilo que já sabíamos: em uma democracia, a orientação sexual e a identidade de gênero não estão atreladas a uma orientação ideológica.

Porém, o dado também gerou dúvidas. Afinal, por que pessoas LGBTQIA+ decidiram votar em um candidato homofóbico? Embora a pergunta admitisse mais de uma resposta, com ela soubemos que o voto não se definia apenas em razão da identidade sexual e de gênero dos eleitores.

Para esse terço dos LGBTQIA+ brasileiros, outros fatores pesaram mais na balança: o combate à corrupção, a aversão a candidaturas de esquerda e o desprezo pelo movimento LGBTQIA+ eram alguns deles.

Ainda em 2016, algumas campanhas das eleições municipais já ofereciam pistas sobre o fenômeno. Apresentando-se como candidato gay, negro e contrário a políticas de igualdade racial e diversidade sexual e de gênero, figuras como Fernando Holiday ganharam destaque, relevância e apoiadores apostando politicamente na produção de provocações e declarações polêmicas sobre temas como raça, gênero e sexualidade.

A fórmula utilizada por Holiday já havia sido testada anteriormente em ações promovidas pelo MBL (Movimento Brasil Livre). Apenas naquele ano, a mobilização suscitada pelo grupo foi capaz de influenciar o fechamento de uma exposição de arte em Porto Alegre e de uma exibição artística em São Paulo. Campanhas de perseguição promovidas pelo grupo também resultaram no cancelamento, em diversas cidades, da peça teatral “O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu”, protagonizada pela atriz Renata Carvalho.

A atuação política de grupos liberais e de partidos de direita tornaram evidente como o ataque ao gênero e à sexualidade serviram como ferramenta com finalidades variadas. A produção de engajamento político, o recrutamento de novos adeptos e apoiadores e as vantagens eleitorais que cada polêmica gerava eram evidentes ganhos políticos.

Durante as eleições de 2018, os candidatos apresentados pelo MBL ou mesmo candidatos do PSL não eram os únicos entre aqueles que, assim como eles, descobriam como valia a pena se contrapor aos direitos das mulheres e das pessoas LGBTQIA+.

Como legado desse processo, a agenda de gênero e sexualidade defendida por movimentos sociais de diversidade sexual e de gênero acabou se tornando não apenas prejudicada, mas também, de modo aparentemente contraditório, absorvida às avessas por parte da direita. Expressões como “ideologia de gênero” começaram a compor o vocabulário de setores que entendem os esforços para a valorização da diversidade sexual e de gênero como um risco à sua própria sobrevivência política.

Mais recentemente, o artifício de piratear noções como gênero e sexualidade passou a ser também praticada pelo governo Bolsonaro, sobretudo em ministérios como Mulher, Família e Direitos Humanos, Educação e Relações Exteriores. Isso também implicava considerar que as lutas e os estudos de gênero e sexualidade não estavam sendo apenas atacados e deslegitimados, mas também falsificados, gerando abusos semânticos e efeitos aparentemente eficazes quando utilizados por seus opositores com a intenção de desconstituí-los politicamente.

Apesar de todos os esforços para desmentir as notícias falsas veiculadas na campanha de 2018, a produção de mentiras apelativas e desejáveis permitiu a partidos e campanhas eleitorais a ativação de pânicos e a manipulação de incertezas. Cada brasileiro que acredita até hoje que Fernando Haddad, candidato petista no pleito de 2018, distribuiria mamadeiras eróticas em creches e escolas se eleito é a prova viva de que, para uma notícia falsa ser entendida como verdadeira, basta que alguém acredite nela.

Se os esforços de coletivos e partidos para eleger um candidato LGBTQIA+ nos anos 1990 tinham como motivo a necessidade de produzir políticas e garantir direitos a essa população, o que tem ocorrido com a recente proliferação de políticos e influenciadores LGBTQIA+ de direita caminha na direção contrária.

A aposta na lógica da representatividade política LGBTQIA+ tem servido atualmente a políticos conservadores, grupos religiosos e partidos de direita para a implementação de uma agenda política que ignora ou até mesmo antagoniza com as lutas e os direitos LGBTQIA+.

O que é novo não é o fato de existirem pessoas LGBTQIA+ de direita, já que elas sempre existiram. A novidade desse fenômeno consiste em como pessoas LGBTQIA+ de direita têm se reconhecido como tal sem as mesmas reservas que poderiam ter no passado.

Isso tem feito com que a aposta na representatividade de pessoas LGBTQIA+ em espaços políticos de decisão venha sendo utilizada, atualmente, em eleições de defensores e de opositores dos direitos e das lutas LGBTQIA+.

A composição legislativa mais recente da Câmara de Vereadores de Belo Horizonte é um exemplo disso. Uma narrativa possível para o resultado eleitoral no Legislativo da capital mineira em 2020 é que os dois vereadores mais votados eram engajados em temáticas LGBTQIA+, mas o que ocorreu no pleito vai além: enquanto Duda Salabert (PDT) concorreu com uma agenda marcada pela valorização da diversidade sexual e de gênero, Nikolas Ferreira (PRTB) foi escolhido em razão de seu alinhamento com o bolsonarismo e de sua defesa de valores conservadores.

Para entender o significado do anúncio de Eduardo Leite, portanto, não basta apenas retornar às origens da produção política da homossexualidade. É também necessário encarar o modo como a elaboração de identidades políticas LGBTQIA+ de direita tem ocorrido recentemente. Ao se afastar de Bolsonaro, Leite também move outras peças de um jogo que tem sido jogado tanto por políticos LGBTQIA+ de direita que se mantêm fiéis ao bolsonarismo como por aqueles que já abandonaram o capitão e pularam para fora do barco.

No país em que o presidente classifica como “maricas” os governadores que aderiram, em seus estados, a medidas sanitárias de combate à Covid-19, a declaração de Leite não deve ser menosprezada. Ao afirmar que gostaria de ser reconhecido como um governador gay, porém, o pedido de Leite oculta um dilema. Reconhecê-lo como tal significa esperar dele comprometimento com os direitos e as lutas de sua comunidade ou o completo oposto?

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