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Robert Muggah e Barbara Fernandes

Polícia e sociedade têm muito a ganhar com uso de câmeras em uniforme

Tecnologia tem potencial para controlar uso excessivo da força por agentes, mas não vai resolver sozinha a violência

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Robert Muggah

Diretor de Pesquisa do Instituto Igarapé e especialista em segurança e desenvolvimento

Barbara Fernandes

Diretora de Finanças e Tecnologia do Instituto Igarapé

[RESUMO] Acoplar câmeras no uniforme de policiais pode reduzir a letalidade das corporações e aumentar a confiança da população. A tecnologia, que vem sendo implementada no Brasil, precisa vir acompanhada de regras claras de supervisão da ação das polícias e de compartilhamento de imagens com a sociedade.

A instalação de câmeras no uniforme de policiais brasileiros reacende um antigo debate no Brasil. Dados preliminares de uma experiência recente em São Paulo sugerem que o uso de câmeras corporais pode fortalecer a segurança pública, reduzir a letalidade policial e elevar a confiança da população 一especialmente em comunidades mais pobres一, resultando em um policiamento de maior qualidade.

Embora seja um ativo poderoso, esse tipo de tecnologia não vai resolver sozinha todos os problemas de violência e insegurança. Ela precisa vir acompanhada de regras claras de coordenação, supervisão e ética sobre seu impacto social. De fato, as últimas iniciativas de uso de câmeras corporais em outros países oferecem lições importantes para o Brasil.

Pesquisas mostram que tanto policiais quanto cidadãos agem de modo diferente quando há uma câmera no uniforme. Um dos primeiros estudos randomizados sobre uso corporal de câmeras aconteceu na Califórnia e concluiu que a solução pode reduzir à metade o uso da força e diminuir em até dez vezes a quantidade de reclamações da população contra a ação da polícia. Desde então, foi realizada uma série de estudos nos EUA e em outros países, e os resultados são variados.

A tendência do uso de câmeras corporais acelerou no Brasil. A tecnologia de videomonitoramento do trabalho policial pode se tornar obrigatória no Rio de Janeiro, depois do voto do ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal, na chamada ADPF das Favelas. Ele menciona os equipamentos em uma lista de medidas que devem ser adotadas para reduzir a violência policial.

Segundo a ação, que tramita no plenário virtual da Corte, o Estado vem descumprindo os critérios definidos pelo Judiciário para operações policiais durante a pandemia da Covid-19. O ministro Alexandre de Moraes pediu vista, interrompendo o julgamento.

Fachin determinou a instalação do equipamento em até 180 dias. No início de junho de 2021, o governador do Rio, Claudio Castro, sancionou um projeto de lei que obriga a implementação de câmeras no uniforme e em aeronaves policiais. Vetou, no entanto, o acesso às imagens por familiares de vítimas e também o prazo máximo estipulado para instalação da ferramenta para todas as forças de segurança.

Essa não é a primeira vez que a polícia do Rio de Janeiro se depara com a urgência de adotar câmeras corporais. Desde 2016, a Human Rights Watch recomenda a adoção de câmeras no uniforme a partir de um projeto piloto desenvolvido pelo Instituto Igarapé.

No estado mais populoso do país, São Paulo, a experiência começou a sair do papel no ano passado e ganhou força em junho. Faz parte de um programa mais amplo de uso proporcional da força, apresentando resultados importantes: a Polícia Militar de São Paulo registrou o menor número de mortes em oito anos, com uma queda de 33% na letalidade em comparação com a média dos cinco meses anteriores.

Em junho de 2021, não houve registro de mortes em confrontos em 18 batalhões da PM que utilizavam o equipamento em SP. O uso de armas letais e não letais despencou 56%, e as acusações de desacato tiveram uma redução de 48% no período. Por outro lado, não foram vistas mudanças significativas nos casos em que a situação já havia escalado antes da chegada dos policiais. São números impressionantes que precisam ser analisados detidamente, principalmente para proteger populações vulneráveis.

A tecnologia não só ajuda a impedir a escalada de situações que terminariam em violência. Ao mesmo tempo, aumentam as ocorrências atendidas pela PM que resultam em uma investigação formal do caso pela Polícia Civil.

É o que mostra um estudo aleatorizado, realizado por pesquisadores da Universidade de Warwick em parceria com Instituto Igarapé sobre o uso de câmeras corporais em Santa Catarina, conduzido entre setembro e outubro de 2018. Além da redução de uso excessivo da força e desacato, o número de casos de violência doméstica registrados pela Polícia Militar cresceu, levando a um aumento de 66% nas ocorrências encaminhadas para delegacias quando os agentes usavam câmeras.

Atualmente, mais de 2.000 policiais de Santa Catarina têm suas atividades diárias monitoradas em vídeo. A iniciativa é parte de um projeto maior do instituto, o Cop Cast, iniciado em 2013 e com experiências e estudos acumulados no Brasil, na África do Sul, no Quênia e nos Estados Unidos.

Há uma série de questões que devem ser observadas para garantir que a queda na letalidade e no uso da força sejam permanentes e não apenas soluços estatísticos. É fundamental ter clareza no gerenciamento e armazenamento das informações, critérios transparentes de compartilhamento, respeitando a privacidade das partes envolvidas.

Acima de tudo, essa tecnologia deve ter como objetivo aprimorar o controle do uso da força pelas polícias por meio da implementação de protocolos de atuação transparentes, e da promoção de uma mudança cultural que compatibilize a atuação das polícias com as garantias democráticas.

Em outras palavras, o modo como as câmeras e as imagens são usadas e compartilhadas com a sociedade faz toda a diferença no sucesso do uso da tecnologia. Depois da operação policial com o maior número de mortes na história, no Jacarezinho, as polícias e o Ministério Público do Rio de Janeiro precisam reconhecer de uma vez por todas a gravidade da letalidade policial no Estado.

Já passou, e muito, da hora de enfrentar o inaceitável uso excessivo da força 一incompatível com uma sociedade democrática, com um debate técnico e sem medo. Os policiais têm muito a ganhar com a implantação da solução, inclusive maior confiança da sociedade, a quem é seu dever proteger.

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