Se Facebook não mudar, eleições 2022 terão avalanche de fake news, dizem autoras

Jornalistas apontam incoerência de Zuckerberg em moderação de postagens de políticos e combate à desinformação

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Mark Zuckerberg aparece de terno em uma televisão, ao lado de um púlpito de madeira com duas pessoas

O diretor-presidente do Facebook, Mark Zuckerberg, testemunha em subcomitê do Congresso Americano, em Washington Mandel Ngan - 29.jul.20/Pool via Reuters

Patricia Campos Mello
Patricia Campos Mello

Repórter especial e colunista. Vencedora do Prêmio Internacional de Liberdade de Imprensa e do Prêmio Rei da Espanha. Formada em jornalismo pela USP, tem mestrado pela Universidade de Nova York e foi correspondente em Washington de 2006 a 2010

[RESUMO] Em entrevista à Folha, autoras de livro recém-lançado sobre os bastidores do Facebook argumentam que ​a empresa poderia conciliar seu modelo de negócio com a proteção da democracia. Existem grandes entraves políticos para regulamentar gigantes da internet, e, se Zuckerberg não alterar algoritmo da plataforma, as próximas eleições devem ser mais uma vez marcadas por desinformação, afirmam.

Se o Facebook não mudar suas políticas, as próximas eleições de meio de mandato nos EUA e o pleito presidencial no Brasil, em 2022, devem sofrer uma avalanche de desinformação e tentativas de interferência. Esse é o alerta de Cecilia Kang e Sheera Frenkel, autoras do livro “Uma Verdade Incômoda: Os Bastidores do Facebook e Sua Batalha pela Hegemonia”, lançado nesta sexta-feira (27) no Brasil.

As autoras, repórteres do jornal The New York Times, afirmam que a rede social poderia mudar seu algoritmo para colocar a proteção da privacidade e da democracia à frente dos lucros. A empresa já fez isso por um breve período após a eleição presidencial americana de 2020, em que os usuários passaram a ver mais notícias de fontes confiáveis e menos desinformação e teorias da conspiração. No entanto, voltou ao modo anterior depois da diminuição do engajamento dos usuários.

“A empresa é tão indiscutivelmente bem-sucedida que pode continuar a ser um sucesso ao mesmo tempo que coloca mais ênfase em segurança e combate à desinformação, investindo mais recursos nisso”, diz Kang.

Vocês acreditam que o Facebook pode conciliar seu modelo de negócio, que tem como objetivo o crescimento do número de usuários e do tempo que cada um gasta no aplicativo, com a proteção à privacidade e à democracia? Ou a tecnologia é inerentemente prejudicial e não é possível consertar?

Sheera Frenkel: Bom, Mark Zuckerberg e Sheryl Sandberg [diretora de operações do Facebook] é que decidem qual é a tecnologia. Se eles quisessem mudar o algoritmo, eles mudariam. Eles mudaram aqui nos EUA durante a eleição de 2020 [uma alteração no algoritmo ampliou o alcance de veículos de mídia confiáveis e diminuiu o de hiperpartidários ou disseminadores de teorias da conspiração, mas a empresa voltou à configuração anterior no final de novembro].

Naquele momento, eles decidiram que era realmente importante que as pessoas vissem conteúdo de fontes de notícias verificadas antes de ver fontes que repetidamente promoviam artigos falsos ou enganosos. Eles mexeram no “botãozinho” que eles usam para regular os algoritmos e mudaram o que as pessoas iriam ver —então, definitivamente, não é a tecnologia em si, eles conseguem mudar.

Eles mudaram o algoritmo em 2020 e depois voltaram atrás, porque a alteração reduziu o engajamento dos usuários. Qual é o status atual?

Cecilia Kang: Esse episódio mostra como a gente não sabe o que está acontecendo, porque é tudo nos bastidores, algo como "O Mágico de Oz". Essas decisões são tomadas de modo muito privado.

Em relação a conciliar o modelo de negócio com o respeito à privacidade e a proteção da democracia, é uma questão de grau. A empresa é tão indiscutivelmente bem-sucedida que pode continuar a ser um sucesso ao mesmo tempo que coloca mais ênfase em segurança e combate à desinformação, investindo mais recursos nisso.

Mark Zuckerberg e Sheryl Sandberg caminham lado a lado
Mark Zuckerberg e Sheryl Sandberg durante conferência em Sun Valley, Idaho, EUA - Kevin Dietsch - 8.jul.21/Getty Images/AFP

Vocês acreditam que Zuckerberg realmente está disposto a fazer mudanças que reduzam a desinformação na plataforma ou é mais um esforço de relações públicas?

Frenkel: Em público, Mark Zuckerberg e Sheryl Sandberg sempre dizem que querem resolver esses problemas e impedir que promovam desinformação na plataforma. Mas, várias vezes, eles simplesmente não seguem as recomendações dos próprios engenheiros e funcionários do Facebook que poderiam corrigir essas falhas, então há uma incoerência.

Em março, um estudo apontou que 12 influenciadores eram responsáveis por 65% de toda a desinformação antivacina circulando nas redes sociais, que atinge 62 milhões de pessoas. Em julho, grande parte dessa desinformação ainda estava no Facebook, e Joe Biden pressionou a plataforma a fazer alguma coisa —o presidente chegou a dizer que a desinformação nessas plataformas está causando mortes. Alguma coisa mudou no Facebook depois disso?

Kang: O relatório saiu no começo do ano. Se o Facebook realmente quisesse, poderia ter feito mudanças antes de a Casa Branca pressionar, em julho. A Casa Branca está pedindo algo muito específico: qual é a prevalência da desinformação sobre Covid no Facebook, Instagram e outros aplicativos e quantas pessoas visualizam, curtem e compartilham esse conteúdo.

Estão nessa discussão há quase dois meses, e nada aconteceu. Eles só apresentam dados que os deixam confortáveis, dizem que removeram 18 milhões de posts desinformativos sobre Covid [mas não dizem quantas pessoas viram os posts]. Também tentam ressaltar tudo o que estão fazendo para promover as vacinas, mas não as ações para combater a desinformação. Eu acho que essa queda de braço entre o Facebook e a Casa Branca está em ponto morto desde o início do ano. Nada mudou.

Vocês não veem um impulso real para que o governo americano adote, no curto prazo, novas regulações, seja em relação à seção 230 da Lei de Decência nas Comunicações, que exime as plataformas de responsabilidade por conteúdos postados por terceiros, seja de maior transparência nos algoritmos?

Kang: Não vejo isso acontecendo a curto prazo. Será difícil isso sair da retórica e virar medidas concretas. O tema agora não é a maior prioridade para o governo, que está tentando implementar a lei de infraestrutura, lutar contra a Covid, vacinar as pessoas.

Regulamentar a liberdade de expressão nos Estados Unidos é algo muito delicado, porque a primeira emenda da Constituição [que garante liberdade de expressão] é central não apenas para a Constituição, mas é o cerne da nossa identidade. Restringir discurso nocivo é fácil na teoria, mas, na prática, há o risco de essas regulações acabarem censurando discursos potencialmente importantes.

As pessoas têm sido muito veementes ao diagnosticar que existe um problema, mas ninguém tem muito claro como resolvê-lo.

Neste momento, as plataformas sofrem pressão dos dois lados nos EUA. Os democratas acham que as empresas não fazem o suficiente para combater a desinformação e têm poder demais e pressionam para que haja alguma medida antitruste para separá-las. Já os republicanos dizem que estão sendo censurados e, por isso, querem mudanças na seção 230. Que tipo de regulamentação tem mais chance de ser aprovada?

Kang: Os republicanos acham que existe muita censura hoje na internet. Eles acusam o Facebook, o Twitter e o YouTube de censurar o ex-presidente Donald Trump e outros conservadores. Os democratas estão do lado oposto: acham que as plataformas não fazem o suficiente para moderar e restringir discurso nocivo.

Os dois concordam que as plataformas de internet são poderosas demais e que fazem um trabalho péssimo na tentativa de moderar conteúdo, mas têm abordagens tão opostas que suas propostas legislativas chegam a não ter nada em comum. Democratas querem punir plataformas por não censurar o suficiente, e republicanos querem puni-las por censurar demais... então, haverá acordo?

É possível que sejam aprovadas reformas muito específicas e pontuais, como desinformação ligada à Covid e integridade do processo eleitoral, porque essas já são, de qualquer maneira, violações de direitos civis na legislação existente. Já houve mudança na seção 230 em 2018, em relação ao conteúdo relacionado a tráfico sexual [a imunidade proporcionada pela seção 230 às plataformas não vale quando se trata desse tipo de conteúdo]. Acho que esse tipo de regulação é possível.

A visão de Mark Zuckerberg sobre a liberdade de expressão no Facebook vem mudando. Ele chegou a dizer que conteúdo de negacionistas do Holocausto não deveria ser removido do Facebook. Depois, mudou de ideia e passou a remover. Qual é a visão atual dele sobre o que deve ser mantido na plataforma?

Frenkel: Zuckerberg nunca explicou claramente quais são suas opiniões sobre liberdade de expressão, apesar de isso estar no âmago de tantos problemas do Facebook. Ele tem se esquivado de responder porque deixou de defender a liberdade de expressão dos negacionistas do Holocausto.

Ele também não explicou por que, ao suspender Trump, abandonou a cláusula “digno de ser noticiado”, que era justificativa para não remover conteúdo de líderes políticos, e não abandonou essa mesma justificativa para outros líderes políticos do mundo, dos quais não remove conteúdo.

Essa cláusula ainda vale para outros líderes políticos? Reiteradamente, o Facebook usa uma abordagem caso a caso, e isso significa que líderes de outros países, como a Hungria, as Filipinas e o Brasil, estão livres para fazer o que querem na plataforma. Quando, finalmente, o Facebook resolve fazer alguma coisa em relação a essas postagens, elas já foram visualizados por milhões de pessoas.

A Folha publicou uma reportagem em janeiro mostrando que o presidente Bolsonaro havia violado várias vezes as normas de comunidade do Facebook para conteúdo relacionado à Covid em suas lives, e nada aconteceu. Existe uma diferença na aplicação das regras nos EUA e em outros países?

Frenkel: Vários países vão ter eleições incrivelmente importantes no ano que vem. Governos e ativistas ao redor do mundo querem uma definição clara, por parte do Facebook, sobre a cláusula “digno de ser noticiado”. Essa cláusula ainda se aplica para pessoas que se candidatam a cargos ou foram eleitos? Isso terá enormes consequências nas eleições.

Sabemos que as decisões erradas tomadas pelo Facebook têm um impacto muito maior em outros países. Aqui, a quantidade de moderadores de conteúdo e a atenção dada pelos executivos do Facebook a conteúdo é muito maior que em países como o Brasil.

Qual pode ser o impacto do Facebook nas eleições de meio de mandato nos EUA e nas eleições presidenciais em 2022, como a do Brasil? Vocês acham que a plataforma continuará a ter um efeito muito negativo sobre o debate público?

Kang: Os próximos seis meses serão importantíssimos. Se ficar do jeito que está, se o Facebook não atualizar suas políticas e intencionalmente deixá-las nebulosas, existe uma probabilidade muito alta de termos uma avalanche de desinformação e tentativas de interferência nas eleições.

A história nos mostra que regras vagas levam pessoas mal-intencionadas a tentar se aproveitar da situação, tentar semear a desconfiança entre as pessoas. É urgente que o Facebook esclareça essas políticas.

Vocês acham que os EUA vão adotar alguma medida antitruste obrigando o Facebook a vender parte de seus ativos e a se desfazer de empresas que comprou, como o Instagram ou o WhatsApp?

Kang: A Comissão Federal de Comércio acaba de reapresentar uma ação pedindo que o Facebook seja dividido, e mais de 40 estados vão recorrer de uma decisão de um juiz que rejeitou a ação deles. Essa briga ainda vai levar muitos anos, porque as ações devem ir para o Tribunal de Apelações e, depois, para a Suprema Corte.

Será que o Facebook pode ser dividido? Sim, nós vimos isso acontecer. O monopólio da AT&T no setor de telecomunicações foi quebrado nos anos 1980, e a Microsoft ia ser dividida, mas chegou a um acordo.

Para Zuckerberg, essa é uma ameaça existencial. Algumas outras questões também o incomodam, mas nada se compara às medidas antitruste. Eu acho que haverá alguma decisão em algum momento. É um assunto novo, e pode estabelecer um precedente importante.

Existe a discussão de que, para determinar se uma empresa de internet exerce monopólio, não se pode usar as réguas antigas, como verificar se o preço para o consumidor subiu à medida que a empresa comprou outras e ganhou poder. Como a estrutura é diferente na internet o uso do produto é gratuito, mas o consumidor "cede" seus dados não se pode seguir os mesmos parâmetros para determinar se o consumidor ficou prejudicado.

Kang: Essa seria uma enorme mudança. Há dois caminhos paralelos no momento: projetos de lei para atualizar a legislação antitruste para empresas de internet e a briga nos tribunais, que pode estabelecer precedentes. Se os tribunais considerarem que um serviço gratuito como o Facebook viola a legislação antitruste e se houver uma definição clara do que é um monopólio na economia da internet, seriam decisões que mudariam completamente toda a política de concorrência nos EUA.

Se o Google ou o Facebook perderem essas ações, podemos falar em uma nova era de combate aos monopólios.

Vocês relatam no livro como o Facebook usa o fantasma da concorrência da China e das gigantes de tecnologia chinesas para afastar tentativas de regulação.

Kang: Sim. Quando integrantes do governo Biden se reuniram com funcionários do Facebook para discutir o problema da desinformação sobre a Covid, eles perguntaram o que o governo estava fazendo em relação à desinformação no TikTok.

O TikTok é sempre usado por Zuckerberg e outros no Facebook como exemplo de competição vinda da China e de como os EUA precisam ter sua política industrial, senão perderão a liderança na área. É fato que o governo precisa equilibrar a competitividade das empresas americanas com as tentativas de regulação.

No Brasil, está em estudo uma legislação que proibiria as plataformas de remover conteúdo ou perfis de políticos sem ordem judicial, semelhante a uma lei proposta neste ano na Flórida que acabou derrubada pela Justiça. A Polônia também adotou medidas contra a suposta censura de vozes conservadoras. O que acham disso?

Kang: Nos EUA, as pessoas deram risada da lei da Flórida e acharam que não ia dar em nada, mas ela até que andou. Acho que essas leis são particularmente preocupantes, porque beneficiam muito líderes políticos poderosos que terão uma margem maior para falar o que querem, e normalmente são líderes que já têm um histórico problemático.

Eles estão fazendo de tudo para acabar com as barreiras e atingir o maior número possível de pessoas pelas redes sociais. Essas regulações, que sufocam a moderação, são muito problemáticas e vão se espalhar. Se passar no Brasil ou na Polônia, outros países vão copiar.

Uma Verdade Incômoda: Os Bastidores do Facebook e Sua Batalha pela Hegemonia

  • Preço R$ 84,90 (384 págs.); R$ 39,90 (ebook)
  • Autor Sheera Frenkel e Cecilia Kang
  • Editora Companhia das Letras
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