Carlos Zéfiro, nascido há cem anos, marcou gerações com revistinhas de sacanagem

Lido em todo o país, desenhista teve vida humilde como funcionário público e permaneceu anônimo

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Ivan Finotti

Entrou na empresa, no extinto jornal Notícias Populares, em 1991 e, após idas e vindas, está na Folha desde 1994. Foi editor dos cadernos Folhateen e Ilustrada e das revistas Serafina, sãopaulo e GuiaFolha.

São Paulo

[resumo] Carlos Zéfiro, que completaria cem anos neste domingo (26), marcou o despertar sexual de gerações de garotos dos anos 1940 a 1980 com seus livretos eróticos, conhecidos como catecismos. Embora lido em todo o país, desenhista, que foi parceiro de Nelson Cavaquinho, teve vida humilde como funcionário público e permaneceu anônimo, por medo de perseguição, até sete meses antes de morrer.

Itaim, São Paulo, 1963. Juquinha tinha 13 anos e estava nervosíssimo. Após rodear a banca por duas ou três vezes, tomou coragem, pegou um exemplar do “Almanaque do Capitão Marvel” e, ao entregá-lo ao jornaleiro, disse “sou amigo de fulano”.

Ao ouvir a senha, o homem apanhou uma revistinha em uma caixa escondida embaixo do balcão, enfiou no meio das páginas do almanaque do super-herói e cobrou pelas duas publicações.

Tratava-se de ultraje público ao pudor. Desde 1940, o Código Penal previa um período de seis meses a dois anos de prisão para quem produzisse ou comercializasse material obsceno. E aquela revistinha escondida estava repleta de sacanagem, com histórias que começavam mansas e terminavam em orgias.

Juquinha pagou e tentou não correr para casa, tamanha sua ansiedade. Só ao se trancar no banheiro teve coragem de olhar a capa da publicação, que poderia trazer um título como “Hilda, a Mineirinha”, “Minha Prima Irene”, “Dr. Alfredo, Meu Bom Advogado” ou “Minha Vida no Convento”.

Um texto típico seria assim: “Pronto, diretor, já tirei a roupa. O que é que você vai chupar?”. Ou ainda: “Para que Lia não sofresse muito, comecei a esfregar a cabeça do membro nos lábios da sua vagina, enquanto lhe chupava o biquinho de um seio. ‘Estou nas nuvens, Téo... Como isso é bom!... Como você é gostoso!...’”.

“Era uma coisa proibidíssima; era como fumar maconha”, lembra o Juquinha hoje, quase 60 anos depois, mais conhecido como o jornalista Juca Kfouri. O gibi tinha o tamanho de uma folha de papel dobrada em quatro, e a putaria seguia por gloriosas 32 páginas.

Desenhadas de forma tosca, não raro com sensíveis erros de proporção, as historinhas de Carlos Zéfiro foram a principal porta de entrada aos mistérios do sexo para os adolescentes brasileiros entre o final dos anos 1940 e o início dos anos 1980.

Eram chamadas, no Rio, de “revistinhas”, e, em São Paulo, de “catecismos”, devido à semelhança de proporções com os livretos que traziam as palavras de Deus para a garotada em vias de fazer a primeira comunhão.

Após se esbaldar com a sem-vergonhice, Juquinha tinha outra missão à frente: se confessar na Paróquia São Gabriel Arcanjo, perto de sua casa. “Eu confessava que havia me masturbado”, diz Kfouri. “Mas nunca falei ao padre sobre os ‘catecismos’, pois não confiava que ele não fosse contar tudo para minha mãe.”

As relações entre o desenhista e o futuro jornalista não ficaram relegadas aos banheiros dos anos 1960. Três décadas depois, em 1991, Kfouri foi o responsável por revelar um segredo de 40 anos. “A verdadeira identidade de Carlos Zéfiro, o autor de quadrinhos eróticos e responsável pela educação sexual de muita gente”, dizia a reportagem da Playboy de novembro daquele ano, revista que o jornalista havia assumido, meses antes, como diretor de Redação.

Zéfiro, quem diria, era um humilde funcionário público, então aposentado, chamado Alcides Aguiar Caminha, morador do subúrbio do Rio de Janeiro, com cinco filhos e casado com “uma santa que a tudo perdoa”.

Nascido em 26 de setembro de 1921 (apesar de uma irmã insistir que foi dia 25), Caminha completaria cem anos neste domingo. Estava com 70 anos quando foi revelado para o mundo, e havia recém sofrido uma trombose que lhe paralisara o lado esquerdo do corpo.

Após sair do armário, Caminha viveria apenas mais sete meses, mas seriam o suficiente para que obtivesse o reconhecimento do qual fugiu por toda a vida. Foi apresentado em público em uma entrevista coletiva na primeira Bienal Internacional de Quadrinhos do Rio de Janeiro, dividindo os holofotes com gente do calibre de Will Eisner e Moebius.

Deu entrevista ao programa de Jô Soares no SBT e a inúmeros jornalistas, que cravaram manchetes como “Carlos Zéfiro existe!”, “Cronista dos desejos ocultos”, “O mestre da sacanagem” e “A volta do vovô pornô”.

Quatro anos após sua morte, Zéfiro alcançou definitivamente a aura de cult quando Marisa Monte escolheu seus desenhos —e pagou direitos autorais à viúva— para estampar a capa e os encartes de seu álbum duplo “Barulhinho Bom”, de 1996.

Essa ligação com a música não caiu do céu. Cantor em festas familiares e frequentador da roda boêmia sambista da praça Tiradentes, no Rio de Janeiro, Alcides Caminha é coautor de três sambas, um deles o clássico “A Flor e o Espinho”, ao lado de Nelson Cavaquinho e Guilherme de Brito. Escrita em 1956, a música começa com os impressionantes versos “Tire seu sorriso do caminho/ Que eu quero passar com a minha dor.”

Marisa Monte não a gravou em ‘Barulhinho Bom”, mas a cantou em uma festa em homenagem ao desenhista. “Em 1999, inaugurei a Lona Cultural Carlos Zéfiro, em Anchieta, no subúrbio do Rio de Janeiro onde ele havia vivido. Foi um show com a Velha Guarda da Portela. Nessa ocasião, cantamos músicas dele, inclusive ‘A Flor e o Espinho’. Conheci também nesse dia dona Montserrat Caminha, viúva dele. Foi uma festa linda, uma grande celebração com samba e afeto, uma homenagem merecida a esse artista único carioca que agora chega ao centenário eternizado.”

É provável que Alcides Caminha não recebesse tamanha festa caso fosse identificado nos dias de hoje, em que avanços em questões de gênero não têm sido lá muito compreensivos com alguns dos heróis do passado.

Pelas suas contas, Zéfiro produziu e assinou 860 revistinhas de sexo, totalizando 28 mil páginas ilustradas —seu biógrafo, Gonçalo Junior, acredita ser um exagero e calcula que a metade disso estaria mais próxima da realidade. Seja quantas forem, não se tem notícia de sequer um negro protagonizando uma de suas aventuras; quando há homossexualidade, ocorre entre mulheres, inclusive freiras, para óbvio deleite masculino.

“Zéfiro é acusado de machista, uma questão muito parecida que acontece com os europeus Manara [de ‘O Clic’], Crepax [de ‘Valentina] e Serpieri [de ‘Druuna’]”, diz Gonçalo Junior. “Mas em minha opinião, Zéfiro é um tremendo de um libertário. Em suas histórias, quem manda é sempre a mulher, e o homem precisa conquistá-la.”

Gonçalo também nota o aspecto educacional que a obra do brasileiro exerceu em diversas gerações. “Ele ensinou a galera que a mulher não é como o homem. Por mais que ela seja liberada, gosta de romantismo, de ir devagar. Na época, ele escrevia e desenhava apenas para os homens. Pela moral, as mulheres não liam essas coisas.”

Branco e heterossexual, pode-se dizer que Zéfiro produziu suas aventuras à sua imagem e semelhança. Vindo de uma família que perdeu suas economias quando o patriarca pegou tuberculose e foi demitido, ele se casou em 1941, aos 20 anos, e construiu a própria casa, tijolo por tijolo, no terreno onde morava sua mãe viúva.

Teve cinco filhos com Maria Montserrat e, desde sempre, lutava fazendo bicos para alimentá-los. Desenhava situações eróticas desde a adolescência, até que, certo dia de 1948, em um mundo sem xerox, um conhecido lhe pediu que copiasse quadro a quadro uma historinha pornô italiana. O trabalho ficou tão bom que foi levado ao vendedor das revistinhas, que passou a lhe fazer pedidos de quadrinhos originais.

Gonçalo Junior estima que, em dinheiro atual, cada catecismo lhe rendia cerca de R$ 500. “Coisa de meio salário mínimo”, diz o biógrafo, cujo livro “O Deus da Sacanagem – A Vida e o Tempo de Carlos Zéfiro” foi publicado em 2018 e está à venda em livrarias ou pelo site da editora Noir (R$ 59,90; 384 págs.).

“A casa que papai construiu e em que morou até o fim era de dois quartos. Um para ele e minha mãe, e o outro para minhas duas irmãs. Éramos três meninos, e nós dormíamos na sala”, lembra o filho Gil Caminha sobre a vida no subúrbio de Anchieta, entre a zona norte e oeste do Rio. “Foi no quarto com minha mãe que ele começou a desenhar, com um abajur ligado enquanto ela dormia.”

Tempos depois, Zéfiro construiu um puxadinho de dois metros por dois nos fundos da casa e instalou ali seu ateliê. Deixava-o destrancado, segundo Gil, que lia ali todas as histórias antes que chegassem às bancas.

As coisas melhoraram na primeira metade dos anos 1950, quando Zéfiro conseguiu uma vaga no Departamento Nacional de Imigração, do Ministério do Trabalho. Como funcionário público, viajou o Brasil inteiro acompanhando pessoas recém-chegadas ao país até locais que demandavam mão de obra.

Isso faria com que suas histórias adquirissem um sabor do Brasil profundo que falou diretamente com seus leitores. As viagens também facilitavam as aventuras sexuais do próprio desenhista, adúltero contumaz que arrumava um rabo de saia por onde passasse.

Nos anos 1960, Carlos Zéfiro era conhecido no Brasil inteiro e teve suas maiores tiragens. “A Pagadora de Promessa”, inspirado no filme “O Pagador de Promessas”, que levou a Palma de Ouro em Cannes em 1962, vendeu 30 mil exemplares em um mês.

Nela, Gina, apelido de Regina, detalha ao padre, em confissão, como perdeu a virgindade com o filho do doutor Santos. Excitado, o padre a proíbe de repetir o ato com o rapaz até o casamento, mas ela deveria ir todo domingo à igreja, bem cedo, se purificar com ele. “O que ela cumpre religiosamente’, escreve Gonçalo Junior em “O Deus da Sacanagem”.

Maior sucesso fez “As Aventuras de João Cavalo”, que ganhou uma continuação —segundo o biógrafo, há relatos de que teria vendido mais de 1 milhão de exemplares até a década de 1980, sendo continuamente reeditado. A história acompanha as tentativas de João, possuidor de um mastro equino, de encontrar uma parceira que dê conta do recado.

Se por um lado o emprego público melhorou a vida da família Caminha, por outro acrescentou à vida de Zéfiro um temor maior de ser descoberto. Além do risco de prisão por desenhar sacanagem, ele temia ser demitido e, após processo administrativo, perder a futura aposentadoria. “Quando chegavam notícias de que algum carregamento de revistinhas havia sido apreendido, papai reunia todos os originais e colocava fogo no quintal”, conta Gil.

Esse medo, aliás, foi o que manteve Alcides Caminha incógnito sob seu pseudônimo, mesmo depois que as revistinhas caíram de venda e ele foi parando de desenhar, ao longo dos anos 1980.

Ao encontrá-lo em 1991, Kfouri teve que convencê-lo de que a ditadura tinha acabado, que a pornografia não era mais proibida, estando à venda não só em bancas como em filmes nos cinemas, e que, em vez de perder a aposentadoria, ele receberia homenagens por sua obra.

O ponto da derrocada tem data certa. Em 20 de fevereiro de 1980, o ministro da Justiça, o diretor nacional da Polícia Federal e o chefe da Censura no Brasil derrubaram a perseguição ao erotismo. As fotos das revistas de sexo, como “Playboy”, “Ele Ela” e “Status”, não precisariam mais ser enviadas a Brasília, e os pelos pubianos estavam liberados.

Em março, a “Ele Ela” publicou o primeiro close de pelos, rodeados por uma cinta-liga e meias brancas. A tiragem anterior da revista era de 125 mil exemplares, afirma Gonçalo Junior. Seis meses depois, havia pulado para 750 mil.

Carlos Zéfiro, autor dos quadrinhos eróticos - Divulgação

Nesse contexto, as revistinhas de sacanagem proibidas deixaram de ser a melhor possibilidade para um menino saber como são as curvas de uma mulher pelada. E os catecismos foram minguando pela década, substituídos por revistas, fotonovelas e filmes de sexo explícito.

É curioso que, após milhares de desenhos, Carlos Zéfiro não tenha depurado seu estilo e se tornado cada vez mais elegante em seus traços. “Ele consolidou um estilo rústico”, admite Gonçalo. “Tem cenas no fim de sua produção em que a vagina aparece no lugar do umbigo. Ele realmente não melhorou.”

“Ele ficou muito grato com as homenagens que recebeu”, diz o filho Gil. “Achava que a família ia sofrer consequências, mas no final ele teve um período de êxtase.”

Para o Juquinha, lá do começo da matéria, o momento da revelação foi inesquecível. “Quando eu a li a reportagem para a família Caminha, fui aplaudido”, lembra Kfouri. “Foi a única vez que isso me aconteceu. Foi uma matéria investigativa, como todas as reportagens devem ser, e que não deixou ninguém em desgraça. Por tudo isso, é a reportagem de que eu mais me orgulho na vida”, finaliza.​

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