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Rodrigo Nunes

Dez anos depois, vírus do Occupy Wall Street segue em mutação explosiva

Protestos como o de NY fracassaram em seus objetivos colossais, mas forjaram nova geração de militantes pelo mundo

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Rodrigo Nunes

Professor de filosofia da PUC-Rio (Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro), é autor de "Neither Vertical Nor Horizontal. A Theory of Organisation" (ed, Verso, 2021), cuja tradução brasileira, "Nem Vertical Nem Horizontal: Uma Teoria da Organização Política", sairá em 2022 pela editora Ubu

[resumo] Inspirado por levantes no Oriente Médio, o Occupy Wall Street tomou uma praça no centro financeiro de Nova York há dez anos e ajudou a propagar protestos pelo mundo, como os de Junho de 2013 no Brasil. Embora derrotados em seus objetivos colossais, esses movimentos deixaram como aprendizado ao ativismo da última década as ideias de pluralidade de atuação e de compreensão menos binária da política.

Há exatos dez anos, em 17 de setembro de 2011, cerca de mil ativistas ocuparam uma praça privada no centro financeiro de Nova York, chamada Zuccotti Park. Ao fazê-lo, eles levavam para o coração simbólico do capitalismo global uma onda de protestos que começara no final de 2010 na Tunísia e se estendera desde então por Norte da África, Oriente Médio, Espanha, Grécia e Chile. Começava naquela data o movimento Occupy Wall Street.

Se causas e circunstâncias variavam de país a país, alguns aspectos eram constantes. Ao redor do mundo, esses movimentos de massa passavam ao largo das grandes organizações existentes. Eram protagonizados por jovens com pouca experiência política prévia, muitos deles os “graduados sem futuro” que o jornalista Paul Mason tornaria famosos.

Eles denunciavam a falta de controle democrático sobre governos inteiramente sujeitos aos interesses de pequenas elites econômicas. Como pano de fundo a impulsionar todos esses protestos havia a recessão global causada pela crise financeira de 2008 —e o sentimento de que coubera a 99% da população mundial arcar com os custos do desastre, enquanto o 1% que o causara fora resgatado pelos bancos centrais.

Tanto a mídia quanto os manifestantes enfatizavam a novidade deste “movimento das praças”: ele não tinha líderes ou hierarquias e se organizava através de Twitter, Facebook e grandes assembleias nas quais qualquer um podia falar. As coisas, contudo, não eram tão simples.

Frequentemente sem perceber, a geração de 2011 estava redescobrindo ideias —incluindo a própria “horizontalidade”, uma palavra-chave do período— cujas origens estavam no movimento antiglobalização de dez anos antes, ou até mais longe. Poucos manifestantes pareciam conhecer os limites que essas mesmas ideias haviam encontrado no passado.

Mais do que isso, a “filosofia espontânea” desses movimentos era, em muitos sentidos, herdeira dos impasses e traumas não elaborados do século 20: instintivamente avessa a desenvolver estruturas mais permanentes, desconfiada de velhas noções como “organização” e “disciplina”, receosa de chegar a quaisquer conclusões estratégicas definitivas com medo de que isso excluísse outras posições ou fechasse possibilidades.

Isso fazia com que esses movimentos, amiúde, tivessem dificuldade de aproveitar janelas de oportunidade ou responder a mudanças de conjuntura, sofressem por não conseguir pôr em prática padrões extremamente elevados de inclusividade e participação, e vivessem em negação sobre o quanto seu funcionamento, na verdade, dependia de algumas das coisas, como estruturas e lideranças informais, que seu discurso oficial rejeitava.

Depois de atravessar os Estados Unidos, de Manhattan à Costa Oeste, a onda de protestos continuou correndo pelo mundo, alcançando México, Turquia, Brasil e França, entre outros, nos anos seguintes. Embora os manifestantes da Tunísia e do Egito tenham logrado o objetivo imediato de derrubar seus governos, o que exatamente o “movimento das praças” obteve no longo prazo é objeto de discussão.

Na Líbia e na Síria, ele acendeu o pavio de violentas guerras civis; no Egito, acabou em um golpe militar; na Grécia, com a capitulação do Syriza. Nos Estados Unidos, o Occupy já se esvaziava mesmo antes que a polícia acabasse com as últimas ocupações.

Brexit, Donald Trump e o crescimento da extrema direita sem dúvida foram, em grande parte, uma contraofensiva que buscou dar outro sentido aos sentimentos antissistema que também alimentaram os “movimentos das praças” pelo mundo.

Talvez em nenhum outro lugar essa manobra tenha sido tão clara e bem-sucedida quanto no Brasil —onde a convulsão social progressista de junho de 2013 desestabilizou um governo petista que não soube dar-lhe resposta e levou a uma reorganização da direita que, em sincronia com a operação Lava Jato e os meios de comunicação, derrubaria Dilma Rousseff e abriria caminho para a eleição de Jair Bolsonaro e a formação de uma base social conservadora altamente radicalizada.

O dia seguinte

A facilidade com que esses movimentos foram erradicados sugeria que suas raízes na sociedade não eram suficientemente profundas. Para alguns, a incapacidade de se manter ao longo do tempo era prova de que o “horizontalismo” havia chegado a um limite e era hora de redescobrir a dimensão “vertical” da política: formar partidos, disputar eleições, ganhar representação, discutir políticas públicas.

Essa opinião parecia confirmada pelo fato de que, em lugares como Espanha (com o Podemos e as confluências municipais), Reino Unido (com o Labour de Jeremy Corbyn) e Estados Unidos (com Bernie Sanders, Alexandria Ocasio-Cortez e outros à esquerda do Partido Democrata), parte considerável da geração de 2011 havia dado uma guinada inesperada rumo à política eleitoral.

Não era assim, contudo, que a maioria dos agentes dessa mudança a compreendiam. Com frequência, eles a descreviam não como uma renúncia das antigas crenças ou uma retratação de erros passados, mas como um experimento em que buscavam pôr convicções, conhecimentos e táticas aprendidos nas ruas a teste em novo contexto.

O “amadurecimento”, nesse caso, não estava em seguir aquilo que alguns julgam ser a evolução natural dos movimentos sociais —sair das ruas para entrar nas instituições—, mas, antes, no desenvolvimento de uma compreensão mais complexa e menos binária da política, em que a capacidade de usar tanto ruas quanto organizações estabelecidas é o mais essencial para fins transformadores.

Isso demonstra que, se a “filosofia espontânea” do “movimento das praças” rapidamente chocou-se com limites que não soube superar, ela também continha os elementos que lhe permitiam ir além de si mesma. Uma crítica imanente dessa tentativa de compreender a própria prática, tal como tentei fazer em meu último livro, permite entender os caminhos dessa evolução.

Escola das ruas

Em 2011 (ou no Brasil de 2013), era como se muitos dos que vestiam as máscaras do longa-metragem “V de Vingança” (2005) efetivamente esperassem um sucesso como o do filme: uma ordem inteira desmoronando subitamente ao ver a população nas ruas.

A experiência mostrou, contudo, que uma classe dirigente suficientemente unida e disposta a manter sua posição é capaz de resistir de modo muito eficaz, tanto pela repressão policial quanto por meio de manobras políticas.

Milhões de pessoas nas ruas por meses podem não ser suficiente para derrubar um sistema —e mesmo que consigam, nada garante que lograrão criar um novo modelo de sociedade antes que outro grupo tome a dianteira, como fizeram a Irmandade Muçulmana e, depois, os militares no Egito.

Os manifestantes descobriram que há sempre diversos atores, às vezes com posições diametralmente opostas às suas, prontos a explorar as oportunidades abertas pelos movimentos. Como foi o caso, aqui, do relativamente pequeno Movimento Brasil Livre (MBL) após junho de 2013, esses outros atores frequentemente possuem mais recursos e acesso às instituições, à mídia e ao poder econômico, o que amplifica em muito seu poder de intervenção.

Tudo isso serviu para ensinar que movimentos que não sejam capazes de lançar raízes, diversificar formas de ação e desenvolver estruturas que permitam sustentar a própria força e coordenar seus passos ao longo do tempo tendem a ter dificuldades quando, passada a surpresa de sua explosão inicial, se depararem com os altos e baixos de um processo mais lento e conflituoso de transformação social.

Uma maneira como o ativismo da última década elaborou as consequências desse aprendizado foi a tendência, cada vez mais disseminada, de conceber movimentos como “ecologias”. Contra uma posição estritamente “vertical”, que veria a centralização como um fim em si mesma, essa ideia sugere que a pluralidade é uma dimensão irredutível da política: um movimento tem vários centros, e isto é, em princípio, saudável.

Contra um “horizontalismo” estrito, por outro lado, ela afirma que ter centros, em vez de uma rede inteiramente plana onde nenhum ponto tenha mais influência que outro, é tanto necessário quanto positivo para dar ao movimento consistência e coordenação.

Mais do que isso, pensar movimentos como ecologias supõe a diversificação como essencial. Em vez de uma grande rede onde cada lugar tenha exatamente a mesma função e forma organizacional (uma assembleia numa praça ocupada), como sonhavam alguns dos fundadores de Occupy Wall Street, a ideia aqui é que um movimento pujante precisa de partes especializadas em diferentes tipos de intervenções organizadas de modo a executar diferentes estratégias.

O importante é que elas consigam manter relações de confiança e complementaridade umas com as outras, fortalecendo-se mutuamente em vez de competir.

É assim, por exemplo, que muita gente nos Estados Unidos pode enxergar o levante do Black Lives Matter que se seguiu à morte de George Floyd no ano passado e os esforços para ocupar espaços institucionais como lutas que “estão fundidas e precisam uma da outra” para terem sucesso.

No Brasil, esse processo de aprendizado foi dificultado, primeiro, pelo fato de que 2013 agravou o cisma entre a esquerda institucional e demandas mais radicais; e, segundo, por uma guinada à direita que rebaixou em muito tanto o horizontes de possibilidades quanto as condições de debate.

Não é impossível imaginar, todavia, que a “linha evolutiva” quebrada possa ser retomada em outro ponto, levando à constituição de ecologias que reúnam, por exemplo, as lutas indígenas, movimentos de “ocupação da política institucional” como o Muitas, de Belo Horizonte (MG), e as novas formas de organização laboral que despontam entre os trabalhadores de aplicativo.

Se é verdade que, considerados os objetivos colossais a que se propunha, o “movimento das praças” fracassou, por outro lado forjou uma nova geração de militantes em diversos países e ajudou a criar as condições de muito do que viria depois.

Nesse sentido, podemos dizer que seu vírus continua circulando, se recombinando com outras realidades para produzir mutações potencialmente explosivas.

Dado que as condições que o fizeram existir não desapareceram, antes tendem a exacerbar-se com as mudanças causadas pela pandemia e o aquecimento global, é provável que tenhamos mais notícias suas no futuro.

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