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Ronaldo Tadeu de Souza

Dizer que Bolsonaro não tem nada a ver com clássicos conservadores é raciocínio primário

Martim Vasques da Cunha, ideias circulam e podem dar um empurrão na loucura, como aconteceu na eleição de 2018

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Ronaldo Tadeu de Souza

Pesquisador de pós-doutorado no Departamento de Ciência Política da USP

[RESUMO] Em réplica a artigo de Martim Vasques da Cunha, autor sustenta que é ingênuo comparar o pensamento conservador clássico com os rumos concretos do governo Bolsonaro. Hoje, é fácil dizer que as ações do presidente não têm nada a ver com as ideias de Edmund Burke e Russell Kirk, mas importa mais perguntar o que escritores e ensaístas filiados a esses autores conservadores defendiam às vésperas das eleições de 2018.

Desde que Jair Bolsonaro (sem partido) foi eleito presidente da República, em 2018, e demonstrou quais seriam os eixos constitutivos do seu governo, diversos pesquisadores das humanidades, escritores, jornalistas e formadores de opinião passaram a afirmar que o conservadorismo e o liberalismo não tinham qualquer relação com o bolsonarismo.

A última intervenção nesse sentido foi a de Martim Vasques da Cunha a partir de uma leitura do livro “A Mentalidade Conservadora”, de Russell Kirk, recém-lançado pela editora É Realizações. É de se reconhecer de antemão o trabalho esmerado da editora em traduzir para o público brasileiro importantes pensadores políticos conservadores —além do próprio Kirk, constam no catálogo da casa Leo Strauss, Eric Voegelin, Michael Oakeshott e Roger Scruton.

A pergunta que organiza o texto de Vasques da Cunha é: “Ainda é válido discutir o conservadorismo em um país em que o patriarca maior, o presidente da República, se orgulha de se afirmar um seguidor desse tipo de pensamento?”.

A resposta é autoevidente, mas Vasques se esforça para dizer que, malgrado a catástrofe do bolsonarismo no governo, debater ideias conservadoras não só é válido como imprescindível com a obra de Russell Kirk em vista.

Seria um desperdício de tempo e de energia intelectual buscar flagrar Bolsonaro ou algum membro do seu círculo imediato a ler com lápis, marca-texto e post-it o livro de Russell Kirk. (Tivemos apenas a sorte de testemunhar sobre sua mesa o livro “O Mínimo que Você Precisa Saber para Não Ser um Idiota”, do guru Olavo de Carvalho, em uma live de comemoração depois de consumada sua vitória na disputa eleitoral de 2018.)

Daí que o pensamento conservador e de qualquer tipo não pode ser observado nesses termos ingênuos ao qual Vasques, de certo modo, se refere —no caso, que o conservadorismo como conjunto de ideias e seus principais autores “teve e tem a ver” direta e racionalmente com a atitude concreta do bolsonarismo.

Não é preciso ser marxista e postular a divisão social do trabalho (prático e intelectual), basta recorrer a Max Weber e a noção de espaços singulares de valor que advém com a era moderna para entender o equívoco de Vasques.

Com a profissionalização da política, a partir do surgimento dos partidos burocráticos de massa analisados por Robert Michels em “Sociologia dos Partidos Políticos” e da especialização crescente das ciências sociais, analisada por Weber, essa diferenciação se tornou mais bem-delineada e objetiva.

Diferente é afirmar que as ideias, sim, possuem capacidade de impulso na história e na política. Admitir isso não quer dizer que não se deva se debruçar sobre o pensamento conservador e liberal. Nenhum teórico sério de qualquer tipo e corrente proferirá tal consideração, muito pelo contrário.

Ora, por outro lado, afirmar que as ideias e o pensamento não têm qualquer importância na proporcionalidade de forças políticas é como dizer que as disciplinas de filosofia política, teoria política e teoria social devem ser desprezadas enquanto aspectos mesmo da história concreta das sociedades humanas. Tomemos Edmund Burke, autor dileto de Russell Kirk —e, supostamente, de Vasques e toda uma coorte de conservadores brasileiros.

A Revolução Francesa nem sequer tinha entrado no sua fase mais radical, o período do Comitê de Salvação Pública com os jacobinos na organização, quando Burke escreveu as “Reflexões sobre a Revolução Francesa”, em 1790.

A obra, que dá início ao pensamento conservador, não só tornou Burke um autor de autêntica fama como circulou pela Europa, ganhando traduções para o francês e o alemão. Antes de Burke morrer, em 1797, “Reflexões...” teve 11 edições em um único ano e havia alcançado 30 mil exemplares vendidos durante toda a vida do seu autor.

Já na Inglaterra, as ideias de Burke —e aqui não sabemos em termos numéricos quantos daqueles leram efetivamente o texto conservador iniciático— mobilizaram a ação política dos whigs, pois é pouco provável que a declaração e atitude de guerra contrarrevolucionária sem tréguas à França jacobina não tenha tido sequer o espírito burquiano em algum momento atravessando o ambiente inglês de então.

Entretanto, Edmund Burke ultrapassou as fronteiras inglesas. É muito pouco provável que esse fino teórico da estética, que sempre foi infenso às generalizações geométricas e um inimigo jurado dos homens das letras, tenha pretendido que o livro escrito para o público na Inglaterra chegasse à Alemanha e à França.

As ideias, no entanto, não são como Martim Vasques da Cunha deixa supor, a construção lapidar de tópicos para serem utilizadas na política por políticos e partidos. Elas se propagam, e assim aconteceu com o conservadorismo de Burke, que chegou a Friedrich von Gentz (1764-1832), escritor e político alemão, e a Joseph de Maistre (1753-1821), diplomata da Sardenha em São Petersburgo.

Nos dois casos, a relativa afeição pelo ocorrido na França revolucionária não mais existiu quando leram a obra de Burke —Gentz passou a posições notoriamente antirrevolucionárias, e Maistre, em carta a seus interlocutores, se confessava antidemocrático e antigálico.

As ideias de Burke são conhecidas para as detalharmos neste espaço —basta dizer que o Partido Whig asseverava costumes imemoriais, organização hierarquizada, autoridade, incapacidade do povo para o governo e as virtudes aristocráticas.

O historiador John Pocock sintetizou com genialidade o pensamento de Burke ao dizer que “tomando as ‘Reflexões sobre a Revolução na França’ como um texto único nós podemos ver que o sistema social está sendo reivindicado, em primeiro lugar, como sagrado: como parte de uma corrente de ordem eterna ligando os homens a Deus [...], daí a inclusão da organização da Igreja [como instituição fundamental]; e em segundo lugar como [ordem] natural [...], como parte da lei eterna implantada por Deus”.

Russell Kirk, como Martim Vasques da Cunha, afirma foi um burquiano (convicto): “Kirk viu em Burke uma espécie de ‘alma gêmea’, um espelho das suas inquietações políticas e existenciais. Ambos olhavam o mundo onde viviam imerso na decadência religiosa, no desprezo pela comunidade”.

Óleo sobre tela de Joshua Reynolds retratando Edmund Burke
Óleo sobre tela de Joshua Reynolds retratando Edmund Burke - National Portrait Gallery/Wikimedia Commons/Reprodução

Antes de ser um prestigiado escritor conservador, Kirk escreveu um livro de pouco impacto, em comparação com a obra posterior. “John Randolph of Roanoke”, sobre o político da Virgínia no fim do século 19 e início do 20, não alçou Kirk ao lugar que ocuparia depois no movimento conservador norte-americano com “A Mentalidade Conservadora".

Com o elogio de Robert Nisbet, T.S. Eliot e Henry Regnery, sustenta George Nash em “The Conservative Intellectual Movement in América Since 1945”, o imenso volume de Kirk ganhou a aprovação dos jornais The New York Times e The Times.

Assim, Kirk e “A Mentalidade Conservadora” foram decisivos para que a rearticulação da direita americana “alcançasse pleno florescimento”, diz Nash. Suas ideais circularam, seu estilo de compreender a sociedade americana atravessava os debates públicos, seu Burke foi lido como o pensador para qualquer projeto intelectual e cultura, vislumbrando a ordem social e a estabilidade das instituições.

É Vasques que tem de argumentar que o pensamento conservador de Kirk não influenciou o equilíbrio de forças políticas nos anos 1950 e 1960, no contexto de surgimento das manifestações da nova esquerda.

Do ponto de vista crítico, uma questão pode ser formulada acerca do conservadorismo e alguns liberalismos —mesmo Vasques da Cunha enfatizando que Kirk advogava o fato de a imaginação moral “aceitar a falibilidade humana, mas também, e principalmente, [ser] a única forma necessária para encarar o grande problema que atormenta a todos nós, a despeito de nossa situação política: a morte e o sofrimento".

Seria esta: quais as implicações políticas e sociais desse pensamento, dado que vivemos uma era histórica em que a estrutura imanente-discursiva é a negação existencial por indivíduos, classes e grupos de uma vida destinada naturalmente para a “morte e o sofrimento”?

Não foi a modernidade a busca incessante —o que o filósofo Jürgen Habermas entendeu como a abertura para o novo, o “tempo mais recente”, a “renovação contínua”— para atenuar, com lutas políticas e ousadia, nosso destino natural?

Conservadores, invariavelmente, nunca meditam sobre isso. É como se toda a humanidade tivesse que aceitar a imposição intransigente de que a ordem natural (hierarquia, autoridade, sofrimento de alguns, virtude de uns poucos, costumes prejudiciais) é intransponível, mesmo já tendo demonstrado que não a aceitaram e continuarão a não a aceitar.

Mas e quanto à relação entre o governo de Jair Bolsonaro e os pensamentos conservador e liberal, a preocupação lateral de Vasques da Cunha (já que seu texto é muito mais a história das ideias anglo-saxônicas e sua validade para nosso contexto que um tratamento daqueles vis-à-vis ao Brasil)?

Esse é um procedimento que muito provavelmente não agradaria o inimigo originário das generalizações e abstrações recomendadas a sociedades nacionais particulares. É fácil hoje, para conservadores, sustentar que Bolsonaro e seu grupo próximo não “tem nada a ver” com as ideias de Edmund Burke, Russell Kirk e Michael Oakeshott (não fortuitamente o elegante e amaneirado tradicionalismo inglês) e que os bolsonaristas nem de longe entendem a prudência e o cuidado conservador na conduta política.

Não acredito que escritores eruditos em filosofia política como Vasques da Cunha e outros, verdadeiramente, professem com seriedade e convicção tais raciocínios primários. Vivemos tempos de obscenidade, mas há um limite, espero, mesmo para o obsceno.

A pergunta que Vasques da Cunha poderia ter feito é: quais são os pensamentos e as ideias que circularam sistematicamente na sociedade brasileira nos anos que antecederam a vitória de Jair Bolsonaro nas eleições de 2018?

O que diversos colunistas, jornalistas, escritores, ensaístas, filósofos e formadores de opinião de temperamento burquiano-kirquiano escreviam, falavam e difundiam no arco político e histórico de 2014 a 2018?

O personagem Coringa (Heath Ledger) de “Batman: O Cavaleiro das Trevas”, de Christopher Nolan, tinha razão quando disse que “loucura é como a gravidade, só precisa de um empurrãozinho”.

Infelizmente, caro Martim Vasques da Cunha, ideias e pensamentos em uma sociedade com interesses materiais distintos circulam e podem dar um empurrão na loucura: neste caso, a loucura tem custado a vida de milhares de pobres, negros, mulheres e LGBTQIA+.

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