Folha reencontra personagens de Contardo Calligaris em reportagem em Timor Leste

Psicanalista morto há seis meses escreveu, em 2000, sobre a tentativa da ONU de criar democracia no país

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Fábio Zanini

Repórter especial e autor do blog Saída pela Direita. Foi editor de Poder e de Mundo, repórter de política em SP e Brasília, correspondente em Londres e Johannesburgo

[resumo] Em 2000, o psicanalista Contardo Calligaris relatou em matérias na Folha o que chamou de um "experimento iluminista": as tentativas da ONU de construir uma nação democrática em Timor Leste, após quatro séculos de colonização portuguesa e 25 anos de ocupação da Indonésia. Nos seis meses da morte de Contardo, repórter localiza brasileiros e timorenses entrevistados por ele na ocasião e conta a situação do país duas décadas depois.

A freira Maria Valéria Rezende, de Santos (SP), lembra-se de ter dado entrevista deitada numa rede, com 40 graus de febre. Com o policial carioca Henrique Lima Castro, a conversa foi num restaurante, da hora do almoço até quase o da janta.

Ambos são personagens de uma extensa reportagem publicada pelo psicanalista Contardo Calligaris na Folha, em 29 de outubro de 2000, sobre Timor Leste, no Sudeste Asático. Nesta quinta (30), a morte de Contardo, de câncer, aos 72 anos, completa seis meses.

Crianças diante de grafite da resistência contra a Indonésia em muro de Manatuto, no Timor Leste. - Contardo Calligaris - 29.out.2000/Folhapress

Em duas páginas, Contardo definiu a pequena ex-colônia portuguesa, cuja área equivale a dois terços de Sergipe, como “laboratório de um grandioso projeto da razão, certamente o mais ambicioso na história da ONU”.

Na época, o colunista foi enviado pela Folha ao território, esticando a cobertura que havia feito para o jornal das Olimpíadas de Sydney (Austrália).

Seu objetivo era relatar o que ele chamou de um experimento iluminista: como construir uma nação democrática em um lugar que passou por quatro séculos de colonização portuguesa e depois foi submetido a 25 anos de brutal ocupação da Indonésia.

Foi uma tarefa que ele encarou com um pé atrás, diz sua viúva, Maria Homem. “O Contardo falava muito dessa viagem, era muito cético sobre a missão do Ocidente de sempre querer catequizar outros povos”, afirma.

A visita de Contardo ocorreu em um momento de efervescência. Em 1999, após um plebiscito em que os timorenses votaram pela independência, milícias contrárias à separação da Indonésia retaliaram, destruindo grande parte do território.

A ONU então interveio, com apoio de militares e civis de diversos países, entre eles brasileiros. A ideia era preparar o novo Estado até a independência, que chegou em maio de 2002 --um modelo ambicioso e inédito.

A Folha localizou sete personagens da reportagem de Contardo, vivendo em quatro estados brasileiros e dois países (Timor Leste e Filipinas).

Seus relatos, além de jogarem luz sobre o trabalho do psicanalista tornado repórter, dão pistas sobre as mudanças pelas quais passou o país.

Em duas décadas, Timor Leste obteve avanços socioeconômicos, apesar de seguir extremamente pobre. O índice de analfabetismo, que era de 50% segundo a reportagem de Contardo, caiu para 30%, ainda assustadoramente alto.

Outro dado citado no texto, o orçamento do território, que era de US$ 49 milhões, subiu para US$ 300 milhões, puxado por turismo, exportação de café e extração de petróleo.

Mais importante, em Timor, apesar de ter experimentado solavancos ao longo do período, nunca deixou de ser uma democracia.

Grande parte disso se deveu a brasileiros que ajudaram na fase de transição para a independência. O mais conhecido foi Sérgio Vieira de Mello, nomeado administrador do território pela ONU em 1999, e que morreria em um ataque terrorista no Iraque em 2003.

Mas ele esteve longe de ser o único.

“Recebi um recado um dia de que um jornalista queria me entrevistar. E aí o jeito foi ele ir na minha casa, porque eu estava com malária. Tenho uma rede nordestina de náilon, que você dobra e vira uma bolinha. Para todo lugar do mundo que eu vou eu levo”, lembra a irmã Maria Valéria Rezende, 78. “Conversei com ele estirada na rede. Ele me perguntava e eu ia relatando”.

Um dos motivos que atraíram Contardo para a morada da freira era saber mais sobre um projeto que ela tinha implementado, de fabricação de sabão artesanal.

“Os indonésios quando invadiram acabaram com a única fábrica de sabão do país. As feridas de picadas de mosquito logo infeccionavam. Um brasileiro então me ajudou a importar soda cáustica e a gente saiu ensinando as pessoas a fazer sabão de coco, porque lá coco não falta”, diz ela, que se especializou em educação popular no Nordeste e trabalhou com Paulo Freire.

No ano seguinte à reportagem, Maria Valéria Rezende publicou seu primeiro livro, iniciando uma bem-sucedida carreira como romancista. Já recebeu os prêmios Jabuti, São Paulo de Literatura e o Casa de las Américas. Tempos depois reencontrou Contardo numa edição da Flip (Festa Literária Internacional de Paraty).Hoje pertence à Congregação das Cônegas de Santo Agostinho, na Paraíba.

As religiosas Lourdes Borelli (à esq.), Terezinha Kunen (centro) e Maria Beatriz Mohr, enviadas pela Igreja Católica do Brasil, durante trabalho em Timor Leste
As religiosas Lourdes Borelli (à esq.), Terezinha Kunen (centro) e Maria Beatriz Mohr, enviadas pela Igreja Católica do Brasil, durante trabalho em Timor Leste
Contardo Calligaris/Folhapress

Com a destruição causada pelas milícias ainda fresca, a segurança era uma preocupação constante. Criar uma polícia “democrática” era um desafio, conforme relatou na reportagem o então major Lima Castro, um dos 13 PMs brasileiros que foram ao país ajudar no treinamento da tropa timorense.

“Quando chegamos lá não existia policial, não tinha nada. Pior, os timorenses odiavam os policiais, que identificavam com a repressão indonésia. Então a gente tinha que, ao mesmo tempo, formar a tropa e explicar para a população o que significava ser um policial”, diz ele, que se aposentou como coronel da PM fluminense em 2014 e desde então trabalha como consultor de segurança para empresas petrolíferas.

O encontro com Contardo, diz, foi fortuito. “Eu estava dirigindo por Dili [capital do país] e o vi caminhando com uma camisa que tinha uma referência ao Brasil. Perguntei se era brasileiro, ele disse que sim e tinha acabado de chegar. Dei uma carona, perguntei se ele queria almoçar e fomos a um pequeno restaurante”, lembra.

Curioso, o psicanalista perguntou sobre o trabalho da ONU e a rotina no país. “Ele disse que falar comigo era melhor do que com os militares, porque eu circulava muito mais. O papo do almoço virou quase janta. Sentamos meio-dia e ficamos até 5 ou 6 horas da tarde ali”, lembra.

O trabalho de exploração de Contardo o levou também até o interior, ainda mais empobrecido e isolado. O país ocupa a metade leste da ilha de Timor e, mesmo sendo diminuto, tem muitas comunidades que praticamente não fazem contato entre si, situação que ainda hoje persiste.

Uma razão para isso é o relevo montanhoso do território, que deu guarida a uma guerrilha que lutou sem cessar contra os indonésios nos anos de ocupação.

Na comunidade de Laleia, a 80 km da capital, o psicanalista encontrou três freiras brasileiras, que dividiam uma casa sem água encanada, rede elétrica e, menos ainda, sinal de celular.

Mas até que moravam bem, em comparação com o restante do vilarejo: era uma das poucas residências que não tinham sido queimadas pelos milicianos pró-Indonésia. Não que isso significasse uma vida sem sustos.

“Era uma casa em que entravam cobras toda hora. No meu quarto, foram duas vezes”, lembra a irmã Beatriz Mohr, 61, da Congregação das Irmãs da Divina Providência, atualmente vivendo em Florianópolis (SC).

Psicóloga de formação, ela diz ter tido uma conexão imediata com Contardo. “Ele sentou-se lá em casa, começamos a conversar. Disse que era psicanalista, e passamos a comentar sobre o lado psicológico daquelas pessoas, que passaram por tanta coisa difícil”, diz.

Depois de algum tempo de conversa, Contardo foi conhecer a região, que fica na costa norte de Timor e tem praias paradisíacas, que as freiras aproveitavam como dava. “Só nós entrávamos na praia, as pessoas da região não tinham esse hábito. Mas sempre vestidas, para não escandalizar a população local”, diz Mohr.

Suas colegas de casa eram as freiras Terezinha Kunen e Lourdes Borelli.

A catarinense Kunen, 72, ficou três anos em Timor, atendendo a um chamado da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil).

“Encontramos um país em cinzas, tudo era escasso, alimento, água... O povo tinha fome, e nós também. Bem cedo íamos à procura de ervas, competindo com os cabritos. O povo conhecia todas as ervas e folhas de árvores comestíveis”, disse ela, que conversou com a Folha por mensagem de texto. Ela mora nas Filipinas desde 2003, onde ajudou na implementação da Pastoral da Criança.

Já a irmã Borelli lembra que Contardo apareceu de surpresa, sem ser anunciado, até porque era impossível avisar qualquer coisa com antecedência.

“Era muito isolado. Para fazer um telefonema, tínhamos que ir até Dili, de duas a três horas de viagem. O posto telefônico abria ao meio-dia, que no Brasil era meia-noite. A gente pagava US$ 15 ou US$ 20 para conseguir falar uns minutinhos só. Era muito difícil a questão da comunicação”, afirma ela, que hoje vive em Canoas (RS).

O visitante foi muito saudado quando chegou, recorda-se ela. “Quem ia nos visitar sempre levava comida. Ele trouxe coisas de supermercado, como bolacha, achocolatados, leite em pó. Quis saber a realidade, passeou nos arredores, ficou um tempo bastante bom, deu para matar a saudade do Brasil”, diz.

Uma notícia não tão boa que Contardo levou foi que o Brasil havia tido um desempenho decepcionante na Olimpíada de Sydney, em que não obteve nenhum ouro. Embora os jogos tivessem ocorrido num país vizinho, a Austrália, era como se fosse outro planeta.

O fato de Timor ser um país com 95% de católicos ajudou na ambientação das religiosas brasileiras, diz Borelli. “O catolicismo sempre foi uma questão de resistência para o povo timorense [os indonésios são de maioria muçulmana]. Eles também tinham seus deuses, é um povo muito místico. Mas dava para conviver.”

Como escreveu Contardo na reportagem: “A missão das irmãs não é catequizar as populações: os timorenses são fiéis e devotos. Beijam a mão de padres e madres e abarrotam as igrejas nas festas”.

No texto, ele também cita o fato de que apenas a geração mais velha falava português, que era considerado um idioma clandestino durante a ocupação indonésia. Os mais jovens se comunicavam apenas em indonésio ou no idioma local, tetum.

Um dos timorenses que ele encontrou foi Gil Horácio Boavida, à época um jovem de 23 anos sem muita perspectiva, que ficava perambulando pelo escritório da ONU atrás de bicos. “Unhas compridas de guitarrista, anéis nas mãos e nos pés, tatuagem no peito, Gil é fashion", descreveu Contardo.

Hoje, 21 anos depois, ele trabalha como técnico em um projeto de conservação de florestas financiado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud).

“Como um novo país, é claro que Timor enfrenta vários obstáculos relacionados a problemas sociais, ambientais, econômicos, culturais e outros. Mas, ultimamente, está começando a melhorar”, afirma ele.

Uma coisa permanece igual, no entanto. Gil segue mal arranhando o português, apesar do esforço que o governo do país fez para promover a língua nas duas últimas décadas. Mandou suas respostas à Folha por escrito, no idioma indonésio.

Crianças timorenses penduram-se em cabo da embarcação-hotel que abrigava funcionários da ONU - Contardo Calligaris/Folhapress

Já o também timorense Abé Barreto, 55, levou Contardo para conhecer o que na época era o único centro cultural do território. Tradutor e poeta, ele também tem dificuldades com o idioma português, sobretudo na escrita, embora fale fluentemente.

“Hoje temos a paz, que veio para ficar. Nos outros aspectos não posso dizer que a vida melhorou, seguimos enfrentando um grande desafio. Cabe aos governantes gerir o país melhor”, diz Barreto.

Há 20 anos Contardo precisou dormir em um velho navio ancorado na baía de Dili, que funcionava como um hotel improvisado. Era uma das poucas opções de hospedagem disponíveis. Hoje, há diversas opções, que surgiram para abrigar turistas em busca de corais quase intocados.

Os visitantes têm ajudado a economia a registrar picos de crescimento de até 6% na última década, mas o país ainda ocupa apenas a 141ª posição entre 189 classificados pelo Índice de Desenvolvimento Humano da ONU.

O experimento iluminista pode ter sido ambicioso, mas Contardo seria o primeiro a reconhecer que está incompleto.

Linha do tempo

Colonização

Portugueses chegam no século 16 à região, que era um importante entreposto comercial do Pacífico; no século 19, dividem a ilha com os holandeses, ficando com a metade leste

​Ocupação indonésia

Em novembro de 1975, Portugal, livre do salazarismo, deixa suas colônias na África e Ásia. A Indonésia invade Timor Leste logo em seguida, dando início a uma ocupação que deixou entre 100 mil e 250 mil mortos

​Administração da ONU

Em 1999, após anos de pressão internacional e a ação de uma guerrilha timorense, a Indonésia aceita promover um plebiscito no território, com vitória esmagadora da independência. Inconformados, grupos contrários à separação promovem destruição no país; ONU inicia administração temporária

Independência

Em maio de 2002, após dois anos e meio de administração da ONU, liderada pelo brasileiro Sérgio Vieira de Mello, Timor Leste se torna independente

Como estão as pessoas que Contardo encontrou em Timor

Abé Barreto, 55

Em 2000: trabalhava para a ONU, na área de comunicação

Hoje: tradutor e poeta em Timor

“A dinâmica da democracia tem seus altos e baixos. Os que proclamaram a independência já fizeram seu trabalho. Agora, cabe à minha geração continuar esse processo. Posso dizer que somos a geração transitória, intermediária. Temos um papel muito importante”.

Beatriz Mohr, 61

Em 2000: missionária da Congregação da Divina Providência

Hoje: freira em Florianópolis (SC)

Simpatizei muito com Contardo, o jeito dele. Eu tenho formação de psicóloga, então tivemos uma conexão imediata”.

Gil Horácio Boavida, 44

Em 2000: timorense, vivia de bicos

Hoje: trabalha num projeto ambiental financiado pelo Pnud

Como timorense de sangue nativo, tenho orgulho de ser cidadão deste país. Até hoje continuo ativo em várias atividades relacionadas com o ambiente, a agricultura e o desenvolvimento de talentos dos jovens”.

Lourdes Borelli, 73

Em 2000: missionária da Congregação da Divina Providência

Hoje: freira em Canoas (RS)

Algumas comunidades tinham pessoas que tinham sido da resistência e falavam português. Diziam que aproveitavam a reza nos enterros para conversar em português sem chamar a atenção, passar recados”.

Henrique Lima Castro, 60

Em 2000: major da PM-RJ

Hoje: coronel aposentado da PM-RJ, é consultor de segurança

“Ele [Contardo] estava com camisa de manga comprida, aquele coletinho de jornalista. Eu morava no meio da população, comprava nos mercados, caminhava na rua. Começamos a bater papo. Timor foi uma experiência muito marcante, acho que para nós dois”.

Terezinha Kunen, 72

Em 2000: missionária da CNBB

Hoje: responsável pela Pastoral da Criança em Manila (Filipinas)

“A visita do Contardo foi uma luz de encorajamento para prosseguirmos nossa missão. Ele era muito positivo. Me chamou atenção seu entusiasmo em fazer jornalismo e a delicadeza dele, conversando com as pessoas”.

Valéria Rezende, 78

Em 2000: pertencia à Rede de Educadores Populares do Nordeste

Hoje: pertence à Congregação das Cônegas de Santo Agostinho, na Paraíba. É escritora premiada

“Encontrei o Contardo depois uma vez na Flip [Festa Literária Internacional de Paraty], porque publiquei um livro de ficção. A gente bateu um papo rápido na porta do pavilhão, lembramos do nosso encontro em Timor”.

Erramos: o texto foi alterado

O nome do policial militar Henrique Lima Castro foi grafado incorretamente como Marcelo Lima Castro em versão anterior desse texto

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